"As leis da China estipulam que quem desrespeitar o imperador deve ser punido com a morte. Como não definem o que é essa falta de respeito, qualquer coisa pode fornecer pretexto para reprimir a vida e exterminar a família que se queira. Basta que o crime de lesa-majestade não seja especificado para que o governo degenere em despotismo."
Montesquieu, "Do Espírito das Leis"
Nos anos 80, sob patrocínio das grandes potências industriais do mundo capitalista, surgiu uma nova ideologia motivada pelas campanhas internacionais contra o "narco-terrorismo". A elaboração dessa "ideologia antiterrorista" decorreu de vários fatores: 1) a decadência do anticomunismo, especialmente com a perestroika, quando o "mundo comunista" faz uma opção declarada pela economia de mercado; 2) o declínio dos grandes movimentos de massas e das "revoluções sociais", paralelamente à multiplicação das ações políticas (terroristas) conduzidas por pequenos grupos sob impulso de contradições sociais de ordem religiosa, étnica, ideológica, ou de simples esquizofrenia política; 3)as dificuldades teóricas de trabalhar o anticomunismo nas sociedades de massas, manipuladas pela mídia e avessas a elucubrações filosóficas como a negação do materialismo, a supremacia do Estado, o desaparecimento do indivíduo; 4)as facilidades práticas de trabalhar o sentimento antiterrorista das massas, assustadas com as imagens ao vivo de corpos estraçalhados nos aeroportos, homens encapuçados segurando reféns, prédios destruídos; 5)a maior capacidade aglutinadora, nas sociedades fragmentadas por conflitos sociais, do sentimento antiterrorista face ao anticomunista, pois enquanto este "divide" a sociedade aquele "aglutina", sendo capaz de formar um "consenso" antes inimaginável entre partidos e organizações historicamente adversas.
Simultaneamente ao surgimento dessa "ideologia antiterrorista", por si só uma novidade, desenvolveu-se uma onda de limitações às liberdades democráticas, o que contou com amplo apoio da "opinião pública" e dos partidos políticos desejosos de esconjurar o fantasma do terrorismo. A Europa, por exemplo, para fins de repressão ao terrorismo, "unificou-se" em 1978 com o chamado "espaço judiciário europeu", portanto muito antes da tão sonhada unificação econômica a realizar-se em 1992. Nesse "espaço judiciário", os acusados de terrorismo carecem de inúmeros direitos tradicionalmente assegurados aos acusados de crimes políticos, como o direito de asilo, de quebra da incomunicabilidade e da anistia, ao mesmo tempo que sofrem severas restrições no plano processual penal. Nos países europeus signatários da Convenção Européia contra o Terrorismo, o delito de terrorismo perdeu o status de crime político, sendo que este foi reduzido aos chamados delitos de opinião e dependendo da opinião o seu autor pode vir a ser classificado de terrorista, como no "Caso 7 Aprile", que envolveu o professor italiano Toni Negri numa trama judiciária destinada a intimidar todos aqueles que defendiam uma transformação radical do Estado."1
De todas as ameaças às liberdades públicas contidas nessa escalada repressiva do Estado, motivada pelas ações terroristas, a maior delas era e ainda é aquela decorrente da impossibilidade de se definir, com segurança e certeza, segundo o princípio do nullum crimen sine lege2 o que é terrorismo. Por quê?
A explicação para isso é que o Estado vê na figura jurídico-política do terrorismo um poderoso sistema de defesa (e de ataque) contra todos aqueles que buscam sua transformação. A repressão ao terrorismo não procura, em primeiro lugar, a proteção de vidas humanas, e sim a sobrevivência do próprio Estado. Por isso ele considera que todo ato terrorista, antes de ser um ato contra as pessoas, é contra ele próprio. As lutas sociais geram ações de diferentes naturezas e o Estado não pode, consoante a tradição jurídica liberal, tipificá-las com precisão nas leis repressivas. O ritmo das lutas sociais é muito mais acelerado do que a capacidade do Estado de criminalizá-las a partir dos rígidos critérios do Direito Penal liberal, daí a importância da figura jurídica indeterminada, ambígua, cambiante, flexível do terrorismo e outras categorias congêneres como a "espionagem" e a "sabotagem". A palavra terrorismo (não o fenômeno político que tem origem na Revolução Francesa como Terror de Estado) é de aceitação recente pelo mundo jurídico. Foi utilizada pela primeira vez por Gunsburg na Conferência de Bruxelas para unificação do Direito Penal, em 1930. Foram necessárias várias décadas de lutas e de repressão para que o direito "incorporasse" uma expressão que pudesse operacionalizar a ação repressiva do Estado no combate ao movimento social. Os anarquistas, por exemplo, não eram reprimidos como terroristas, mas como niilistas, bandidos, delinqüentes políticos, libertários etc. É evidente que o terrorismo já existia muito antes de 1930, e a palavra terrorismo também, haja vista o grande debate entre Lenin, Trotsky e Kautsky. Mas para o direito, a palavra terrorismo, enquanto categoria-chave do sistema de repressão e defesa do Estado, é relativamente recente. Uma das razões foi a firme resistência que os juristas de formação liberal ofereceram, e de certo modo ainda oferecem, a todas as figuras delituosas de contornos imprecisos e configuração duvidosa. O fato é que a palavra terrorismo foi universalmente incorporada aos sistemas repressivos em maior ou menor escala e, no caso brasileiro, incorporada ao texto constitucional e em vias de ser regulamentada por lei ordinária.
