Regulação vs. emancipação
Na teoria política clássica, a tensão entre a regulação social e a emancipação social tem como fiadores o Estado nacional, o direito e a educação cívica. Em Hobbes, Locke e Rousseau isso se dá por meio do contrato social. Do pacto participam os indivíduos e suas associações. Ficam excluídos do contrato social os que não correspondem aos critérios tácitos de cidadania e também a natureza inumana – o meio ambiente, definido como um recurso econômico espoliável. No consórcio, somente recebem o estatuto de cidadãos os homens brancos e héteros. Mulheres e minorias fora do padrão hegemônico (indígenas, gays) e mesmo as maiorias étnicas (negros, negras) ficam excluídas.
Os grupos políticos que se autodenominam “conservadores”, qual a Ku Klux Klan, filiam-se à matriz patriarcal e colonialista de pensamento e opõem-se com uma indômita radicalidade à universalização do contratualismo, portanto, aos valores da modernidade. Não espanta a denúncia da filha de Olavo de Carvalho, em entrevista à Carta Capital, de que aprendeu a ler apenas aos doze anos quando foi morar com uma tia que, chocada com o descaso paterno, matriculou-a numa escola onde se sentava junto de crianças com sete anos. O abandono intelectual do pai, que provoca ojeriza, é consequência de um conservadorismo filosófico levado à prática por convicções discriminadoras in extremis, em nome das tradições. Não deveria ser psicologizado, mas criminalizado.
O movimento feminista pela igualdade de gênero, a luta contra o racismo pela igualdade racial, os grupos LGBTQIA+ em prol da liberdade de orientação sexual e as ações pelo compartilhamento das benesses civilizacionais, entre as populações rurais e urbanas, buscam nos ideais igualitários a base para a sociedade democrática, aberta a sociabilidades alternativas. Tais grupos, nos campos de batalha por direitos, criam a solidariedade dos iguais que encoraja a prosseguir em meio às adversidades.
Como sublinha Boaventura de Sousa Santos, em A Gramática do Tempo: para uma nova cultura política(Autêntica): “Embora a contratualização se assente numa lógica de inclusão/exclusão, ela só se legitima pela possibilidade de os excluídos – declarados vivos em regime de morte civil – virem a ser incluídos. A lógica operativa do contrato social está em permanente tensão com a sua lógica de legitimação. As possibilidades imensas do contrato coexistem com a sua inerente fragilidade”. Com certeza, o neoliberalismo potencializa e agudiza as contradições até o paroxismo.
Reformismo revolucionário
Aqui, importa salientar que a desejada contratualização para “todes” implica bens públicos: governos legítimos amparados na vontade popular por meio de eleições limpas, bem-estar econômico e social para o povo, segurança e respeito aos human rights e, ainda, uma identidade cultural nacional. O desgoverno no Brasil não contempla nenhum dos requisitos. A combinação do neoconservadorismo (Damares) com o neoliberalismo (Guedes) e o neofascismo (Bolsonaro) rompe os laços com a modernidade e mina os frágeis alicerces da democracia constitucional. Noutros termos, “o fundamentalismo religioso, o libertarianismo e a reciclagem do antigo anticomunismo” provocaram a “reemergência da direita brasileira”, aponta Luis Felipe Miguel, em O Ódio como Política: a reinvenção das direitas no Brasil, organizado por Esther Solano (Boitempo). Daí a governabilidade iliberal.
Neste contexto, em meio à crise pandêmica e à crise econômica agora acrescida pelo conflito bélico na Ucrânia cujas consequências se farão sentir além da Eurásia, o horizonte fica rebaixado. A luta de classes funciona como instrumento para domesticar, em vez de suplantar o capitalismo. A revisão da reforma trabalhista, que precarizou mais o trabalho e generalizou o desemprego na escala de milhões; a retomada de investimentos do Estado na educação, saúde, infraestrutura, moradias populares, inovação tecnológica etc. servirão num provável governo Lula para minimizar a exploração e humanizar o capitalismo com viés socialdemocrata, aos moldes da Europa ocidental pós-guerra. Contudo, concertações do jaez têm poucas chances de prosperar, a menos que se articulem com uma perspectiva de superação do sistema – para obter vitórias substantivas.
Nos países centrais, a utopia reduziu-se ao Estado-Providência. Nos países periféricos, ao Estado desenvolvimentista. A bandeira do socialismo foi guardada no armário, de onde só saiu em dias de festa, durante o inverno neoliberal. Conforme Thomas Piketty, em Capital e Ideologia (Intrínseca), a “sociedade justa é aquela que permite o maior acesso possível aos bens fundamentais e à participação nas várias dimensões da vida social, cultural, econômica, civil e política”. Seu propósito é, em síntese, “organizar as relações socioeconômicas, as relações de propriedade e a distribuição de renda e de patrimônio a fim de possibilitar aos membros menos favorecidos que se beneficiem das mais elevadas condições de vida possíveis”. Para o que é preciso ousar conquistar a justiça.
