Boa parcela da sociedade se deu conta, a esta altura, de que a democracia no Brasil anda cambaleante desde o golpe de 2016. Mesmo entre os que contribuíram por ação ou por omissão para que o golpe se consumasse. Sabemos que Estado Democrático de Direito foi ferido em diferentes momentos, desde então, e veio se desenhando uma excepcionalidade que virou uma nova regra, conforme desejava anos atrás o antigo juiz de Curitiba, hoje ministro da Justiça. Estivemos nesse período sempre às vésperas do Estado Policial batendo às portas dos setores médios da sociedade, considerando que para as populações das periferias ele é, desde sempre, uma realidade cotidiana.
Aquela excepcionalidade vale para as disputas políticas, sociais, mas vale também para as instituições. Vejamos: não se conhecem experiências democráticas que não contem com partidos políticos reconhecidos. Eles são, afinal, instrumentos de representação legítimos das vontades coletivas neles organizadas. Tradução: atentar contra partidos políticos, em última análise, é atentar contra a democracia. Exemplos históricos não faltam.
Nesses primeiros dias de abril, já no meio da pandemia, surge um vice-procurador eleitoral, Renato Brill de Góes, um daqueles que a finada operação lava-jato fez emergir do submundo para a cena política do país para desatar o que pode vir a ser uma ofensiva, no âmbito jurídico, contra o registro eleitoral do Partido dos Trabalhadores. Um ataque frontal à principal força política de oposição a um governo que, neste momento de crise, revela inépcia e descoordenação frente à pandemia e, para espanto da sociedade, trabalha com afinco em ampliar seu isolamento interno e ao mesmo tempo levar a imagem do país ao escárnio em âmbito mundial.
Nesse momento, quando se movem peças na estrutura de poder no Palácio do Planalto e os generais assumem aos poucos a condução das ações políticas, em meio à crise, para substituir, por meio de um governo militar de fato, um homem incapaz, isolado dos seus próprios apoiadores, já impotente para determinar e fazer cumprir uma ordem sequer aos seus ministros, surge, por mera casualidade, uma iniciativa de elementos do Ministério Público, identificados com posições de extrema-direita, para dar o start nesse processo que demanda a cassação do registro do Partido dos Trabalhadores.
A iniciativa padece de um mal de raiz: a acusação, agora repetida, de apontar o PT como uma “organização criminosa”, já foi rejeitada pelo juiz federal que a julgou por inconsistência, falta de provas e por tentativa de criminalizar a atividade política... a pedido do próprio Ministério Público, em dezembro de 2019.
A alegação de que o PT seria uma organização criminosa, além de injuriosa e despida de fundamento, “não configura hipótese de cancelamento e torna a Justiça Eleitoral incompetente, à luz do art. 28, da Lei no. 9.096/95”. Uma alegação banal, como aquela de 1947 que resultou, um ano depois, na cassação do registro eleitoral do Partido Comunista.
Em nota à imprensa a assessoria jurídica do PT argumenta que “não restou demonstrada a origem estrangeira dos supostos recursos financeiros apontados e tampouco se eram destinados ao Partido dos Trabalhadores, formulado na narrativa genérica que não tem o condão de imputar qualquer ilegalidade”.
Com respeito à falta de prestação de contas, responde: “As contas seguem sendo anualmente prestadas pelo PT de modo que a aventada ausência de prestação não encontra fundamento nos fatos”.
Que lições tirar dos equívocos de 1947? Duas, basicamente: a banalidade da acusação não diminui sua eficácia. Recuperando exemplos recentes: a presidente eleita Dilma Rousseff não cometeu pedaladas fiscais nem crime de responsabilidade. No entanto perdeu o mandato. O presidente Lula nunca foi proprietário do tríplex do Guarujá. Permaneceu encarcerado por 580 dias em Curitiba. Tempo suficiente para afastá-lo da disputa presidencial de 2018. A primeira lição a ser extraída: não basta a defesa jurídica, por mais consistente que seja, quando o conflito político de classe extrapola os limites da formalidade legal e entram em cena forças sociais organizadas para a disputa real de poder.
A segunda lição nos remete para o governo Dutra, no final dos anos 1940: Em maio de 1947, por três votos a dois, os juízes do Tribunal Superior Eleitoral cassaram o registro do PC sob dupla alegação: a primeira acusava o Partido Comunista do Brasil (PCB) de ser um partido estrangeiro – o nome “do Brasil” em vez de “brasileiro” estaria nomeando uma seção da Internacional Comunista cuja sede estava em Moscou; a segunda manejava o critério ideológico, embutido no Ato Adicional de 1946, para definir a atuação dos comunistas como antidemocrática: ”insuflando luta de classes, fomentando greves, procurando criar ambiente de confusão e desordem. Em janeiro de 1948, o Congresso Nacional decidiu cassar os mandatos de todos os eleitos da legenda do PC” (Schwarcz e Starling, Brasil: uma Biografia, 2015). Acusações banais que remeteram o PC para 40 anos de clandestinidade.
Para aqueles que, dentro do PT, não desviam os olhos dos próximos processos eleitorais de 2020 e 2022 é prudente levá-los a considerar outras dimensões da luta, em diálogo com outras forças políticas e articular com urgência a formação de frentes em defesa da democracia, independentemente de composições eleitorais a partir de uma constatação simples: os dois pleitos não estão assegurados de antemão, nem um nem outro.
É necessário denunciar o silêncio dos liberais diante dessa ofensiva contra o Partido dos Trabalhadores, a mais numerosa representação parlamentar de oposição ao governo, ancorada numa base social que ninguém pode ignorar. Para fazê-los refletir sobre o que ocorre diante dos nossos olhos: a destruição do Brasil como nação soberana e democrática, em curso, é obra da extrema-direita e não do PT, que ao longo de 40 anos sempre soube respeitar as regras da democracia.
Como em outros momentos da história, essa ofensiva não se deterá com a cassação do registro do Partido dos Trabalhadores, se o conseguirem. Colherá também aqueles que hoje a observam com indiferença ou mesmo com algum interesse porque veem o PT como um obstáculo a ser removido para alcançar seus objetivos e amanhã serão colhidos pela completa destruição do sistema político da Carta de 1988, alvo do apetite autoritário dos neofascistas.
Hamilton Pereira (Pedro Tierra) é poeta, ex-presidente da Fundação Perseu Abramo