A atual Constituição Federal, que assegurou ao país um "Estado Democrático de Direito" (art. 11), é inovadora no que concerne ao terrorismo. Ela definiu como um dos princípios fundamentais da República o repúdio ao terrorismo (art. 4º, inciso VIII) e considerou como inafiançável e insuscetível de graça ou anistia a prática do terrorismo (art. 5º, inciso XLIII). Mas o que é terrorismo? A Constituição deixou para que uma lei ordinária o definisse. Agora já temos, como legado do ex-ministro da Justiça Saulo Ramos, o anteprojeto de lei que "revoga" a Lei de Segurança Nacional, ao transferir para o Código Penal os crimes contra o "Estado Democrático e a Humanidade". Antes, porém, de qualquer comentário sobre esse projeto, cabe uma rápida menção sobre como a nossa Constituição enfocou o problema do terrorismo vis-à-vis a ideologia antiterrorista. O artigo 5º, inciso XLIII, da Constituição, diz:
"A lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática de tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem".
A Constituição Federal incorpora, com notável avanço, o que há de mais importante na ideologia antiterrorista, ao mesmo tempo que abandona o surrado e desvalorizado anticomunismo. Primeiro: os acusados e condenados por crimes de terrorismo não gozam dos direitos de graça e anistia tradicionalmente assegurados aos presos políticos. Segundo: o crime de terrorismo é inafiançável. Terceiro: o crime de terrorismo vem associado ao tráfico de drogas (narcoterrorismo) e aos crimes hediondos(criminalização do social). Quarto: respondem pelo crime de terrorismo os mandantes, os executores e os "omissos", instituindo-se assim um vigilantismo típico das sociedades totalitárias. Finalmente, confirmando o abandono do anticomunismo, os partidos institucionais de esquerda são plenamente legalizados. Doravante, segundo a Constituição Federal, temos, de um lado, os terroristas, os criminosos, os "sem-direitos", e, de outro, os cidadãos com direitos democráticos plenos, perfazendo, no plano jurídico-repressivo, uma "maioria" até então jamais obtida no plano real. Mas quem são esses terroristas? Vejamos o que o ex-ministro da Justiça tem a dizer.
O anteprojeto de lei elaborado por Saulo Ramos e destinado a introduzir no Código Penal título relativo aos crimes contra o "Estado Democrático e a Humanidade", "revogando" a famigerada Lei de Segurança Nacional, apresenta, indubitavelmente, um duplo avanço. O primeiro, positivo, porque (re)insere no espaço jurídico-repressivo ações do Estado até então descriminalizadas, como a tortura, os desaparecimentos, o genocídio, a conspiração golpista. A criminalização da prática da tortura e dos desaparecimentos é sem dúvida um fator positivo na proteção jurídica aos direitos humanos. O segundo, negativo, porque traz para o campo jurídico-repressivo a indeterminada, cambiante, flexível e duvidosa figura do terrorismo, violando, assim, a necessária segurança e certeza intrínsecas às figuras penais. Com isso, o Estado "recupera" o seu potencial repressivo perdido na criminalização de seus atos de rotina (tortura e desaparecimento), ao ficar autorizado a lançar a acusação de terrorismo sobre todos aqueles que:
art. 373. Constitui crime de terrorismo o ato de:
I) devastar, saquear, assaltar, explodir bombas, seqüestrar, incendiar, depredar, ou praticar atentado pessoal ou sabotagem, com dano ou perigo efetivo a pessoas ou bens, por motivo de facciosismo político-social, ou com objetivo de coagir qualquer dos Poderes da República;
II) apoderar-se ou exercer o controle, ilicitamente, de aeronave, embarcação ou outros, meios de transporte coletivo.
III) apoderar-se ou exercer o controle, ilicitamente, de indústria de propriedade da União ou sob seu controle, seja através de empresa pública ou sociedade de economia mista, de usinas de geração de energia ou de suas retransmissoras, e de meios de comunicação.
Pena - reclusão, de dois a dez anos. Parágrafo 1º - Se, do ato, resultar Lesão corporal grave ou morte:
Pena - reclusão, de quatro a quinze anos, sem prejuízo da pena cominada à violência.
Parágrafo 2º - São circunstâncias agravantes:
I - ser o agente militar ou funcionário público, a este se equiparando o empregado de autarquia, empresa pública ou sociedade de economia mista.
II - ter, no caso de concurso de pessoas, promovido ou organizado a cooperação do crime, ou dirigido a atividade dos demais autores e participantes.
