Estante

Eugênio Bucci realiza hoje, no meio jornalístico, o importante trabalho de propor uma discussão, com base intelectual, sobre o meio de comunicação mais decisivo em nosso tempo: a TV. Evidentemente, certas resistências podem surgir ao que ele faz, já que seu ponto de vista não é o da condenação sumária desse meio tão industrializado e, por isso mesmo, tão controlado pelo capital, mas o de sua compreensão enquanto portador de signos de nosso tempo. Basta lembrar que, quando uma socióloga que viria a falecer prematuramente, Marialice Foracchi, dedicou por volta de 1968 um artigo em revista de grande circulação ao que chamou de “o fenômeno Roberto Carlos”, ela foi muito criticada – não porque elogiasse o ídolo de massa, mas simplesmente por dar-lhe a dignidade de considerá-lo como objeto de um discurso científico... Há, entre os próprios intelectuais, muito preconceito contra o mero fato de pensar certos assuntos.

Mas, voltando a Bucci, como seu trabalho se faz pela imprensa1, a discussão que nele ocorre é enriquecedora para o público. E com essa palavra, público, entramos de sola na questão: Eugênio tem toda a razão em afirmar o papel decisivo da TV na constituição do espaço público no Brasil. Nosso país se enxerga – como Maria Rita Kehl já havia acentuado em seu Eu vi o Brasil na TV – através da mediação que dele fornece esse meio de comunicação. Mas isso não significa que a TV formate, mecanicamente, os corações e mentes dos brasileiros. Ela precisa compor-se com os gostos do público. E por isso é ótimo estudá-la quando se quer entender, melhor que a vulgata marxista, o que pode significar “ideologia”. Esse termo acabou sendo entendido, quase sempre, como resultado de um planejamento a frio, de uma manipulação deliberada, a portas fechadas, por um pequeno grupo de aspirantes a dominadores do mundo. Ora, com as inevitáveis exceções de praxe, só há ideologia quando o próprio emissor do discurso ideológico acredita no que faz; e o que um livro como este mostra é que, se existe ideologia (termo com o qual o autor parece não simpatizar muito), é justamente nesse encontro do emissor com o receptor, do meio de comunicação com seu público, um encontro carregado de emoções e afetos justamente porque ambos os lados dão uma certa fé ao que fazem.

Mas é inegável que a TV, no Brasil (porque é dela que trata Eugênio, e não da TV no mundo ou em sua essência), contribui para dificultar uma consciência democrática. E nesse aspecto o deslavado apoio da Rede Globo a Collor, em 1989, é apenas a ponta visível do iceberg: porque todo dia, pouco importando de que assunto a TV fale, seja de amor ou de consumo, ela estará concorrendo predominantemente para a manutenção de um viés autoritário.

Há, claro, exceções; eu acentuaria o empenho que a Globo, já nos anos 70, pôs na mudança nas relações entre homens e mulheres. Homens começaram a chorar, mulheres a trabalhar, o sexo apareceu como algo positivo. Esse forte investimento pedagógico é bem-sucedido. E isso merece nota, porque, como observa Eugênio, o mais das vezes as campanhas educativas explícitas são muito pouco eficazes – haja vista a do “Bráulio”, que pretendia ensinar os homens do país a usar camisinha no sexo eventual. O mesmo também valeria se o sr. Roberto Marinho realmente coibisse o que ele próprio às vezes denuncia como imoralidade em sua rede de TV, ou se, lembrando sua condição de membro da Academia Brasileira de Letras, resolvesse iniciar uma campanha pela cultura e a ciência – coisas que, sabe-se, a Globo não faz, e não apenas porque o dono não exige que faça.

O enfoque autoritário é da ordem da heteronomia: longe de ajudar as pessoas a encontrar seu próprio caminho (autonomia significa que cada um legisle para si próprio), a comunicação em nosso país procura subordiná-las a uma lei externa, quase anônima, sem nenhum controle democrático. Para fazer política na TV, não é preciso falar em política: com raras exceções (a defesa da mulher e por vezes a do negro), o que se ensina é a gastar.

