Forjando a Democracia é um livro que sai em boa hora. Num contexto de crise profunda da esquerda, ou melhor, das diversas tradições que a compõem, uma reflexão sobre sua história nos últimos 150 anos é benfazeja. E é esta a ambiciosa proposta do historiador Geoff Eley: fazer uma síntese da trajetória da esquerda européia no período 1850-2000. Tarefa gigantesca e arriscada que, ao fim das quase seiscentas páginas, parece ter sido bem-sucedida. O trabalho de Eley se filia à tradição da historiografia social britânica, que produziu autores do quilate de Cristopher Hill, Edward Thompson e Eric Hobsbawm, para citar apenas os mais conhecidos. Neste livro é visível, em especial, a influência de Hobsbawm, a quem o autor, aliás, rende homenagem na Introdução. Eley escolheu um caminho em que Hobsbawm se mostrou mestre: a grande síntese histórica. A proposta é oferecer ao leitor uma visão de conjunto sobre processos históricos de larga duração, adotando uma abordagem que propicia perspectiva abrangente, capaz de, em meio ao cipoal de eventos, tendências e processos, construir uma análise que lhes confira inteligibilidade. Como disse, é tarefa espinhosa, e não é por outra razão que poucos historiadores têm se animado a enfrentá-la, preferindo se dedicar a incursões de fôlego mais curto. No Brasil a situação é ainda mais difícil, pois, ao contrário da Europa e dos Estados Unidos, não dispomos de suficiente volume acumulado de estudos monográficos, com enfoques dedicados a temporalidades e espaços específicos. No caso deste livro, o autor consultou, num trabalho de pesquisa que consumiu muitos anos, uma bibliografia portentosa, cerca de 1.700 títulos (somente a lista dos livros ocupa 85 páginas). É um feito notável, mais significativo ainda por ter conseguido usar bem todo esse manancial de fontes secundárias e realizar uma síntese acurada sobre processos e eventos históricos complexos.
Eley adota conceito amplo de esquerda, que engloba tanto os socialistas – considerados em suas múltiplas ramificações – quanto os democratas radicais. Essa opção está relacionada à sua hipótese principal, que é mostrar a contribuição central de tais grupos para a afirmação da democracia no mundo contemporâneo, notadamente no século 20. Na prática, porém, o estudo é sobre a esquerda, particularmente os partidos socialistas e o movimento sindical. O eixo do trabalho, que fornece o pano de fundo à síntese, é mostrar a importância das lutas conduzidas pela esquerda para a afirmação e o aprofundamento da democracia na Europa. Essa hipótese não é nova, mas ela recebeu de Eley um desenvolvimento consistente e competente. Nesta hora em que muitos só têm olhos para os fracassos da esquerda, são bem-vindas abordagens menos céticas e mais perspicazes, capazes de resgatar o legado positivo da atuação dos partidos socialistas e dos movimentos organizados dos trabalhadores. Tais lutas foram fundamentais para a afirmação das conquistas políticas e sociais que caracterizaram o século passado, mudanças implantadas pela própria esquerda, mas, também, por forças de direita, num movimento de antecipação e esvaziamento das demandas radicais.
Outro mérito do autor é conseguir equilibrar sua análise acima das divisões que marcaram a história recente da esquerda, fontes de tantos debates apaixonados. Ele foge do caminho de privilegiar uma ou outra das tradições socialistas, opção facilitada pelo fato de considerar todas igualmente esgotadas. Na verdade, o livro confere atenção especial às matrizes comunista (bolchevique) e social-democrata, deixando pouco espaço para outras correntes, como o anarquismo, por exemplo. Porém, é uma escolha defensável tendo em vista o papel central desempenhado pelas tradições comunista e socialista ao longo do século, cujas diferentes propostas de luta a favor da igualdade polarizaram o debate. Eley não se furta a criticar as falhas e apontar as contradições de ambas, mas evita cair no lugar-comum das condenações peremptórias, que se prestam bem ao jogo da luta política, mas servem pouco quando o propósito é compreender. Algumas críticas, aliás, são dirigidas tanto aos comunistas como aos socialistas. Por exemplo, o autor vê, em ambos, dogmatismo e sectarismo ao lidar com a cultura de massas que se afirmou ao longo do período. Em grande medida, a esquerda respondeu ao desafio apresentado por novas formas de produção ou divulgação da cultura, como as vanguardas artísticas, o cinema, o rádio e a televisão, aferrando-se à imagem idealizada de uma cultura popular pura e original. Enquanto as massas de trabalhadores acorriam aos cinemas ou se divertiam ao som dos novos ritmos musicais, ou nos estádios de futebol, intelectuais da esquerda destilavam diatribes contra tais divertimentos vulgares, vendo na cultura diária da classe trabalhadora “algo a ser moralizado e aperfeiçoado”.
