Internacional

O problema que está colocado é se a nova geração da esquerda chilena dará conta de construir um projeto mais democrático para o país

Em posse, Boric declarou: “estamos novamente abrindo as grandes alamedas por onde passarão o homem livre e a mulher livre para construir uma sociedade melhor”. Foto: Reprodução

Segundo anunciado na semana passada pela Secretaria-Geral da Presidência da República, o plebiscito da nova Constituição acontecerá num domingo, no dia 4 de setembro de 2022. Nessa data as chilenas e os chilenos dirão se aprovam ou rejeitam a nova Constituição da República. A Constituição de Pinochet, imposta em 1980 sob Terror do Estado, poderá finalmente ser substituída. É cedo para afirmar, como têm feito alguns analistas, que a nova Carta representará o sepultamento definitivo do decantado modelo chileno. Como a luta é eterna (e a história não obedece a leis férreas), certamente os rumos do Chile continuarão em disputa. A questão, portanto, não é se assistiremos ao fim do modelo na pátria do neoliberalismo. O problema colocado é se a nova geração da esquerda dará conta de construir um projeto mais democrático e menos dependente dos pretensos “consensos” do que este que vigou nas últimas décadas.

Recordemos brevemente a história. A geração de Gabriel Boric não tinha nascido quando os chilenos foram convocados a votar, em 1988, no chamado plebiscito sucessório – considerado o marco zero da transição democrática. Na época, Pinochet apostou que teria o apoio dos cidadãos para permanecer mais oito anos no poder e, numa manobra ousada, convocou o plebiscito para definir os destinos da ditadura. Duas ordens de preocupações estavam por trás daquela iniciativa. Por um lado, ele tentava conferir, através do voto popular, alguma legitimidade para o seu governo ilegítimo; por outro, procurava estabelecer, no caso de derrota, as condições aceitas pelas Forças Armadas para que houvesse a mudança de regime.

Além de garantir a impunidade de Pinochet et caterva, a ideia era blindar o modelo neoliberal das disputas políticas na futura etapa democrática. Para que isso se efetivasse, a Constituição de 1980 não poderia ser alterada. O plano consistiu em estabelecer as bases de um regime liberalizado, não democrático, que os ideólogos da ditadura denominaram de “democracia protegida”, eufemismo para a jaula de aço em que meteram o país a partir de então. As condições para fazer as mudanças constitucionais tornaram-se impossíveis por conta das regras criadas depois do plebiscito. Com o resultado adverso, Pinochet consentiu em realizar as eleições, mas alertou: “la Constitución no se cambia”. A maldição do ditador pairou sobre o país por mais de três décadas. Na verdade, não era uma tarefa fácil lidar com os chamados enclaves autoritários, mas nem por isso o novo regime precisaria ter se tornado refém do falso dilema de escolher entre fazer as reformas estruturais ou preservar a democracia.

Agora os tempos são outros. A nova esquerda não teria por que embarcar numa onda de acordos com as elites conservadoras a título simplesmente de proteger a democracia. Gabriel Boric acabou de conquistar uma vitória consagradora nas últimas eleições presidências, nas quais o candidato do governo amargou um vexaminoso terceiro lugar. No segundo turno, numa eleição polarizada com a extrema-direita, o ex-líder estudantil se tornou o presidente mais votado da história chilena. Os resultados eleitorais também expressaram o desejo de mudança que sacudiu o país a partir de outubro de 2019. A explosão do chamado “estallido social” confirmou o que muitos já sabiam: o grau de descontentamento dos chilenos com o seu modelo político, econômico e social é imenso. Em 25 de outubro de 2020, 78,27% dos cidadãos aprovaram iniciar o processo de redação de uma nova Constituição. Quanto ao órgão encarregado de redigi-la, 78,99% foram a favor de uma Convenção Constituinte Independente do Congresso Nacional. Em 15 e 16 maio de 2021, se realizou a eleição dos constituintes. A maioria dos eleitos não pertencia aos partidos tradicionais. Por sua vez, os partidos de direita e extrema-direita não conquistaram o número de assentos que lhes permitisse exercer o poder de veto sobre temas indesejáveis.

