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Ao celebrar o centenário do economista nos deparamos com a atualidade do pensamento de Furtado, de sua forma de conceber a economia, bem como a importância de seu engajamento público

Em 26 de julho do corrente celebramos o centenário de nascimento de Celso Furtado. Para celebrar a data esse texto reúne um conjunto de reflexões de uma jovem economista que tomou contato com o pensamento de Furtado durante a graduação na Universidade Federal de Minas Gerais há cerca de uma década e que desde então se tornou admiradora de sua obra e da figura de Celso. Antes de seguir, devo dizer que minha trajetória acadêmica se distanciou da economia no sentido propriamente disciplinar. Nesse sentido, partilho com Furtado uma compreensão ampliada da economia e entendo ser impossível – porque reducionista e insuficiente – analisar qualquer fenômeno econômico de forma autônoma, desvinculado de aspectos políticos e culturais.

O centenário de Furtado está sendo celebrado em diversos eventos e publicações ao longo deste ano atípico, pandêmico. Minha humilde contribuição vai no sentido de refletir sobre o pensamento de Furtado à luz do campo de estudos da geopolítica do conhecimento.

O fato de sua teoria do subdesenvolvimento ter sido elaborada na periferia, a partir da realidade nordestina, brasileira e latino-americana não é trivial, afinal como aponta Raewyn Connell, "teoria é o trabalho que o centro faz".

Partindo dessa realidade histórica, concreta e contraditória, Furtado mostrou que o impasse continental do subdesenvolvimento não se trata de uma etapa em um processo de desenvolvimento de caráter universal. Ao contrário, compreende uma dinâmica específica de produção e de vida de parte da periferia do capitalismo. Esta se vê, portanto, integrada, ainda que de forma subordinada, à divisão internacional do trabalho dominada pelo centro. Em sintonia com Alexander Gerschenkron, a preocupação de Furtado era relativa ao atraso – e as possibilidades e os caminhos para sua superação.

Como fruto da vivência do Sul, a experiência cepalina e os trabalhos posteriores de Furtado deram vazão a elaborações teóricas para o campo econômico que problematizam ideias ditas universais sobre o desenvolvimento, ainda que erigidas sobre a realidade do Norte. Apesar de crítico, o pensamento furtadiano e cepalino de modo geral, fazia uso dos mesmos princípios marginalistas e keynesianos da ciência econômica e dos fundamentos macroeconômicos de investimento, poupança e consumo. Juntamente com o arcabouço marginalista, o pensamento marxiano também tem lugar nas análises de Furtado, especialmente no que tange à leitura histórica dos processos econômicos e políticos.

Essa base comum foi importante no sentido de garantir legitimidade e reconhecimento científico para as ideias latino-americanas, junto ao corpo técnico e acadêmico hegemônico do Norte. Para Chico de Oliveira, o compartilhamento do arsenal marginalista não comprometeu as inovações teóricas de Furtado. Conforme aponta Oliveira em seu famoso ensaio Crítica à Razão Dualista, o pensamento cepalino manteve-se como "único interlocutor válido, que ao longo dos últimos decênios contribuiu para o debate e a criação intelectual sobre a economia e a sociedade brasileira e a latino-americana" (1972, p. 11).

Justamente em razão das dimensões histórica e aplicada e do substrato ideológico da teorização de Furtado, Oliveira aponta que a diferença de suas ideias em relação às demais correntes teóricas marginalistas residia no fato de que a Cepal ambicionava elaborar – e de fato produziu – uma teoria da sociedade latino-americana com base numa perspectiva crítica e orientada para contribuir com transformações socioeconômicas e políticas concretas no continente. Os próprios fundamentos macro foram qualificados e ganharam destaque os investimentos, a poupança e o consumo internos, com atenção especial para suas respectivas dinâmicas e desdobramentos.

É nesse contexto que resgatamos aqui um importante debate da sociologia brasileira dos anos 1950 protagonizado por Florestan Fernandes – cujo centenário também celebramos em 2020 – e Alberto Guerreiro Ramos. Os dois pensadores debatiam à época sobre a questão da universalidade e da particularidade na sociologia brasileira. Isto é, em que medida a sociologia produzida no país deveria se ligar teórica e metodologicamente às elaborações hegemônicas do centro ou, ao invés, se descolar delas e construir um corpo teórico e metodológico autônomo.

O debate se situa no período pós-Segunda Guerra, marcado pelas discussões sobre modelos de desenvolvimento e também por diversos processos de descolonização, sobretudo na Ásia e na África. Não à toa em 1958 Furtado publicou Formação Econômica do Brasil e no ano seguinte criou a Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene). No debate entre universalidade e particularidade, Florestan defendia uma sociologia feita no Brasil, um fazer sociológico alinhado com o sistema de normas e de valores do saber científico universal. Já Guerreiro Ramos exprimia posição favorável ao desenvolvimento de uma sociologia propriamente nacional, autêntica e brasileira, atenta às leis particulares do processo de crescimento aqui observado.

