O papa começou a recolocar a Igreja como um fator que conta para a conjuntura e a despertar com isso reações das mais variadas entre crentes e não crentes
O papa começou a recolocar a Igreja como um fator que conta para a conjuntura e a despertar com isso reações das mais variadas entre crentes e não crentes
O papa lança luz sobre nosso processo brasileiro, quando menciona a necessidade de as mudanças estruturais virem acompanhadas de profundas mudanças pessoais e culturais. Resta saber o que vai ocorrer com este filho de nossa América em seu duro embate na Cúria Romana e tantas forças que farão de tudo para deter esta primavera. Não tenhamos ilusões
No final do último mês de maio, eu estava em Belo Horizonte para participar de um debate sobre fé e política, na Faculdade de Filosofia e Teologia dos Padres Jesuítas. Formávamos uma mesa com três expositores: quando fui anunciado, iniciou-se um tumulto na plateia, que, depois fui entender, fora organizado por um grupo da direita católica. O objetivo era impedir minha fala. Até aí, tudo dentro dos métodos próprios de um tipo de fascismo católico. Mesmo os gritos de “Viva Cristo Rei” retomavam o brado utilizado pelo franquismo. O que me surpreendeu foram os gritos histéricos, em megafones que lembravam os da Tradição Família e Propriedade (TFP): “Excomungados, vocês e o papa Francisco! Vocês estão excomungados pela prática comunista e o papa Francisco também!”
Começo esta reflexão mencionando esse episódio para que se tenha noção do alcance da revolução que as atitudes do papa Francisco vêm provocando no seio da milenar instituição que preside. Muita gente feliz, surpresa, entusiasmada. Muita gente revoltada, inconformada com a quebra de cânones considerados imutáveis, e com forte disposição para deter tais mudanças!
A vida de Francisco está sendo e será tudo, menos fácil. Ele começou a sentir o “tranco” desde o momento em que, eleito, abraça dom Cláudio Hummes, sentado ao seu lado durante o conclave, e ouve dele um enfático ”não se esqueça dos pobres”, e decide adotar o nome do revolucionário de Assis. O primeiro “tranco” físico, quando cardeais da Cúria tentavam dificultar que ele levasse consigo, pelo braço, seu amigo dom Hummes para acompanhá-lo em sua primeira aparição pública – porque não estava previsto no cerimonial. Em seguida, o “tranco” político do bando de cardeais que o cercaram no jantar realizado logo depois, com mil proposições e indicações.
Afinal, esse argentino que vinha do “fim do mundo” tinha furado uma fila de nobres e importantes pretendentes, entre os quais dois eminentes cardeais italianos, escolhas “certas” naquele conclave, e portanto não teria condições de assumir o papado sem as devidas “proteções” da corte! O problema é que o argentino que se habituara a andar de ônibus e metrô por Buenos Aires, em direção às favelas e zonas periféricas, mostrou saber logo o que queria e como queria “andar” por aqueles labirintos curiais da corte vaticana.
Primeira escolha desconcertante foi deixar de ocupar os aposentos que durante séculos abrigaram seus predecessores e ir morar numa espécie de hotel do Vaticano, a Casa de Santa Marta, fazendo as refeições num restaurante típico dos conventos religiosos, sem luxo nem privilégios. Logo vieram as andanças pela Praça de São Pedro, quebrando todos os protocolos, descendo do papamóvel para abraçar as pessoas, recebendo presentes, camisetas de futebol de uma infinidade de equipes, para desespero de Gianni, o careca simpático responsável por sua segurança. Depois, a primeira viagem: em direção a nenhum palácio eclesiástico ou civil, e sim a Lampeduza, a ilha onde aportam os milhares de africanos que recorrem à Europa em busca desesperada pela vida.
Até aí muita simpatia, poesia, e uma certa desconfiança de que algum marqueteiro havia orientado a nova direção da Igreja a promover um aggiornamento de sua imagem envelhecida, desgastada e repelida por tantos na moderna sociedade. Uma convicção de muitos de que o velho papado e a velha e sábia instituição milenar tratavam de reorientar seu estilo para a clássica regra da sobrevivência, mudando aparências e formas para não mudar o conteúdo.