Os 155 constituintes eleitos se agruparam em coletivos por afinidade política e se distribuíram entre as sete comissões temáticas permanentes. Os coletivos não são fixos e os mais atuantes são: “Aprovo Dignidade”, “Lista do Povo”, “Independentes Não Neutros”, “Listas do Aprovo”, “Vamos por Chile”. As comissões temáticas funcionarão até o dia 29 de abril, e se aproxima o prazo de entrega dos informes pendentes para aprovação no plenário. As sete comissões são: “Sistema político, governo, poder legislativo e sistema eleitoral”; “Princípios constitucionais, democracia, nacionalidade e cidadania”; “Forma de Estado, ordenamento, autonomia, descentralização, equidade, justiça territorial, governos locais e organização fiscal”; “Direitos fundamentais”; “Meio ambiente, direitos da natureza, bens naturais e modelo econômico”; “Sistema de justiça, órgãos autônomos de controle e reforma constitucional”; “Sistemas de conhecimento, ciência e tecnologia, cultura, artes e patrimônio”.

Faltando cinco meses para a realização do plebiscito de saída, o clima tende a esquentar.  Já se ouvem duras críticas às propostas de eliminação do Senado, descentralização do Sistema Judicial e adoção do Estado Plurinacional, antiga demanda dos povos originários. Para se ter uma ideia dos temas já aprovados nas Comissões Temáticas basta olhar o capítulo sobre Direitos Fundamentais. Centenas de propostas abarcam direitos dos trabalhadores e trabalhadoras; direitos à educação; saúde; seguridade social; aposentadorias e pensões; moradia; direitos políticos e civis; direito à verdade, à memoria e reparação integral das vítimas dos delitos cometidos por agentes do Estado; direitos individuais e coletivos indígenas e tribais; direitos dos idosos, crianças e adolescentes; direitos das mulheres; direitos reprodutivos; direitos à dissidência e diversidade sexuais; direito humano à água e ao saneamento... a lista é de tirar o sono de conservadores e liberais. Até o ex-presidente Ricardo Lagos, socialista de velha cepa, há poucas semanas declarou que não será o fim do mundo se a nova Constituição não for aprovada. Jogo de cena? Pode ser, mas também pode não ser.

De fato, para que a Constituição emanada da Convenção Constituinte substitua a Carta de Pinochet o plebiscito de saída precisa superar 50% de eleitores aptos a votar. Desta vez o voto será obrigatório, e não facultativo como foi desde a última reforma eleitoral. Segundo pesquisas recentes, o número de indecisos ainda é elevado e o percentual de rejeição tem crescido, acendendo a luz amarela dentro e fora da Constituinte. Se vier a ser rejeitada, a Constituição de Pinochet seguirá em vigor, como desejam os partidos de direita que não alcançaram o número mínimo de representantes para ao menos vetar as matérias indesejáveis. Daqui para frente, as chantagens tendem a aumentar, não somente sobre os constituintes como também sobre o governo. (Para informações oficiais sobre o processo constituinte consultar:  https://www.gob.cl/processoconstituyente/).

Mas hoje os tempos são outros. No plebiscito de 1988, Pinochet obteve 44% de votos – cerca de 3,2 milhões chilenos votaram a favor de sua permanência no governo; as Forças Armadas estavam coesas e lhe prestavam obediência. Os riscos de retrocesso eram reais. Agora não. Sebastian Piñera por pouco não conseguiu terminar o mandato. Depois de decretar o toque de recolher, recordando os dias mais tenebrosos da ditadura, Piñera foi obrigado a recuar, abrindo o caminho para a assinatura, em 15 de novembro de 2019, do “Acordo pela Paz e a nova Constituição”. A Renovação Nacional (RN) e a União Democrática Independente (UDI), os partidos direitistas de sua base parlamentar, não tiveram alternativa senão assiná-lo. Seria um grave equivoco Boric repetir o erro da velha Concertación.

