O livro de Paulo Fontes, Trabalhadores e cidadãos, se insere em uma linhagem de pesquisas que tem dado uma contribuição das mais significativas à compreensão da experiência da classe trabalhadora no Brasil, especialmente no período pós-Segunda Guerra Mundial. Com raro talento, o autor consegue conectar as peculiaridades inerentes ao seu objeto de estudo com as grandes questões colocadas pela historiografia operária.
Comecemos pelo objeto de estudo: a Nitro Química. Essa fábrica representou um dos grandes empreendimentos industriais numa conjuntura especial da história brasileira. Fundada oficialmente em 1940, com a presença do presidente Vargas, foi anunciada em tom ufanista como a "CSN do setor químico", embalada pelo projeto industrializante do Estado Novo. Colocava para si o papel de ser a grande provedora de matéria-prima para o ramo químico nacional, dotando o país de auto-suficiência em um setor estratégico da indústria. Nem tudo aconteceu como previsto.
Para funcionar de fato, a Nitro Química precisava de operários. Homens, na sua maioria migrantes nordestinos que "vinham tentar a sorte" em São Paulo, submetendo-se às duras condições de trabalho. É sobre esses homens que Paulo Fontes fala. Como eles reagiram diante do sistema nitro de dominação, que incluía um grande aparato social, com amplos benefícios, devidamente articulado com toda uma "ideologia" da empresa que se expressava no Nitro Jornal, nas normas disciplinares, nos "tempos festivos", tais como o Primeiro de Maio, a Páscoa dos Trabalhadores, a festa do Natal no Clube de Regatas Nitro Química, os Jogos Desportivos Dr. Horácio Lafer e inúmeros outros momentos. Este é o coração da extensa pesquisa de Paulo Fontes. Entender como se erigiu este sistema e como foi interiorizado e reelaborado pelos trabalhadores por meio da sua experiência e de sua cultura.
No primeiro capítulo, o autor descreve a implantação da Nitro Química, de meados dos anos 30 até o final dos anos 50, com decisivo apoio estatal, mostrando em mais este exemplo, a marca sempre difusa no Brasil entre o interesse público e o privado. Nesses pouco mais de 20 anos, a empresa passou por várias fases de expansão e retração. Seus dois maiores empreendedores, José Ermírio de Moraes e Horácio Lafer, eram figuras íntimas do governo Vargas. Lafer chegou a ocupar o Ministério da Fazenda e, graças às relações com o governo, obteve a isenção de direitos tarifários para transferência de todo equipamento, praticamente uma fábrica inteira, dos Estados Unidos. Apesar das relações estreitas com o governo, os primeiros anos não foram nada fáceis para a sorte do empreendimento. O seu alto custo, as dificuldades com o equipamento e a ofensiva dos concorrentes aplicando dumping fizeram com que a Nitro Química acumulasse enormes déficits. Sua salvação foi a Segunda Guerra Mundial. A partir daí, a empresa conheceu grande expansão, puxada pelo crescimento da demanda da indústria têxtil, especialmente o raion. No final do conflito, a Nitro Química encontrava-se numa situação financeira excelente e disposta a pôr em prática seu projeto original de tornar-se a "CSN do setor químico".
Desta forma, os anos 50 caracterizaram-se por expectativas e frustrações. Os grandes investimentos para fazer da Nitro provedora da área química sofreram grandes reveses, agravados pela retração do setor têxtil, afetando o seu principal mercado.
Trabalhadores e cidadãos analisa no capítulo seguinte o discurso empresarial, o sistema de benefícios e os mecanismos de dominação na Nitro Química nos anos 50. A partir da leitura do Nitro Jornal, cruzada com outras fontes, o autor procura captar como vai se edificando todo um discurso empresarial com uma marca de dominação bastante acentuada. Na estrutura do ideário empresarial, três noções aparecem com bastante ênfase. A imagem da família nitrina, a noção de paz social e de nacionalismo.