Outra crítica que Eley dirige tanto aos PCs quanto aos PSs é a maneira como lidaram com a questão feminina, de modo particular, e com as minorias e grupos marginalizados, de modo geral. Fazendo eco a debates recentes suscitados pelas questões de gênero, o autor incorpora o argumento de que a esquerda teria sido conservadora no trato das demandas femininas, uma decorrência da hegemonia masculina sobre o movimento. Ele reconhece as iniciativas dos socialistas e comunistas em busca do projeto de “libertação” da mulher, mas conclui que foram modestas e parciais, e excessivamente parcimoniosas, tendo em vista o abismo de desigualdades entre homens e mulheres. A análise desse ponto fica mais sólida na conjuntura pós-1968, quando de fato a timidez e o acomodamento dos líderes comunistas e socialistas frente à emergência de demandas femininas e de grupos homossexuais geraram o afastamento de parte dos novos movimentos sociais em relação à esquerda tradicional. Menos convincente é estender tal crítica a períodos anteriores, quando a esquerda socialista e comunista esteve na vanguarda da reivindicação de direitos para as mulheres. Sem dúvida, a esquerda realmente acolheu atitudes tradicionalistas e machistas nesse campo, mas, ao mesmo tempo, foi promotora de lutas significativas em benefício das mulheres, abrindo oportunidades para que milhares delas se tornassem cidadãs e revolucionárias ativas. Mesmo que nos países do “socialismo real” as conquistas das mulheres tenham sido congeladas ou retroagido (no auge do stalinismo o aborto foi proibido, depois de ter sido legalizado nos primeiros anos da revolução; mas voltou a ser autorizado nos anos 1950), ainda assim o compromisso com a libertação feminina deixou sua marca. Exemplo: com a reunificação da Alemanha, vantagens e direitos das mulheres da Alemanha Oriental foram perdidos, resultado da ocidentalização.
Vale ressaltar a inteligente e bem informada análise de Geoff Eley sobre o contexto mais recente, em que se vê o esgotamento das duas grandes linhagens da esquerda, bem como a crise das instituições que organizaram e ecoaram a sua voz, os partidos e os sindicatos. Estão superados os velhos projetos da esquerda e se encontram em decadência grave seus mecanismos institucionais, a ponto de surgirem movimentos sociais de perfil esquerdista que não se reconhecem nos partidos e sindicatos, tampouco nas idéias tradicionais. Mas não é lacrimoso o tom do autor, ele não vê apenas destruição e desdita no campo da esquerda. Um dos desdobramentos da conjuntura recente poderá ser um dado positivo, desde que a esquerda consiga se reinventar. O fim do anticomunismo como força aglutinadora permite a reaproximação entre as duas principais correntes da esquerda, recompondo a fissura de 1917. Os partidos ex-comunistas sobreviventes têm trilhado caminhos muito próximos aos da antiga social democracia, abrindo a possibilidade de alianças duradouras com os socialistas. E a esquerda, ou seus herdeiros, tem ganhado eleições recentes; chegar ao poder não tem sido o maior problema. O mais difícil é construir, em meio aos destroços das velhas estruturas e ideais, programas de governo e projetos para o futuro que signifiquem a superação das fórmulas esgotadas, mas, ao mesmo tempo, ainda configurem uma política de esquerda.
Neste momento de crise e desorientação, o livro de Eley pode ser de muita valia. Na tentativa de reconstrução da esquerda, uma reflexão sobre seu passado recente, marcado por lutas heróicas e conquistas notáveis e, também, por equívocos e crimes terríveis, é muito útil. Não é uma fórmula infalível, mas vale a tentativa, pois, do contrário, incorre-se nos equívocos que temos visto, dois caminhos que deveriam ser evitados: de um lado, a tentativa vã de ressuscitar um passado morto e, de outro, a adoção de planos de ação improvisados por parte de grupos de esquerda no poder que, por falta de reflexão, correm o risco de fazer a política dos outros.
Rodrigo Patto Sá Motta é professor de História da UFMG e autor de Em Guarda contra o Perigo Vermelho: o Anticomunismo no Brasil (1917-1964). São Paulo: Perspectiva/Fapesp, 2002