O próprio ex-ministro reconheceu que, na elaboração do projeto de lei, a maior dificuldade encontrada "foi a definição de crimes como o genocídio, a tortura e o terrorismo"3. O que significa reconhecer essa dificuldade de definir o que é genocídio, tortura e terrorismo?
Do ponto de vista do Estado significa que a auto-incriminação por atos de tortura, genocídio e desaparecimento, pode, na prática, ser "escamoteada", já que a imprecisão desses crimes possibilita interpretações no sentido de inocentar os agentes estatais. Nesse caso, o Estado marca um ponto diante da opinião pública apresentando-se como "democrático" e "civilizado" ao reprimir a tortura, o genocídio e os desaparecimentos, ao mesmo tempo que pode se valer das dificuldades de se definir esses crimes como válvula de escape (inocentadora) para seus agentes.
Do ponto de vista das liberdades públicas, a dificuldade de se definir o crime de terrorismo deixa o cidadão à mercê do aparato repressivo do Estado, pois a este pertence o jus puniendi, a iniciativa de incriminar as pessoas. Sobre essa questão dizia o saudoso criminalista Heleno Fragoso: "Não se deve configurar na lei uma específica figura de delito denominada terrorismo, mas sim definir as diversas condutas em crimes autônomos, com descrição completa do comportamento delituoso" (Terrorismo e Criminalidade Política, Forense, Rio de Janeiro, 1981, p. 127). E mais: "Não existe uma específica figura de delito denominada 'terrorismo'. Essa designação se aplica a diversas espécies de crimes, que se caracterizam a) por causar dano considerável a pessoas e coisas; b) pela criação real ou potencial de terror ou intimidação generalizada; e c) pela finalidade político-social" (op. cit., p. 12).
Do ponto de vista do movimento sindical, a propaga do ex-ministro Saulo Ramos surge como uma ameaça sem precedentes, mesmo durante a ditadura militar. A simples detenção de um ônibus ("... outros meios de transporte coletivo") por um motorista em greve pode custar-lhe a condenação por crime de terrorismo, com pena de dois a dez anos de reclusão, sendo circunstância agravante o fato de o motorista ser empregado de empresa estatal. A ocupação de fábricas sob o controle do Estado por seus empregados também poderá ensejar a acusação de terrorismo, com as mesmas penas e agravantes, sobretudo para os líderes grevistas e sindicais ("... promovido ou organizado a cooperação do crime, ou dirigido a atividade dos demais autores e participantes").
O projeto do ex-ministro da Justiça, Saulo Ramos também inova ao prever "isenção de pena para o arrependimento eficaz e a colaboração com as autoridades, moderno instituto legal, eficientíssimo em outros países" ("Exposição de Motivos" - grifo nosso). É a seguinte a proposta sobre a matéria:
Art. 379 - É isento de pena o agente que, nas hipóteses de associação ou concurso de pessoas, e sem ter praticado qualquer outro crime, abandona o grupo ou a associação e colabora com as autoridades para identificação dos remanescentes.
A técnica policial da "infiltração" é de todos conhecida. A história do movimento social registra vários casos famosos, como o do policial infiltrado no movimento revolucionário russo, Malinovsky, e, no Brasil, do agente provocador "cabo Anselmo".
Mas os tempos mudaram. Recentemente na Europa, em países como Alemanha e Itália, que viveram a experiência de grupos radicais com propostas de ações terroristas para mudar o Estado, como a RAF (Fração do Exército Vermelho) e as BRs (Brigadas Vermelhas), os aparelhos policial e judiciário tiveram que inovar nas técnicas de repressão.
Além da infiltração, ampliou-se o instituto do "arrependimento eficaz" no sentido de abranger também os delitos com motivação política. Os "arrependidos" que entregassem seus companheiros às autoridades policiais eram beneficiados com a eliminação das penas e outras facilidades carcerárias. Essa técnica, sem dúvida alguma, significa um avanço na medida em que pode substituir a tortura como forma de se obter informações. Todavia, ela cria um "colaboracionismo policial" típico de sociedades totalitárias. Muitas pessoas indevidamente envolvidas em atos de terrorismo, temerosas do que pudesse acontecer com elas, saíram acusando e lançando suspeitas sobre inocentes. Na Itália, por exemplo, houve um verdadeiro pânico no interior dos movimentos sociais e suas organizações, pois seus militantes podiam a qualquer momento ser alcançados pela confissão de um "arrependido". As universidades foram duramente atingidas e inúmeros intelectuais envolvidos em processos judiciais. Criou-se, com isso, um verdadeiro clima de terror. A inclusão no Código Penal do delito de "terrorismo" e do "moderno instituto legal do arrependimento eficaz" deve, portanto, ser encarada com reservas por todos aqueles que prezam as liberdades democráticas.
José Manoel de Aguiar Barros é advogado formado pela USP, mestre em Ciências Sociais, e professor da Getúlio Vargas-SP.