Já era tempo de surgir este Que Horas Ela Volta?, tratando o assunto com seriedade e sutileza, escavando camadas mais profundas
Já era tempo de surgir este Que Horas Ela Volta?, tratando o assunto com seriedade e sutileza, escavando camadas mais profundas
Assunto tabu entre nós é a superexploração dessa categoria laboral, típica de sociedades que ainda não se desvencilharam dos resquícios escravistas, consoante os quais os patrões tratam a empregada doméstica – residente e para todo serviço, a postos 24 horas – mais como escrava que como trabalhadora livre. A obrigatoriedade da carteira assinada, grande avanço nos direitos humanos, data apenas da gestão de Dilma Rousseff, e demandou uma emenda constitucional. Tanto no Brasil quanto no resto do mundo, um dos grandes problemas atuais visados pela ONU e causa humanitária de primeiro plano é o trabalho doméstico feminino semiescravo, especialmente cruel no mundo globalizado, em que se importam trabalhadoras de países pobres, trazendo em sua esteira cárcere privado, confisco de passaporte, servidão sexual, maus-tratos e falta de legislação protetora. Em muitos casos, isso se confunde com o tráfico internacional de mulheres, uma das abominações de nosso tempo e que incide sobre milhões delas.
Tanto mais de se notar o extraordinário Que Horas Ela Volta?, de Anna Muylaert (Brasil, 2015, 1h51), que vem fazendo sucesso no Brasil e no mundo. A diretora encara a questão de frente, sem fugir a seus aspectos mais espinhosos e de árdua solução. A garota Jéssica foi criada no sertão, longe da mãe nordestina que trabalha para uma família bem posta de São Paulo. É do dinheiro ganho com o suor de seu rosto, enviado por ela, que a filha pôde cursar a universidade. Quando vem ficar com a mãe em São Paulo, não percebe os limites de classe: não pode nadar na piscina, nem se sentar à mesa, nem mexer nas coisas dos patrões. Conflitos antes subjacentes e reprimidos vêm à tona e causam as maiores confusões. O tema é tratado com leveza e ironia mas sem ceder ao romantismo e sem dourar a pílula de situações insuportáveis, de tanta humilhação que as personagens são obrigadas a engolir. Regina Casé, um monstro de palco e tela, está sublime no papel de sua vida. Anna Muylaert, por sua vez, entrou para o panteão de muita gente com esse filme, que, em dimensão inesperada, por ser dirigido por uma mulher e por ter outra mulher como protagonista, alimenta discussões sobre machismo, opressão de gênero, fricções entre classes.
Como é sabido, quando Hollywood, aliás raramente, abordou o tema no passado, contentou-se com filmes de baby-sitter ou de governanta. Entre estes, o célebre Rebecca, a Mulher Inesquecível, de Alfred Hitchcock (EUA, 1940, 2h10), com Joan Fontaine e Laurence Olivier. Nessa linha, não tão comum, há uma governanta em posição de algum prestígio que não é propriamente uma mera empregada doméstica. Isso é o que também ocorre em Eclipse Total (Direção: Taylor Hackford, EUA, 1995, 2h12), com a esplêndida atriz Kathy Bates. Ela é Dolores, governanta que faz todo o serviço da casa para uma viúva rica inválida. Dolores é vítima de um marido alcoólatra, a quem acaba assassinando a conselho da patroa. Bem mais tarde, a viúva lhe pede que a mate também, já que deseja reencontrar marido e filhos no céu. Dolores aquiesce. Descobre então que a viúva lhe deixou toda a sua fortuna de US$ 30 milhões, que Dolores, culpada e cheia de remorsos, doa a um orfanato. Com roteiro de Stephen King, é um filme de terror, é claro.
Contam-se aqui também os filmes de Thelma Ritter, que se especializou em papéis de empregada doméstica norte-americana bem interessantes nos filmes da época. São vários, e um deles é O Quarto Mandamento (Direção: Mitchell Leisen, EUA, 1951, 1h20), em que ela é a mãe do recém-casado que se envergonha dela e a esconde, embora ela seja empregada na casa dele: o filho desposou uma granfina, vivida por Gene Tierney. É inesquecível seu ar sábio e compassivo, combinado com uma mordacidade um pouco cortante, com farpas de humor crítico. Grande atriz, Thelma trabalhou em filmes memoráveis, como A Malvada e Janela Indiscreta, de Hitchcock.
Entre os americanos, é mais comum o “filme de baby-sitter”, uma relação eventual e efêmera mais do que institucional – e desses há muitos. Entre eles está Espanglês (Direção: James L. Brooks, EUA, 2004, 2h11), em que Adam Sandler desenvolve laços de amizade e troca cultural (apenas) com sua própria empregada latina, que resolveu ganhar a vida nos Estados Unidos.
