A Sergei Mikhailovitch Eisenstein
Vinicius de Moraes
Pelas auroras imobilizadas
No instante anterior; pelos gerais
Milagres da matéria; pela paz
Da matéria; pelas transfiguradas
Faces da História; pelo conteúdo
Da História e em nome de seus grandes idos
Pela correspondência dos sentidos
Pela vida a pulsar dentro de tudo
Pelas nuvens errantes; pelos montes
Pelos inatingíveis horizontes;
Pelos sons; pelas cores; pela voz
Humana; pelo Velho e pelo Novo
Pelo misterioso amor do povo
Spasiba, tovarisch. Khorosho1.
Esse soneto figura no “Tríptico para Eisenstein”, tributo de Vinicius de Moraes ao grande cineasta por ocasião de sua morte. Dos três sonetos, só esse foi incluído na Poesia Completa. O poeta, como se sabe, foi por muitos anos crítico de cinema. De esquerda, diplomata de carreira no Itamaraty, seria expulso de seu posto em consequência do AI-5, em 1969. Confira-se recente investigação da Comissão Nacional da Verdade, que encontrou os documentos do expurgo no Ministério das Relações Exteriores.
O cinema de Eisenstein é criação direta da Revolução Russa: ele próprio foi soldado do Exército Vermelho e lutou nas guerras revolucionárias. Seus primeiros filmes ainda são mudos. E, como o cinema estava então em seus primórdios, esses filmes contribuíram para grandes descobertas nas técnicas de filmar e na estética cinematográfica que depois se incorporaram à história do cinema. São sobretudo importantes suas reflexões teóricas sobre montagem, que fizeram escola.
O que assombra nesses filmes é que, como são revolucionários, não têm protagonista individual – as coletividades são o protagonista - e podem parecer por isso bem esquisitos, habituados que estamos à fórmula hollywoodiana do herói, ou no máximo do casal de herói e heroína. Para Eisenstein, o herói é o povo.
Seus principais filmes, pela ordem cronológica, são os seguintes:
1921 - A Greve (Rússia)- Numa fábrica russa em 1912, os trabalhadores entram em greve por motivo do suicídio de um operário injustamente acusado de roubo. Os embates entre os trabalhadores e os donos da fábrica, que usam delatores e espiões.
1925 - O Encouraçado Potemkin (Rússia) – A Revolução de 1905, na qual os marinheiros de Kronstadt se rebelaram contra os maus-tratos de que eram alvo e assestaram seus canhões sobre a cidade de São Petersburgo. Quando Eisenstein fez o filme, utilizou também outro encouraçado, o Aurora, que em 1905, ancorado no rio Neva, ameaçava bombardear a cidade. O encouraçado Aurora permanece lá, atracado no porto de São Petersburgo, aberto à visitação, preservado como monumento histórico da Revolução de 1917.
1927 - Outubro (Rússia) – Concebido para celebrar os dez anos da Revolução de 1917, ali vemos a reconstituição quase documental de seus fastos, com as grandes discussões e os saltos bruscos dos eventos. Vemos Lênin que chegou no trem blindado, desembarcando na Estação Finlândia e discursando às massas. Enquanto Trotsky, que tinha participação intensa no filme, teve que ser recortado da montagem praticamente a tesoura, porque nesse ínterim tinha se tornado anátema. Nem seu nome podia ser mencionado, por ordem de Stalin. O filme ainda é mudo, mas já está, como formulou Paulo Emílio Salles Gomes, “ansiando pela voz”, isto é, pedindo para falar. Apresenta Lênin discursando, sua imagem sai da tela e é substituída por um texto impresso (o discurso), depois volta a imagem no mesmo ponto.
1928 - A Linha Geral ou O Velho e o Novo (Rússia)– A reforma agrária, com a substituição dos velhos métodos de cultivo pela nova agricultura mecanizada e os problemas que a mudança traz.
1931- Que Viva México! (Rússia/EUA/México) - Filme que ficou inconcluso, havendo hoje mais de uma versão completada por outros. Vemos que Eisenstein fez bom uso da festa dos mortos e da deslumbrante luz dos trópicos, a que não estava habituado pois vinha de paragens menos ensolaradas.
1938 - Alexander Nevski (Rússia)– Já é um filme nacionalista, às vésperas da Segunda Guerra, quando a Rússia seria invadida pelas forças nazistas, ficando assediada por elas durante vários anos. Foi assim que o país teve 25 milhões de mortos, dado pouco lembrado diante das 250 mil perdas dos Estados Unidos. O enredo exalta a defesa da Rússia contra invasores alemães no século 13 e tem como protagonista o príncipe Alexander Nevski, fundador da nacionalidade russa que capitaneou a expulsão dos “cavaleiros teutônicos”. O filme tem um herói, porque a essa altura a linha oficial do partido já desenvolvia o “culto à personalidade” de Stalin e recomendava promover o herói individualizado. Mas é bom notar que o príncipe mesmo pouco aparece. O ator principal é o grande Tcherkássov, que passou à História como protagonista de Eisenstein.
1944 e 1958 - Ivan, o Terrível (Rússia) –Na realidade, são dois filmes. A primeira parte desagradou os críticos e acarretou a proibição da segunda parte por Stalin. Por isso só seria distribuída após 1958, depois da morte do ditador. Eisenstein, portanto, não chegaria a vê-lo exibido para o público, pois já tinha morrido há mais tempo, em 1948. Só quem não quer não enxerga que é Stalin quem está retratado naquele déspota maquiavélico e impiedoso, sanguinário e psicopata, paranoico ao extremo e imaginando perseguidores por toda parte, a quem nenhum crime detém na trajetória rumo ao poder. É o momento máximo do ator Tcherkássov, em desempenho que se tornou modelo e padrão. Mais importante ator do cinema russo de seu tempo, Tcherkássov encarnou também Dom Quixote e o general Suvorov, de Catarina da Rússia, em filmes de outros diretores.
Por um desses curiosos lances do destino,Tcherkássov passou pelo Brasil no conturbado ano de 1968 e fez uma palestra em São Paulo, na Maria Antônia ocupada pelos estudantes. Apresentado e traduzido por Boris Schnaiderman, pouca atenção despertou naquele momento.
Quanto ao período revolucionário em torno de 1917, é bom lembrar que inicialmente foi de intensa experimentação em todas as artes, inclusive no cinema, no qual se destacaram também Pudovkin e Dziga Vertov. O nome deste último batizaria, numa homenagem, o coletivo que Jean-Luc Godard fundou muito mais tarde. No seu conjunto, as obras deles todos mostram a amplitude e a profundidade a que pôde chegar uma nova arte, ao mesmo tempo nascente e revolucionária.
Walnice Nogueira Galvão é Professora Emérita da FFLCH da USP e integrante do Conselho de Redação de Teoria e Debate