Estante

Contribuição para o debate presente e futuro sobre a cultura dentro do PTCom este livro, Marcelo Ridenti, que há tempos vem-se dedicando a recortar um campo de pesquisa e reflexão, se alça ao patamar de especialista. Já nos anos 90 publicara três livros direta ou indiretamente ligados ao assunto: O fantasma da revolução brasileira (1993), Classes sociais e representação (1994) e Professores e ativistas da esfera pública (1995). Percebe-se, pelo desenrolar de sua obra, a tenacidade com que se aferrou a seu campo, brindando-nos agora este esplêndido fruto, sua tese de livre-docência.

Ninguém diria que o autor contava quatro anos em 1964, ou oito em 1968, tal o conhecimento de causa com que discorre sobre o que se passou no período, estendendo-se até bem além desta última data.

Entretanto, o leitor tende a dar o desconto aos quatro ou oito anos, vendo quão longe foi a aquisição desta perícia ao se defrontar com o número de depoimentos de figurantes de primeira plana. Anexa, uma cronologia comentada de nada menos que 49 páginas, indo de 1958 a 1984, registra não só os principais acontecimentos políticos de cada ano, como também os livros escritos, os quadros pintados, as canções gravadas, os filmes realizados, as peças de teatro encenadas, e outros eventos culturais ou de significação histórica – sem esquecer um campeonato de futebol –, de modo tal que o leitor pode conferir a cada passo o andamento das análises. Comprovando assim que cada uma dessas realizações constituiu-se numa experiência pessoal para o autor, que as submete ao rigor de seu escrutínio.

Marcelo Ridenti encontra seu fio condutor no conceito de romantismo revolucionário, que lhe serve de pedra-de-toque para aferir os diferentes objetos e temas a que se dirige, detectando-o nas tendências de esquerda, nos movimentos sociais, nas obras de arte do período, com isso trazendo consideráveis achegas para a história das mentalidades. Sua estimativa se mostra sempre generosa, buscando resgatar o que de melhor havia naquelas realizações. Mesmo quando falhas ou acanhadas, alguma coisa as redimia.

O período recortado é amplo e o empreendimento ambicioso, mas o leitor acaba convencido de que a seleção é correta e não poderia ser outra. No arco de tempo coberto, verificam-se as oscilações de intensidade e as variações de âmbito por que passou a cultura no país. Começa pelo governo Kubitschek e seus feitos, como a transplantação da capital federal e a construção de Brasília, a ideologia desenvolvimentista, a Bossa Nova, o Cinema Novo etc., quando uma extraordinária floração artística e intelectual de esquerda começou a se esboçar. Mais tarde dominaria o panorama, e é sobre ele que o livro se debruça. Nesse passo, não se esquiva a ventilar os laços entre os partidos de esquerda – PCB etc. – e as idéias ou grupos que nortearam toda essa floração.

O trabalho ostenta ainda o mérito de abrir uma outra discussão, das mais espinhosas e das mais relevantes. A entrada avassaladora da indústria cultural afeta, radicalmente e o mais das vezes com conseqüências desastrosas, a produção artística e intelectual de esquerda. Daí a absorção pela TV Globo, que então se erigia em braço ideológico da ditadura e reinventava a telenovela brasileira, de um sem-número desses militantes na posição de noveleiros e executivos. Como se sabe, em declarações e inclusive nos depoimentos que o livro acolhe, eles costumam justificar as telenovelas dizendo que estavam sabotando o inimigo desde suas entranhas. E que assim – o que a própria TV se encarregou de disseminar – conseguiam trazer para a tela os problemas do povo brasileiro.

Chegou-se amiúde a afirmar que a novela da Globo escrita por esses autores concretizava o projeto do CPC de levar a cultura ao povo, alvo que, por mais que se visasse, escapara tanto ao Arena e ao Oficina, quanto ao Cinema Novo. Todos eles viveram à míngua de público de outra classe que não aquele setor da burguesia ilustrada já alinhada e dispensando catequese.

Segundo esse argumento, tão repisado, sobretudo nas áreas mais conformistas, a telenovela teria conseguido solucionar o impasse. Em primeiro lugar, só pela façanha de chegar às massas – porque estas não lêem livros, não vão ao cinema e muito menos ao teatro, mas vêem televisão, como se sabe. E em segundo lugar, por fornecer um "produto" que as alça a protagonistas (sujeitos da História?) e fala diretamente com elas. Esta parte do livro deixa no leitor uma certa insatisfação, pois mereceria algum desenvolvimento, ao abordar questões da maior gravidade e das menos estudadas.

Pensando bem, a ampliação requerida – e tendo em vista o afã com que o autor se impregnou das obras de esquerda, tarefa cumprida com equilíbrio e ponderação – exigiria uma análise de forma e conteúdo das novelas da TV Globo, coisa que não se deve desejar a seu pior inimigo. Pois isso implicaria curvar-se à tediosa exposição a milhares de horas de algo de baixo nível, um insulto à inteligência e ao bom gosto de qualquer um que não seja um vidiota. Mas também confesso que, jamais disposta a esse sacrifício, agradeceria se alguém de tanto preparo quanto Marcelo Ridenti fosse voluntário – porque a curiosidade, essa persiste.

Até mesmo nos depoimentos dos noveleiros, passa em silêncio que os resultados dessas boas intenções populistas – não custa lembrar que está à disposição no arsenal da esquerda o conceito de "falsa consciência", que parece relegado ao ostracismo – ficam enquadrados na estrutura de um outro universo simbólico, não mais formulado para despertar a consciência do espectador, incentivando-o à luta por seus direitos e pela transformação social. Ao contrário, esta nova forma televisiva fetichiza a modernidade de sua excelência técnica. Ela se destina a hipnotizar o espectador para fazer dele apenas um consumidor, numa inédita concepção do cidadão enquanto tubo digestivo, metáfora que é a contribuição de nosso tempo à história da humanidade. Ninguém cai no engodo: a televisão não conclama à luta, mas induz à letargia.

No período analisado por Marcelo Ridenti, dois fatores de primeira grandeza sobrevêm, de início pouco discerníveis devido ao terror instaurado pela ditadura. O primeiro é o advento da indústria cultural entre nós, que amordaça muitos artistas e opera uma espécie de seleção entre eles, resultando que os que sobrenadam nem sempre são os melhores. O segundo é o paroxismo concomitante da sociedade de consumo, não desligada daquela mas talvez a sua face mais visível. Ambas se interligam e afetam a produção cultural da esquerda, às vezes da maneira mais mutiladora.

Dentre tantas benesses que este livro traz, parece até mesquinhez pedir-lhe ainda que dê categoria em plano teórico a uma velha discussão da esquerda que diz respeito ao valor da arte engajada ou empenhada, versus arte livre ou de torre de marfim. Se bem que é verdade que o livro o faz, na concretude das obras que examina empiricamente. Em todo caso, fica clara a passagem histórica – e traumática – de um horizonte coletivo da prática cultural, para a fragmentação e individualização que se impuseram posteriormente.

Assim sendo, e por todos estes títulos, este livro se erige em contribuição crucial para o debate presente e futuro sobre a cultura dentro do PT que o partido está devendo, ou hesita em abrir.

Walnice Nogueira Galvão é crítica literária e do Conselho de Redação da revista Teoria e Debate.