É difícil catalogar as políticas, acima listadas, em um reformismo com vistas a maquiar a dominação do capital, conquanto não proponham a alegórica tomada do Palácio do Planalto. Há virtude na empatia com o sofrimento das pessoas e humanismo nas ações institucionais que combatem a miséria e a pobreza, a desigualdade de gênero e de “raças”, a intolerância e a repressão policial para coibir as diferenças, promovendo a ascensão social das classes subalternizadas para qualificar a existência em sociedade. As reformas não se contrapõem às revoluções. Lucien Goldmann condensou ambas na expressão “reformismo revolucionário”, para preencher o vácuo de estratégias nas fileiras anticapitalistas e contornar as inflexões messiânicas na interpretação da história. O inimigo da utopia socialista é a carência de direitos, nunca foi a consciência do direito a ter direitos.
A herança do fascismo social
É correto afirmar que o ápice da legitimidade do Estado reside na conversão, sempre problemática, do tensionamento entre democracia e capitalismo num círculo virtuoso em que ambos prosperam, sem sacrificar a primeira no altar da acumulação. Não obstante, se espalham variantes da extrema-direita anunciando a crise do contrato social em uma espécie de ciberdistopia. “As redes sociais são importantes no processo de mudanças; mas são, antes de tudo, caixa de ressonância dos fenômenos que geram estados de opinião: não o revés. Fenômenos que podem ser produto de estímulos, muitos deles indiretos, que superpõem distintos modelos de controle político, criminal e militar que foram ignorados, aceitos e tolerados pelos atores sociais”, segundo Francisco Veiga et alli, em Patriotas Indignados: sobre la ultraderecha en la posguerra fria (Alianza). Sem o medo despertado pelo abalo nas estruturas do sexismo, do racismo e da homofobia as fakes news bolsonaristas sobre absurdas “mamadeiras de piroca” não teriam audiência.
Os valores associados à modernidade permanecem (liberdade, igualdade, solidariedade, autonomia individual, justiça social), mas sob o bombardeio de significados simbólicos díspares. As “narrativas” com enunciações que relativizam a autoridade da ciência, do conhecimento e do bom senso. Hoje, hordas negacionistas fazem fogueiras com as máscaras sanitárias para proclamar a “liberdade” de cada indivíduo à revelia da saúde pública e das recomendações da OMS e da Fiocruz, quando não invadem hospitais para afrontar as equipes de enfermagem e os pacientes. A arena pública virou um deus-nos-acuda, em que não são argumentos que contam, senão crenças subjetivas.
Duas questões (complementares) concorrem para a grave crise de garantias contratuais:
a) O pré-contratualismo, que bloqueia o caminho de agrupamentos sociais para usufruir direitos de cidadania, a exemplo do direito ao primeiro emprego e;
b) O pós-contratualismo, que confisca direitos adquiridos, como Temer e Bolsonaro fizeram ao cancelar programas sociais dos governos Lula e Dilma.
Numa e noutra hipóteses, cidadãos são jogados de volta ao estado de natureza hobbesiano com o carimbo delumpen-cidadania, legando de herança uma subclasse de excluídos. Na designação de Jessé Souza, uma “ralé” que reside em zonas afastadas, sem emprego fixo e formação profissional, em famílias monoparentais chefiadas por mulheres guerreiras apesar de dependentes da assistência social, e com tendência às lides criminosas para suprir a sobrevivência. Impossível mudar o status quo sem que adiram.
As formatações do fascismo atual não repetem experiências de 1920-1930. O “fascismo social”, entre nós, pode assumir traços do apartheid, com uma cartografia urbana que separa ricos e pobres; paraestatal, sob coação e regulação fora das instâncias legais (a cargo de milícias); contratual, onde a parte mais fraca está submetida ao poder de outra mais forte; financeiro, sob comando de investidores ao abrigo de intervenções democráticas no cassino das Bolsas de Valores. Neste emaranhado de horrores, há que fazer “a reinvenção solidária e participativa do Estado”, assinala o autor de A Gramática do Tempo. O Ato Pela Terra, em Brasília, foi quiçá o embrião de promissoras interseccionalidades.
Pelo socialismo participativo
As lutas futuras precisam ultrapassar os marcos da grande vitória conquistada pelo neoliberalismo, ao longo de duas gerações de hegemonia (desde 1980), que acondicionou o espírito da utopia no reino das necessidades, longe da liberdade.
A democracia liberal não conseguiu conter a espiral descendente do contrato social moderno, que despotencializou a emancipação por largo período. Suas limitações ficaram escancaradas em modalidades de descontratualizações impulsionadas pelo sinistro comboio neoconservador, neoliberal e neofascista. A democracia necessita da participação cidadã para encaminhar as tarefas que a representação não realizou.
Com uma plataforma em defesa de um mundo ecologicamente preservado e socialmente justo, o governo progressista liderado por Lula terá oportunidade de expandir o paradigma contratualista para o conjunto das brasileiras e dos brasileiros, em toda a sua diversidade, avançando nas lutas que propugnam a igualitarização de direitos, sem tratar a natureza como uma simples mercadoria. O aquecimento global não é uma metáfora. É uma realidade que ronda a própria sobrevivência da humanidade e do planeta.
Novas formas de sociabilidade política desafiam a legião de lutadores sociais e políticos com as sementes do socialismo participativo para o controle público do Estado. É hora de tirar as bandeiras vermelhas do armário e colocar o bloco na rua.
Luiz Marques é docente de Ciência Política na UFRGS, ex-secretário de Estado da Cultura do Rio Grande do Sul no governo Olívio Dutra