O horizonte dos contos e romances de Lygia é contemporâneo, com incursões pelo passado não muito remoto.
Do ponto de vista social, esse mundo é paulista e até paulistano, urbano e metropolitano, com alusões ao passado interiorano ou rural. Movem-se nesse espaço a burguesia, grã-finos, intelectuais e artistas. Mas, para desmentir esse quadro, alguns contos dão bruscas guinadas, escapando desses limites e podem, por exemplo, seguir a trajetória de uma mulher pobre, que acaba por se tornar assassina (“A confissão de Leontina”).
A proeza desta confissão é sua oralidade, que muda de registro o discurso habitual de narradores e personagens de Lygia, ao trocá-lo por uma fala popular e semi-letrada. Ressalte-se a extrema sensibilidade de mostrar, sem teorizar e sem abstrair, mas pondo tudo isso na boca da própria vítima da via crucis, como o sistema patriarcal rejeita e degrada sistematicamente as mulheres, que são em princípio mais vulneráveis. De tombo em tombo, um dia ela se descobre criminosa a contragosto. A contragosto, mas sem perdão.
São de Lygia estas palavras: “A mulher escondida. Guardada. Principalmente invisível, a se esgueirar na sombra. Reprimida e ainda assim sob suspeita. Penso hoje que foi devido a esse clima de reclusão que a mulher foi desenvolvendo e de forma extraordinária esse seu sentido da percepção, da intuição, a mulher é mais perceptiva que o homem” (“Mulher, mulheres”).
Enquanto romancista e contista, Lygia é um fenômeno raro: não há muitas pessoas que possam se vangloriar de mais de 70 anos de produção literária contínua. É só fazer as contas, pois desde sua estreia em 1938, aos 15 anos, nunca mais parou.
Em suas mãos, a linguagem é instrumento dócil e maleável. Recusou o chulo predominante na contemporaneidade, de que ela todavia não se esquiva quando estritamente necessário – o que raramente ocorre. Tampouco frequenta as alcovas e as cenas de sexo.
Lygia pertence a uma linhagem em nossa literatura que vem de Machado de Assis – crítica, velada, expressa no bom português de quem sabe escrever e toma a literatura a sério. Nunca facilitou e nunca se mostrou sujeita a modas ou tendências. Seu lugar na literatura brasileira é da maior dignidade, e ela veio para ficar.
Digamos que Lygia a escritora desenvolveu uma persona discreta, reticente e reservada, semelhante àquela que escreve... sem lembrar que nos aguarda o susto, a crueldade, o exercício tortuoso e camuflado do poder, as muitas torpezas e vilanias desde as miúdas até às graúdas. Nem as crianças se salvam de serem homicidas. Se é exibido o gume acerado das relações humanas, não o é menos o bisturi com que a narradora as revolve.
O respeito que em larga escala desperta expressa-se na fartura de prêmios com que foi agraciada, os principais de seu país e o Camões da língua portuguesa. Foi, sem desdouro, indicada oficialmente para o prêmio Nobel pela União Brasileira de Escritores, em 2016.
Em todas essas décadas que sua carreira cobre, viu desfilarem à sua frente e ao redor muitas vogas de prosa literária. Passando ao largo das modas e mesmo das tendências, viu chegar, por exemplo, o regionalismo, mais tarde substituído pelo thriller urbano até hoje hegemônico – mas ficou imune à deleitação falocrática deste. Depois, vieram a saga da imigração; a ficção histórica; a prosa reivindicatória (de mulheres, negros, homossexuais); a desconstrução pós-moderna.
Por não aderir a modas, nunca obteve a notoriedade que distinguiu alguns de seus confrades por boas ou por más razões. Depois que as modas se foram, ela continuou afiando suas armas. Passando sempre ao largo, não ia embora com elas, ao contrário persistia e refinava.
Assim sua estatura solitária foi-se delineando sempre mais nítida e conquistando a consideração de todos.
Walnice Nogueira Galvão é professora Emérita da FFLCH-USP, integra o Conselho de Redação de Teoria e Debate