Apesar de situados em posições distintas, para não dizer opostas, ambos os sociólogos tinham entendimento comum a respeito da necessidade de uma ciência e uma sociologia capaz de soluções próprias para problemas que, da mesma forma, são específicos da nossa realidade. A nosso ver, a construção científica de Furtado o aproxima da perspectiva defendida por Florestan, de inspiração positivista, que preza o diálogo, sempre crítico, com a linguagem e os pressupostos universais de suas respectivas disciplinas. Entretanto, nos parece evidente que há um encontro entre Florestan, Guerreiro Ramos e Furtado no lugar das preocupações com as questões nacionais e do compromisso em elaborar soluções históricas e territorialmente contextualizadas. Todos três se propõem a reflexões engajadas que incluem fundamentos para a ação.

Muita coisa mudou desde a partida de Furtado em novembro de 2004 e mais ainda desde seus principais escritos sobre o subdesenvolvimento na segunda metade do século 20. O debate da industrialização; a natureza das relações de trabalho; a visão do rural como lugar do arcaísmo e do atraso; o lugar da ecologia; as formas de extração e captura da renda entre centro e periferia; dentre outras.

Nesse sentido há proposições de Furtado que podem ser consideradas datadas, na medida em que os próprios debates se mostraram datados.

Certamente, contudo, não se vê datada sua forma de refletir e elaborar sobre os problemas econômicos. Essa sim é sempre atual. Mantém-se universal e cada vez mais urgente a necessidade da análise econômica conectada com dinâmicas políticas e culturais. É nesse sentido que a economia não deve se impor sobre as demais ciências sociais, é também nesse sentido que Furtado afirmou "nunca pude entender a existência de um problema estritamente econômico".

Da mesma forma, mantêm-se presentes as raízes e os motores da desigualdade brasileira e latino-americana. Os resultados mais recentes do último Censo Agropecuário (2017) apontam que a concentração da terra segue aumentando no Brasil. Deixamos o mapa da fome da FAO/ONU em 2014, mas infelizmente ela voltou a bater na porta de milhões de brasileiras e brasileiros. A participação industrial no PIB brasileiro cresceu ao longo do século 20, mas são evidentes os sinais de desindustrialização. São também cada vez mais sofisticadas as vias de escoamento da renda e da riqueza por nós gerada, com o trabalho e os recursos naturais do Brasil, para os países sede das grandes empresas transnacionais. Em tempos de hegemonia do capital financeiro, mostra-se ainda mais atual o questionamento a respeito da existência de uma burguesia nacional, comprometida com o desenvolvimento e a soberania do país.

Segue também válido e atual seu entendimento acerca do atraso do Nordeste, não como fruto da seca, mas das estruturas políticas ali presentes. Por isso imagino que Furtado teria grande orgulho de olhar para a experiência em construção do Consórcio do Nordeste. Uma articulação de resistência política e cidadã, tão bem simbolizada nos filmes Bacurau e Aquarius, daqueles que aprenderam a conviver com o semiárido e não mais aceitam o lugar da marginalidade política, econômica e cultural.

Torna-se cada vez mais evidente que a riqueza do Brasil vem da nossa diversidade. As desigualdades, dentre elas a regional, devem ser combatidas com as equidades no plural. A diferença deve ser encarada como potência e não como ameaça.

Todas essas questões não deixam dúvidas sobre a atualidade de Furtado, da sua forma de conceber a economia, bem como da importância de seu engajamento público. Que o conjunto de celebrações de seu centenário em 2020 sirva para inspirar mais e mais jovens economistas e lembrar aos já formados que não existe dicotomia entre economia e vida, pois a ciência econômica nada mais é do que o estudo sobre como as pessoas sobrevivem, produzem e distribuem renda e riqueza.

Para quem quiser conhecer ou revisitar as obras e o pensamento furtadianos, recomendamos os documentários O Longo Amanhecer (Disponível no site Tamanduá) e Um Sonho Intenso, ambos de José Mariani, além de farto material no sítio do Centro Celso Furtado.

Leia também Celso Furtado e o Brasil, organizado por Maria da Conceição Tavares. Fundação Perseu Abramo, 2000.

 

Luiza Dulci é militante da JPT, integra o Conselho Curador da Fundação Perseu Abramo. É economista (UFMG), mestre em Sociologia (UFRJ) e doutoranda em Ciências Sociais, Desenvolvimento e Agricultura (UFRRJ)