O problema, de novo, é que o velho Bergoglio parece não ter entendido o suposto script, e seguiu fazendo gestos e afirmações cada vez mais desconcertantes, como a condenação do luxo de autoridades eclesiásticas, o rigor corajoso no tratamento das acusações de pedofilia por parte de clérigos, as mudanças nas funções do Banco do Vaticano. E sua pregação e textos começaram a causar desagradável surpresa naqueles que julgavam vencidas para sempre as categorias próprias da velha e condenada Teologia da Libertação... A teimosa e reiterada preferência pelos pobres, a condenação enfática e clara do neoliberalismo, a acolhida aos casais separados, o diálogo acolhedor com os LGBT, as iniciativas pela paz, o encontro convocado por ele com lideranças dos movimentos sociais do mundo inteiro. Enfim, Francisco começou a recolocar a Igreja como um fator que conta para a conjuntura e a despertar com isso reações das mais variadas entre crentes e não crentes.
Repercussões no Brasil e na América Latina
A Igreja Católica tem uma trajetória institucional com forte peso na história do Brasil, desde a Primeira Missa, que legitima a ocupação lusitana, a ambiguidade da atuação entre os povos indígenas, ora protegendo, ora coonestando o domínio colonial, passando pelo desenvolvimento de uma teologia que de alguma forma justificava a escravidão, até os movimentos libertários de muitos clérigos que participaram ativamente nas lutas pela abolição, independência e república.
No período mais recente, de um lado o padroado, a liga eleitoral católica, o apoio às Marchas da Família com Deus e pela Liberdade; de outro, a aproximação com os setores populares e progressistas a partir dos movimentos de ação católica, com o papel profético de dom Hélder Câmara, que encabeçaria uma lista memorável de bispos e sacerdotes que inspiraram e viveram um cristianismo de forte compromisso social. É o tempo em que a Conferência Episcopal se constitui numa das "entidades nacionais" na luta por justiça, democracia e direitos humanos. Falamos aqui dos anos 1960, enfrentamento da ditadura e lutas pela redemocratização.
Vale destacar o papel importante que esses bispos já haviam desempenhado – sempre dom Hélder como referência – na elaboração dos documentos do Concílio Vaticano II, que se constituíram na base para essa nova forma de ser Igreja. Estamos em pleno tempo das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), das Pastorais Sociais, de uma visão pastoral que, fundamentada nos princípios da Teologia da Libertação, passa a ter papel protagonista na resistência à ditadura e construção dos movimentos sociais e instituições democráticas, além de constituir-se em celeiro importante para a geração de quadros políticos e de militantes sociais.
Acontece que, nessa altura, final dos anos 1970 até o início do século 21, João Paulo II, com seu inegável carisma, consolidava um papado de grande visibilidade, e o anticomunismo que trouxera internalizado de sua experiência polonesa passou a ditar as regras da geopolítica que dava base à ação diplomática e pastoral do Vaticano. Nesse contexto, a visão doutrinal e pastoral da Teologia da Libertação, fortemente baseada na história das lutas libertárias da América Latina e com o uso de instrumental de análise baseado em conceitos marxistas, não poderia encontrar espaço. Pontificava então na Comissão de Doutrina da Fé, o antigo Santo Ofício, um cardeal alemão chamado Josef Ratzinger. Coube a esse defensor da ortodoxia o papel de executor de uma política que se chamou à época de "o grande enquadramento": combate vigilante e punição exemplar a teólogos e pastores que ousavam leituras e práticas pastorais não autorizadas pela ortodoxia. Vem daí a punição de “silêncio obsequioso” imposto em 1985 a Leonardo Boff e a vários teólogos latino-americanos, que se constituíam em importantes referências para a militância cristã.
Nessa mesma perspectiva, a Santa Sé inicia um rigoroso e paciente “jogo de xadrez” em que bispos progressistas eram deslocados para dioceses menos importantes, aposentados com muita rapidez, e novos bispos de corte muito conservador e confiáveis à ortodoxia eram nomeados. Os militantes leigos foram deixando de ter espaço, as CEBs, grande instrumento de presença e organização dessa nova Igreja nos meios populares, foram sendo substituídas pela velha organização paroquial, sob controle clerical, vertical. As chamadas “comunidades inseridas” de religiosos que se deslocavam para a periferia para estimular a criação das CEBs e das Pastorais Sociais foram fortemente desestimuladas, para dizer o mínimo.
Na relação com a sociedade, enquanto a Igreja do Vaticano II estimulava o princípio do “fermento na massa”, em que o cristão é chamado a testemunhar os valores do Evangelho em meio e diálogo com pessoas e organizações de todas as crenças e referências, tratava-se agora de retomar o princípio da “cristandade“, da construção de organizações efetivamente cristãs (partidos cristãos, movimentos cristãos).