Em suma, a maior qualidade dessa obra está na história do país relatada pelo viés de sua constituição num imaginário público basicamente montado em torno da televisão. Embora o livro cubra a Presidência de Itamar Franco e parte da de Fernando Henrique, sua história não é a dos fatos ou da economia, mas aquela que talvez seja a mais eficaz, a da construção de um imaginário no qual Ayrton Senna é tão real quanto o Real, em que a moeda não vale mais que as lágrimas de tristeza de Xuxa etc. Ninguém entenderá o Brasil em que vive se não prestar a devida atenção a essa vivência pública. Esse o erro das análises ditas “sérias”, por exemplo economicistas: não percebem que a ação dos seres humanos sempre tem forte base afetiva, e que o mero jogo da moeda ou dos argumentos não supre o engate emocional num projeto de país.

Gostaria, porém, de fazer uma crítica a esse belo livro: não me parece adequada a oposição entre “a realidade” e “sua representação na TV”, que Eugênio utiliza no prefácio conceitual a suas crônicas. Pois o plano “imaginário” não seria, também, real2? É claro que a pobreza, o desemprego, a infelicidade que fazem parte tão essencial de nossa realidade aparecem pouco na telinha – ou melhor, aparecem, e até bastante, só que sempre se dizendo que estão em vias de solução. Mas as maravilhas que a TV exibe (o seu “imaginário”) também são reais, e isso sobretudo na medida em que produzem efeitos. E a razão disso é uma peculiaridade do mundo das relações humanas, que o distingue, por exemplo, do objeto das ciências exatas e biológicas. Quando se pensa o homem, não dá para separar claramente a realidade de sua representação mental, pela simples razão de que o ser humano vive na história, ou seja, é um ser sempre incompleto, construindo seu próprio destino.

Por isso, sua “realidade” não é o que está dado (e que seria representado com maior ou menor fidelidade), mas, ao contrário, sua incompletude, exigindo que ele se projete no rumo daquilo que ainda não é. Daí se segue essa extraordinária eficácia da TV, que se dá fazendo-nos ser o que não somos. Não somos – e por isso concordo com Eugênio que a TV não representa “a realidade”; mas ela nos faz, em interação com nossos próprios desejos, ser algo – e neste ponto ela faz mais do que copiar ou falsificar a realidade: ela constitui uma realidade. Em suma, longe de afastar-nos de nossa natureza, a TV ajuda a construí-la, e isso porque a natureza humana consiste em ser cultura, em ser história, e portanto sempre inacabada.

Esta divergência, porém, apenas me parece concordar com o eixo central das análises do próprio autor. Porque, se em textos mais antigos, como sua análise da novela Corpo a corpo (em O peixe morre pela boca), ele confrontava a produção imaginária com um real a ela exterior e anterior, isso já não ocorre em Brasil em tempo de TV. Nessas crônicas sensíveis e inteligentes, nas quais é evidente uma inspiração no Roland Barthes das Mitologias - que garimpava nas propagandas e no dia-a-dia dos meios de comunicação o que esses têm de manipulador -, o que Eugênio ressalta é como o desejo dos espectadores encontra, nas mensagens dirigidas à massa, o modo de se investir. Ora, desde que lidamos com o desejo, fica pelo menos difícil aceitar termos como “realidade”, que remetem vezes demais a uma concepção mecanicista, que pode valer para as ciências exatas ou mesmo da vida, porém não cabe para a relações sociais. Tanto é assim que a ênfase na “realidade”, no campo do marxismo, precisou acompanhar-se de uma supervalorização de uma economia moldada no trabalho quase manual do operário sobre a matéria-prima natural; e foi essa uma das maiores dificuldades do marxismo engessado para entender uma sociedade que reduz mais e mais esse tipo de trabalho para substituí-lo por outros em que o pensamento adquire crescente importância. E o próprio do pensamento, como da imaginação, consiste em engendrar mundos diversos do existente, em desfazer a realidade para jogar com o que ainda não é mas pode vir a ser.

A diferença de idéias entre nós não é, pois, decisiva. E enfatizo a importância da forma crônica, que Eugênio usa: ela também tem um papel pedagógico, ajudando o leitor a fazer sua crítica do vivido. Ignorar o papel do vivido é tão grave quanto esquecer a necessidade de criticá-lo; e o mérito desta obra está em mover-se, e bem, no encontro dessas duas exigências.

Renato Janine Ribeiro é professor de Ética e Filosofia Política na USP.