Construía-se a idéia de uma família feliz, que tinha como essencial trabalhar para o progresso e felicidade da Nação, através da cooperação harmoniosa entre capital e trabalho. O nacionalismo estava associado à imagem de uma indústria a serviço do Brasil, uma das marcas registradas da empresa até 1964. Mas seus proprietários faziam questão de diferenciar o nacionalismo empreendedor da iniciativa privada do "falso nacionalismo" propalado pela esquerda, especialmente por intermédio dos comunistas. Seu amplo aparato assistencial foi também utilizado como um mecanismo de poder e de reforço da autoridade. Situada num bairro desprovido de infra-estrutura básica, com uma população vivendo de baixos salários, os diversos serviços oferecidos alimentavam o imaginário de uma empresa poderosa que exercia grande controle sobre a vida das pessoas tanto dentro como fora da fábrica.
Nos capítulos 4 e 5, Fontes mostra a contraface da dominação empresarial, ou seja, a luta dos trabalhadores da Nitro na defesa de seus interesses. O resgate que o autor faz da atuação do Sindicato dos Trabalhadores Químicos e do Partido Comunista Brasileiro, que desenvolveu intensa atividade política tanto na fábrica como no bairro de São Miguel Paulista, é extremamente instigante. Munido de extensa documentação, os ativismos sindical e partidário ganham na leitura do autor vida e movimento. Os trabalhadores aparecem como sujeitos dos seus destinos nas "grandes" e "pequenas" lutas, no seu constante fazer-se como classe. A grande ressonância do Partido Comunista em São Miguel, no pós-guerra, deveu-se à sua capacidade em penetrar na cultura operária, integrar-se a ela e dela fazer parte.
Com a repressão desferida pelo governo Dutra, o Sindicato dos Químicos sofre intervenção e todos os trabalhadores acusados de comunistas também são atingidos pela repressão. A Nitro Química demitiu operários identificados como comunistas. "A retórica anticomunista, já manifestada no repertório dos dirigentes da empresa, passou a ser uma presença ainda mais constante em seus discursos e comunicados dirigidos aos trabalhadores" (p.119). Paulo Fontes trata em seguida da difícil luta pela reconquista do sindicato, que culmina com a vitória da chapa oposicionista em 1956, desalojando o núcleo de dirigentes interventores que estivera à frente do sindicato por nove anos. A partir de então este passa a ter uma conduta muito mais combativa, voltando a focar sua atuação na direção da sua "principal e mais ativa base, os trabalhadores da Nitro Química".
Trabalhadores e cidadãos termina com a emblemática greve dos trabalhadores da Nitro em outubro de 1957, que foi a manifestação operária de maior ressonância desde a fundação da empresa, na esteira da grande "greve dos 400 mil" que chacoalhou São Paulo por dez dias. No mesmo 24 de outubro, quando se encerrava a greve em São Paulo, os trabalhadores da Nitro Química iniciaram a sua "maior" e mais "furiosa" greve.
O conflito operário é analisado desde os seus preparativos, com a presença dos delegados sindicais, as assembléias no sindicato, o processo de negociação, passando pelo cotidiano da greve - extremamente violento em muitos momentos -, pela solidariedade de outras categorias, pelas relações dos líderes grevistas com as autoridades, com destaque para Jânio Quadros, em um rico e envolvente painel. Como observa o autor, esta greve "representou uma inflexão profunda nas relações de reciprocidade entre a Nitro Química e seus trabalhadores" (p.165).
Para finalizar, gostaria de chamar atenção para a riqueza documental de Trabalhadores e cidadãos. Entrevistas, processos-crime, relatórios policiais, atas sindicais, imprensa operária, grande imprensa, fontes empresariais são engenhosamente trançadas. Fornece ao leitor, além de uma narrativa segura e fartamente documentada, uma obra inventiva do ponto de vista metodológico, tanto no tratamento das fontes como na articulação bem-sucedida entre o particularismo do seu tema de pesquisa e as questões mais gerais que permearam a história dos trabalhadores no período. O livro é muito bem vindo e certamente será uma referência obrigatória para os estudiosos do tema. Mas não só. Sua narrativa fluente e acessível permite que um público mais amplo tome contato com esta importante contribuição à historiografia do movimento operário.
Helio da Costa é doutorando em História e professor na Escola Sindical São Paulo-CUT. É autor de Em busca da memória: Comissões de fábrica, partido e sindicato no pós-guerra.