Alguns filmes desprendem-se do convencionalismo com que o tema costuma ser tratado. Entre eles, Quando Meus Pais Não Estão em Casa, de Singapura (Direção: Anthony Chen, 2015, 1h39), mostra uma empregada importada das Filipinas e dedicadíssima a um menino já taludo, extremamente mal-educado, que os pais, ocupados com carreira profissional, não se dão ao trabalho de educar. A crise econômica traz consequências para eles: o pai perde o emprego e vemos a mãe despedindo várias pessoas na firma em que trabalha. O premiadíssimo Babel, dos Estados Unidos, traz uma empregada mexicana que é pivô de um turbilhão de acontecimentos. Semelhante é Corações em Conflito (Mammoth), dirigido por Lukas Moodysson (Alemanha/Dinamarca/Suécia, 2009, 2h05), com Gael Garcia Bernal e Michelle Williams, premiado em Cannes. O filho da empregada filipina nos Estados Unidos, que ficou para trás em seu país, faz tentativas de ir encontrar a mãe, até ser vítima de um pedófilo. Depois que ele é espancado e dado por quase morto, ela, que sustenta dois filhos e a mãe nas Filipinas com seu trabalho, volta desesperada às pressas. O diretor sueco tem dois outros filmes importantes: um é o da menina ucraniana traficada que se suicida, intitulado Lilya 4 Ever e Nós Somos as Melhores, sobre banda só de meninas.
De vários quadrantes do mundo vêm mais alguns. No francês Séraphine (Direção: Martin Provost, França, 2008, 2h05), que ganhou o César de melhor filme, o desempenho fora de série de Yolande Moreau valeu-lhe o César de melhor atriz. Um colecionador de arte descobre por acaso que sua faxineira de meia-idade, bronca, limítrofe e pouco articulada, é uma excelente pintora primitiva ou “naïf”. Descobre-a e a lança, mas os azares da guerra interferem. Considerada louca, Séraphine é internada num manicômio, enquanto suas obras são expostas nas capitais, recebendo reconhecimento; mas ela não tem mais condições de compreender, morrendo na miséria. O filme é de ficção mas o caso é verídico.
Em A Empregada (Direção: Im Sang-Soo, Coreia do Sul, 2010, 1h40), jovem vai trabalhar para família rica e seduz patrão bem-comportado, despertando hostilidade da patroa e da mãe da patroa, enquanto confronta a rivalidade da governanta.
Em A Criada (Direção: Sebastián Silva, Chile/México, 2009, 1h35), a babá é bem tratada, “como se fosse da família”, mas mora no quartinho dos fundos e não tem vida própria.
O Cheiro do Papaia Verde (Vietnã, 1993), do grande diretor Tran Anh Hung, traz como protagonista uma garota que vai trabalhar como criada em casas ricas. É seu ponto de vista que comanda tudo o que percebe nas relações entre essas pessoas, observando e avaliando seus patrões dentro do ambiente doméstico. O andamento é lento e silencioso, coalhado de elipses. Galardoado com o César francês e o Oscar de melhor filme estrangeiro.
Histórias Cruzadas – Emma Stone, Octavia Spencer e Viola Davis ilustram o tratamento dado às empregadas negras pelas patroas brancas no Sul dos Estados Unidos. O entrecho tem por cenário o Mississippi, comodamente colocado a distância no tempo e no espaço, como que a sugerir que essas coisas não acontecem mais aqui e agora.
A Teta Assustada (Peru, 2009, 1h35), direção de Claudia Llosa. Esse filme endereça-se a um problema dos mais terríveis: o estupro sistemático de mulheres em situação de guerra civil, como ocorreu nos Balcãs e na África. No caso, o Peru dilacerado entre o exército e o Sendero Luminoso. A “teta assustada” seria uma doença transmitida aos filhos pelo leite de mulheres grávidas estupradas, tornando-os medrosos e tristes. A protagonista, vítima da doença, precisa levar a mãe para ser enterrada em sua aldeia natal, mas não tem recursos, pois não passa de uma empregada doméstica em casa de família rica que a explora. A beleza e originalidade do filme são acentuadas pelo bom uso de canções quéchuas, com incursões pelo “realismo mágico” que marcou as artes hispano-americanas. Com Magaly Soler. Ganhou muitos prêmios, entre eles o Urso de Ouro em Berlim.
Os brasileiros já abordaram o tema algumas vezes. Em Romance da Empregada (Direção: Bruno Barreto, 1988, 1h30), Betty Faria é a moça trabalhadeira que, além de aturar uma patroa irritante, tem em casa um marido bêbado e desempregado. Acaba por encontrar um senhor mais velho, que a trata bem e lhe dá valor. A comédia Domésticas (Direção: Fernando Meirelles e Nando Olival, 2001, 1h30) traz cinco histórias de cinco diferentes criadas, com personalidades e anseios diferentes. Uma quer ser artista de telenovela, outra é mal casada, mais outra quer casar, ainda uma outra é religiosa, e assim por diante. As cinco atrizes ganharam conjuntamente o prêmio de atuação nos festivais de Recife e do Ceará; o filme também levou alguns prêmios em festivais internacionais menores. Trair e Coçar É só Começar (Direção: Moacyr Góes, Brasil, 2006, 1h23) é mais uma comédia, desta vez sobre infidelidades reais ou imaginárias em vários casamentos, tendo como pivô uma empregada doméstica.
Já era tempo de surgir este Que Horas Ela Volta?, tratando o assunto com seriedade e sutileza, escavando camadas mais profundas.
Walnice Nogueira Galvão é professora emérita da FFLCH da USP e integra o Conselho de Redação de Teoria e Debate.