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Com uma história de guerras e conflitos, libaneses em plena pandemia vão às ruas protestar contra o governo após tragédia que destruiu metade da capital Beirute

O Líbano, assim como o restante do território do Oriente Médio, foi parte do Império Otomano desde o século 15 até a derrota da Turquia na Primeira Guerra Mundial em 1918. A partir de então, tornou-se junto com a Síria colônia francesa, enquanto os demais países da região foram colonizados ou controlados pela Inglaterra.

A independência libanesa ocorreu em 1943, embora as tropas francesas somente se retirassem em 1946. Entretanto, o sistema político – República parlamentar – e a divisão de poder entre as dezoito etnias e grupos religiosos reconhecidos foram definidos em 1942 e, bem ou mal, vigoram até hoje com base num censo populacional realizado em 1932. Dessa forma, o presidente do país é sempre um cristão maronita, o primeiro ministro um muçulmano sunita e o presidente do parlamento um muçulmano xiita. Outras posições de menor relevância são atribuídas a outras seitas cristãs, aos drusos e demais grupos.

O Líbano independente expandiu-se economicamente ao se tornar um importante centro financeiro na década de 1950 além de desenvolver uma importante indústria turística fundamentada em atrativos naturais, cassinos e hotéis de luxo. No entanto, apesar de ser um dos países mais tolerantes na região em relação aos costumes, vem enfrentando problemas relativos ao sectarismo religioso e político desde um primeiro conflito em 1958 entre muçulmanos e cristãos que causou cerca de 4 mil mortos. A Guerra Fria no Líbano opôs de um lado os cristãos pró-Ocidente e pró-EUA, representados pelo então presidente Camille Chamoun, e de outro os nacionalistas árabes e muçulmanos, mais simpáticos ao nasserismo egípcio. Diferenças em relação à Constituição do país detonaram o conflito.

Além disso, a guerra da independência em Israel havia provocado a fuga de milhares de refugiados palestinos para o Líbano desde 1948 e estes passaram a ser vistos como um Estado dentro do Estado pelos libaneses, particularmente pelos cristãos, depois que a Organização para a Libertação da Palestina (OLP) se deslocou da Jordânia e se estabeleceu em Beirute em 1970 e o sul do Líbano foi apelidado de “Fatah Land”, pois era de lá que partiam as ações da resistência palestina contra o território ocupado por Israel.

Em 1975 teve início a guerra civil libanesa que durou até 1990 e causou 120 mil mortes e mais de meio milhão de deslocados de suas casas, incluindo muitos que emigraram para o exterior, inclusive para o Brasil. A causa era o sectarismo mencionado, que naquele ano provocou atentados mortais de parte a parte, cristãos de um lado, muçulmanos, drusos e palestinos, de outro. O conflito causou um enorme processo de destruição do país, principalmente da capital. Os sírios intervieram militarmente para tentar neutralizá-lo em 1976 e em 1987 e os israelenses também invadiram o sul do país em 1978 e novamente em 1982 quando chegaram até Beirute. Neste caso e em ambas as ocasiões para neutralizar a OLP que, golpeada, acabou mudando sua sede para Túnis, a capital da Tunísia no norte da África, embora vários campos de refugiados palestinos permaneçam no Líbano até hoje. Durante a segunda invasão israelense houve os massacres dos campos de Sabra e Chatila perpetrados pelos falangistas cristãos da organização Kataeb, com a cumplicidade do exército israelense, que mataram cerca de novecentos refugiados, em sua maioria de idosos, mulheres e crianças.

A ocupação militar síria de 1987 e negociações entre as partes do conflito levaram ao fim da guerra em 1990, mas os israelenses aliados a uma milícia que criaram, o “Exército do Sul do Líbano”, continuaram ocupando uma faixa de terra na fronteira entre os dois países. Porém, nesse meio tempo havia surgido um novo agrupamento político e militar xiita, chamado Hezbollah, que passou a combatê-los até que em 2000, as forças armadas israelenses se retiraram do território libanês com exceção de numa faixa de terra próxima às Colinas de Golã, conhecida como as “Fazendas de Chaba”.

A divisão de poder definida em 1942 foi a base para o acordo de paz entre as facções, embora até hoje implantada com dificuldades crescentes, uma vez que as distintas comunidades étnicas e religiosas não refletem mais a realidade do censo de 1932. Por exemplo, os muçulmanos são atualmente mais numerosos do que a comunidade cristã e mesmo entre os xiitas, os mais abastados que sustentam o Movimento Amal que preside o Parlamento, são menos numerosos que os pobres, por sua vez, mais ligados ao Hezbollah.

Entre os anos 1992 e 1998, bem como entre 2000 e 2004, o primeiro-ministro foi Rafik Hariri, um magnata que conduziu a reconstrução física do país com certo sucesso e apoio de capitais privados, mas foi assassinado em 2005 por um carro-bomba causando grande comoção no país. O serviço secreto sírio e integrantes do Hezbollah foram colocados na lista de suspeitos, embora sem provas concretas de envolvimento. Entretanto, o sentimento anti-sírio da opinião pública libanesa forçou a Síria a retirar suas forças armadas que ainda permaneciam no Líbano.

Em 2006, ocorreu novo ataque israelense contra o país motivado pelo sequestro de dois soldados israelenses pelo Hezbollah. O país foi bombardeado por um mês e teve grande parte de sua infraestrutura, como o aeroporto internacional, pontes, estradas, postos de gasolina e áreas residenciais dos xiitas mais pobres no sul de Beirute, destruída. Porém, a resistência do Hezbollah foi renhida. Um cessar-fogo foi negociado internacionalmente e os israelenses retiraram-se mais uma vez. Além da destruição, o custo foi de quase 2 mil mortos, 4.400 feridos e novecentos mil refugiados.

A esse novo sofrimento, dois anos depois, se somou a crise econômica internacional que também afetou a economia libanesa e em 2011 a guerra civil na Síria provocou a vinda de 1,5 milhão de refugiados daquele país, equivalente a 50% da população do Líbano, sem que o país tivesse condições suficientes para acolhê-los.

Praticamente, desde 2006, o Líbano vive em crise, política e econômica. Sua dívida pública atual é equivalente a 150% do PIB. O desemprego está na ordem de 35%, a moeda é instável e a inflação, crescente. No ano passado ocorreram grandes mobilizações populares a partir de uma decisão governamental de taxar as mensagens de voz da telefonia celular que levou à renúncia do primeiro-ministro Saad Hariri, filho de Rafik.

Mesmo com o advento do coronavírus, que também assola o Líbano neste momento, as mobilizações contra o governo foram retomadas com mais força após a recente explosão no porto de Beirute que matou mais de 200 pessoas, feriu mais de 5 mil e danificou metade da cidade. Calcula-se que para reconstruir o estrago, serão necessários algo entre três e cinco bilhões de dólares.

Em resumo, são seis décadas de sofrimento do povo libanês com poucos momentos de tranquilidade e com poucas perspectivas no curto prazo. O atual primeiro-ministro acabou de demitir todo o gabinete e renunciou em seguida, o que seguramente pressupõe a realização de novas eleições numa tentativa de acalmar a situação.

Kjeld Jakobsen é consultor de Relações Internacionais