A política do “enquadramento” estimulou assim, fortemente, tanto os movimentos carismáticos, de origem norte-americana, como as chamadas novas comunidades, destinadas a reconstituir essa sonhada “cristandade”, em combate e substituição às formas geradas pela Igreja popular. Ganham espaço nesse momento organizações como Legionários de Cristo, Arautos do Evangelho (que no Brasil disputam o espólio da TFP), Comunhão e Libertação, Focolarinos, entre várias outras; e ganha nova força e grande influência na Cúria Romana a Opus Dei, cujo fundador, Josemaria Escrivá de Balaguer, é canonizado em tempo recorde e ganha uma estátua na Basílica de São Pedro.
É com esse arsenal de movimentos e novas organizações que a Igreja Católica no Brasil, nesse período, busca fazer o combate à grande expansão do pentecostalismo e do neopentecostalismo evangélicos, estes também de origem norte-americana. A ocupação do território das grandes periferias e áreas populares e o uso intensivo dos meios de comunicação deram a esses movimentos evangélicos as condições de um crescimento exponencial numa população que de alguma forma fora abandonada pelo novo estilo pastoral determinado pela política vaticana.
A Igreja Católica no Brasil, além disso, perde nesse momento sua importância política e social; há um claro processo de “mediocrização” de seus quadros, com a supremacia do tratamento dos temas morais, e a identificação com uma pauta conservadora e fortemente regressiva, na contramão da evolução da sociedade e particularmente da juventude.
O pontificado de Ratzinger (Bento XVI) levou a política de conservadorismo eurocêntrico e distante dos temas populares a seu limite. A partir de seu enfraquecimento físico essa situação se agravou, com a disputa renhida entre os grupos de interesses incrustados na Cúria Romana. Tempo cinzento das negociatas, das disputas internas dos grupos de poder dentro da Santa Sé, dos vazamentos de documentos que prejudicavam uma ou outra ala, da revelação dos casos encobertos de pedofilia, tempo em que o noticiário eclesiástico visitava com frequência as páginas policiais e dos tabloides de fofocas curiais. Tempo também em que movimentos de grande capacidade financeira passaram a ter grande influência na condução dos destinos da Igreja.
Enfim, a “Barca de Pedro” fazia água e não havia nem terra à vista, nem estrela guia que o olhar alcançasse. Reinava um clima de pessimismo desalentador, em que era crescente o número de fiéis católicos que buscavam outras formas ou outras comunidades onde pudessem expressar e vivenciar sua fé.
É nesse contexto que se sucedem fatos surpreendentes. Primeiro a renúncia providencial de Bento XVI, que teve a grandeza de reconhecer a impossibilidade de comandar uma reação a uma situação que fugia ao controle e tinha um poder destrutivo visível a cada dia, e, logo a seguir, a "zebra" total da escolha de um latino-americano, que na verdade não era qualquer latino-americano, para conduzir a Igreja nesses tempos bravios. A surpresa e desconcerto provocados por aquela “fumaça branca” foram tão fortes que o L'Osservatore Romano deu uma “barrigada” em sua primeira manchete eletrônica ao anunciar o arcebispo de Milão como o novo papa eleito.
Francisco chegava, portanto, num momento de profundo desalento e mesmo de incredulidade da maioria dos católicos que haviam sido vítimas do "grande enquadramento" e não viam mais possibilidade de a Igreja voltar a ser uma comunidade de fé com forte compromisso social e coerência mínima com os princípios do Evangelho.
A grande virtude desse argentino, talvez, é que ele não quis fazer uma disputa prioritariamente por ideias ou por teses teológicas ou sociopolíticas. Ele vem, a partir de uma simplicidade desconcertante, apresentar um programa de vida, de práticas rigorosamente incontestáveis porque fundadas nos princípios evangélicos muitas vezes esmagados sob os escombros de tantos entulhos históricos. As afirmações de Francisco marcam porque são acompanhadas de uma prática coerente em suas atitudes e reavivam o aspecto revolucionário da mensagem cristã em sua nudez pobre e direta. Provocam, a rigor, desconcerto semelhante ao instigado pelo Cristo que não veio ensinar uma religião ou uma tese política, e sim um modo de vida. É frente a esse referencial do Evangelho que Francisco pode fazer sua conclamação por uma nova organização da sociedade, baseada na fraternidade e na justiça, e realiza uma veemente condenação do neoliberalismo, do consumismo que destrói a mãe Terra. Deixa assim desarmados e desnorteados os que o contestam com um ódio envelhecido. Resta-lhes de fato a alternativa de proclamar uma tosca “excomunhão”, tão ridícula quanto seu conservadorismo irracional.