As circunstâncias da chegada da nova esquerda chilena ao poder são muito diferentes daquelas do final da ditadura. Os EUA já não têm o poder do imediato pós-guerra fria, quando atropelaram o direito internacional e se impuseram como polícia do mundo; a economia capitalista mundial, que já vinha abalada pela crise financeira de 2009, não superou o impacto da crise sanitária causada pela pandemia da covid-19, e a recessão, o desemprego e a inflação aumentam em todo mundo. Na América Latina, os partidos de direita que se aproveitaram do esgotamento da primeira onda progressista para alcançar o poder, não conseguiram sustentar as políticas ultraliberais de seus governos, e vem caindo sucessivamente como já aconteceu na Argentina, na Bolívia, no Peru – e pode se repetir este ano na Colômbia e, oxalá, também no Brasil. No próprio Chile, a vitória de Gabriel Boric nas eleições presidenciais não foi senão a prova do colapso das políticas neoliberais desses governos direitistas.

Nessas circunstâncias, não há nenhuma razão para a nova esquerda se submeter à mesma ordem de chantagens de 35 anos atrás. Naquela época, os setores majoritários da Concertación argumentaram que não valeria a pena sacrificar as conquistas democráticas para fazer as reformas estruturais. A cada novo governo, seja da democracia-cristã, seja dos socialistas, o falso dilema se recolocou. As reformas estruturais foram sendo adiadas sine die e a Constituição acabou mantida com pequenas mudanças que mais a legitimaram do que a alteraram. Ao fim do ciclo, como observa Antonio Manoel Garretón, a Concertación estava dividida entre “autocomplacentes” e “autoflagelados”. Para os primeiros, o país preservou o equilíbrio macroeconômico ao evitar as reformas estruturais; para os segundos, se as reformas tivessem sido feitas o país teria avançado no rumo certo da justiça social. Nunca chegaram a um acordo.

Há poucas semanas Boric referiu-se à herança que ele reivindica para o seu governo. No emocionante discurso de posse, declarou: “estamos novamente abrindo as grandes alamedas por onde passarão o homem livre e a mulher livre para construir uma sociedade melhor”. Foi uma grande ousadia associar o seu governo às ultimas palavras de Allende, transmitidas pela Radio Magalhaes naquele 11 de setembro de 1973, o dia  do golpe de Estado de Pinochet que fraturou a história e a memória dos chilenos. Para ser coerente com aquelas palavras, Boric precisará honrar o compromisso que assumiu com o povo chileno ao afirmar, em outra parte de seu discurso de posse, que:

“Quero dizer-lhes, compatriotas, que vendo suas caras, percorrendo nosso país, as das pessoas idosas cuja pensão não dá para viver, porque alguns decidiram fazer da previdência um negócio; as dos que adoecem e suas famílias não podem pagar seus tratamentos; as dos estudantes endividados; as dos camponeses e camponesas sem água, por seca e saque; as das mulheres que cuidam de suas crianças com transtornos de espectro autista (TEA); as das famílias que seguem buscando a seus detidos desaparecidos, que não deixaremos de buscar; as das dissidências e diversidades de gênero que têm sido discriminadas por tanto tempo; as dos artistas que não podem viver de seu trabalho porque a cultura não é suficientemente valorizada em nosso pais; as das dirigentes sociais que lutam por uma moradia digna nas ‘poblaciones’ do Chile; as dos povos originários despojados de sua terra, mas nunca de sua história; as da classe média sufocada; as dos meninos e meninas do Serviço Nacional de Menores (SENAME), nunca mais! nunca mais! as caras das zonas mais isoladas do país, como Magalhães de onde venho; as que vivem na pobreza esquecida. Com vocês é nosso compromisso”.

Que os seus compromissos de governo sejam honrados. Repetir os erros da Concertación seria um erro que o povo chileno jamais perdoaria. Ao mesmo tempo, acreditar cegamente nas instituições, emular o governo da Unidade Popular e supor que se possa fazer a revolução através da Constituinte pode terminar em tragédia. Nem uma alternativa nem outra parece ser a mais desejável para a construção de um projeto democrático e popular para o Chile do século 21. Que a nova geração da esquerda chilena não repita o passado e consiga superar o imenso desafio que a história lhe reservou.

Renato Martins é professor de Sociologia da Universidade Federal de Integração Latino-Americana (Unila)