Desafios para a Igreja no Brasil
Nova primavera, renovação, nova esperança. Essas são palavras frequentes nos ambientes eclesiais no Brasil de hoje. É perceptível esse novo clima nas comunidades, sobretudo por parte de quem se sentia sufocado e desalentado. Mas é ilusão pensar que uma instituição com esse peso e estrutura milenar se movimente muito rapidamente frente a fenômenos como este de um novo estilo e da nova orientação papal. Da mesma forma que durante muitos anos os setores progressistas conseguiram resistir e sobreviver ao "grande enquadramento", também muito tempo se levará para que as novas vibrações de uma Igreja renovada cheguem até o chão das paróquias e das comunidades católicas.
Não esqueçamos das levas e levas de sacerdotes formados numa visão fechada, estreita e mediocrizada, na qual o sacerdócio foi encarado muitas vezes como forma de ascensão social, em vez de compromisso com os excluídos; não nos esqueçamos da cultura cristalizada em que os temas morais ganharam primazia e a lei passou a ser mais forte e determinante do que a misericórdia (ano passado, em Alagoas, presenciei um padre, antes da Comunhão, pedir que saíssem da fila para comungar todas as mulheres que usavam anticoncepcional e as pessoas que haviam usado preservativos... Uma cabeça adoecida por uma doutrina como essa você não vai mudar por um discurso papal). São séculos de uma Igreja que aprendeu a conviver com o poder (a sagrada união do altar e trono) e, nas últimas décadas, reforçou todo o código conservador de um moralismo individualista.
Portanto, penso que o papado de Francisco deve ser um alento e estímulo à retomada de uma prática eclesial que una a fé e o compromisso ecossocial. Além disso, é preciso termos consciência de que, num mundo envolto numa profunda crise de valores e de líderes verdadeiros, o surgimento de uma figura como a deste papa deve ser valorizado e servir de estímulo para uma luta que se radicaliza pelos valores humanos da justiça e da solidariedade. Convenhamos, aliás, que as falas e textos de Francisco em sua recente visita à nossa América do Sul e em seu encontro com os movimentos sociais sacodem um certo processo de renúncia ideológica e ética da própria esquerda e nos convidam a uma revisão de nossa prática política, muitas vezes amortecida pelo excesso de mediações de nossas estruturas partidárias e de governos.
Vale a pena, para conhecermos de maneira mais organizada o pensamento deste papa, a leitura de sua última encíclica, “Laudato si” (expressão do italiano arcaico usado por São Francisco em seu célebre “Canto das Criaturas”: “Louvado sejas, meu Senhor, pela nossa irmã, a mãe terra, que nos sustenta e governa e produz variados frutos com flores coloridas e verduras”). Nessa carta, Francisco expressa sua cosmovisão de surpreendente contemporaneidade e nos chama a atenção para aspectos que podem muito bem nos ajudar a ampliar a formulação de nosso projeto para o Brasil.
Francisco, nessa mesma perspectiva, lança luz de forma admirável sobre nosso processo brasileiro, quando menciona a necessidade de as mudanças estruturais virem acompanhadas de profundas mudanças pessoais e culturais (nada mais atual quando se analisam os limites do processo de mudanças que fizemos no país nos últimos doze anos).
Resta saber e acompanhar o que vai ocorrer com este filho de nossa América em seu duro embate na Cúria Romana e com tantas forças que farão de tudo para deter esta primavera. Não tenhamos ilusões. Carpe diem, aproveitemos o tempo propício para fazer avançar nossa luta e tiremos todas as lições possíveis que este homem inspirado nos passa neste momento. Façamos nosso papel, desejando que Francisco possa ter um longo e fecundo mandato.
Gilberto Carvalho é formado em Filosofia pela Universidade Federal do Paraná e estudou Teologia no Studium Theologicum de Curitiba. Exerceu o cargo de ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência da República (2011-2014) e chefiou o gabinete do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010). Atualmente preside o Conselho Nacional do Sesi.