Entrevista com Paulo Vannuchi, secretário Especial de Direitos Humanos da Presidência da República
Entrevista com Paulo Vannuchi, secretário Especial de Direitos Humanos da Presidência da República
Estado brasileiro reconhece em publicação que mortos pela ditadura militar não eram terroristas, mas brasileiros e brasileiras que lutaram contra regime que violou a Constituição
Qual o significado do livro Direito à Memória e à Verdade, publicado pela Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República, para a história do Brasil?
No período da ditadura militar, de 1964 a 1985, na maior parte dos anos houve uma sistemática de repressão. O período a partir do Ato 5, de 13 de dezembro de 1968 a 1º de janeiro de 1979, deixou um saldo expressivo de pessoas desaparecidas e mortas sob tortura. Isso desencadeou, ao mesmo tempo que a luta pela anistia, em meados de 70, uma luta pelo direito a informações, à verdade sobre o que tinha ocorrido naquele período. A importância desse documento é o fato de ser o primeiro registro oficial do Estado brasileiro que deixa claro que não podem coexistir versões conflitantes sobre essa matéria.
Quando o livro foi lançado, no jornal O Globo, houve um comentário sobre uma nota do Exército que se referia à publicação com o argumento de que são fatos históricos e, por isso, passíveis de diferentes interpretações. Concordamos com a tese, mas não em casos como o da morte do jornalista Vladimir Herzog, que não foi suicídio − ele foi morto por tortura. Na apresentação do livro já consta que se trata de um trabalho que transcende mandatos presidenciais. Em 1996, a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, prevista pela Lei nº 9.140 de 1995, foi instalada. São onze anos de trabalho e a publicação do livro se dá agora porque estão quase esgotados os processamentos dos requerimentos.
Quais requerimentos?
A lei estabelece que os familiares de mortos e desaparecidos podem apresentar requerimento à Comissão Especial, reivindicando a investigação daquela morte, por responsabilidade do Estado, e requerendo então uma indenização administrativa, cujo valor mais elevado está em R$ 152 mil, calculado dentro de uma tabela de expectativa de vida que serve também para outros tipos de processos indenizatórios. Esse trabalho, sobretudo, já estava feito. O livro complementa o reconhecimento e a reparação éticopolítica, firmando o entendimento de que esses mortos não eram terroristas, assassinos, eram brasileiros e brasileiras que lutaram contra um regime militar que nasceu em abril de 1964 de uma violação da Constituição.
Pode-se até entender o contexto da Guerra Fria, o mundo dividido em dois blocos, mas as Forças Armadas, ao derrubarem o presidente eleito pelo voto direto, romperam com a constitucionalidade e a legalidade, que na tradição do direito mundial dá legitimidade aos opositores. E os opositores, por sua vez, argumentam que tentaram o caminho da resistência cultural, estudantil, das passeatas, e que o Estado insistiu pelo caminho da intolerância, da repressão.
O ano de 1968 começa em 28 de março, quando uma passeata pacífica dos estudantes no Rio de Janeiro é reprimida e Edson Luís de Lima Souto é morto. E em várias manifestações seguintes, com reivindicações pacíficas, nas ruas, nas universidades, a repressão age novamente jogando o movimento estudantil para as formas clandestinas de resistência, que foram não armadas e armadas. Ficou claro que o aparelho de repressão não selecionou. Priorizou o ataque às organizações armadas, e assim que estas foram praticamente derrotadas, por volta de 1974, então o Partido Comunista Brasileiro, que tinha condenado explicitamente a resistência armada em seus jornais e documentos, é alvo de violência equivalente. Foram dizimados, com o registro, inclusive, de ex-agentes dos órgãos de repressão falando em esquartejamento. Nomeado, como esquartejado, David Capistrano da Costa, pai do ex-prefeito de Santos.
E como fica agora a relação com as Forças Armadas?
O cuidado da Secretaria e da Comissão Especial foi dar ao livro um tratamento objetivo, sem adjetivação, consciente de que a simples narrativa é suficientemente forte. Por exemplo, até a preferência pelo termo “foi morto” a “foi assassinado”. Esse termo aparece apenas em casos flagrantes, como o de Vladimir Herzog. A idéia não é entender o livro como revanchismo, e sim entender que o governo Lula tem um problema e propõe um diálogo entre a Secretaria Especial de Direitos Humanos e os Ministérios da Justiça e da Defesa, com as três armas. Das FFAA, 99% não têm as mãos sujas de sangue, não participaram dessa repressão. Não há por que assumir posição coorporativa.
Em meu discurso no lançamento do livro, afirmei que o Exército, a Marinha e a Aeronáutica atuais são diferentes. É o Exército do Estado democrático de direito, em que as Forças Armadas cuidam das suas atribuições constitucionais: primeiro, obediência ao comandante supremo das Forças Armadas, o presidente da República; segundo, defesa das fronteiras; terceiro, participação em obras estratégicas do desenvolvimento nacional. Contribuem em missões de defesa dos direitos humanos, a Aeronáutica nos leva ao Pará para ações de combate ao trabalho escravo; a Eldorado do Carajás, para lembrar o massacre dos trabalhadores rurais; a Anapu, para o primeiro aniversário da morte da missionária Dorothy Stang. Há, às vezes, pressão de pequenos grupos que estão estruturados e têm um parlamentar como porta-voz, o que cria um ruído desproporcional à força que efetivamente têm.
As famílias sentem-se contempladas nesse trabalho?
O enfoque da Comissão Especial no livro é centrado na abertura de informações e na localização dos corpos. Dessa maneira, expõe uma discordância de setores dos direitos humanos, organizações e grupos de familiares. O livro não trabalha a pressão pela punição. Optamos por não fazer o processamento individual em torno dos responsáveis, considerando inúmeras razões − e a primeira delas é a seqüência da história. É uma comissão de Estado, que se reúne desde 1996, e tinha firmado uma metodologia e uma avaliação do conteúdo humanitário, se apóia na Lei da Anistia, de 1979, e invoca seu sentido de reconciliação.
A publicação, em sua abertura, registra objetivamente os contenciosos. Considera o argumento de que a Lei da Anistia abarca os dois lados e trabalha explicando o termo “crimes conexos”. Registra o ponto de vista contrário, de que há juristas, como Dalmo Dallari, Fábio Konder Comparato, Helio Bicudo, entre outros, que consideram, à luz do direito internacional atual, que o crime de tortura é imprescritível e a ocultação de cadáver configura crime continuado. A Lei da Anistia foi publicada em 29 de agosto 1979 e, no dia seguinte, reincide em crime aquele militar que enterrou alguém e continua ocultando. Por último e mais forte, há o argumento de que, se o legislador quisesse anistiar os torturadores, pela doutrina do direito a lei ditaria: “São anistiados todos que praticaram crimes políticos no exercício de atividade de oposição ao regime militar e também os eventuais crimes cometidos na ação de repressão a esses delitos”. E se quisesse detalhar ainda mais poderia mencionar casos de tortura, mortes etc.
Há uma proposta de revisão da lei?
O livro não propõe a reabertura da discussão sobre anistia. Se a sociedade civil, a imprensa e mesmo organismos internacionais quiserem fazer... O Brasil é filiado ao Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos, da OEA, que tem duas instâncias fundamentais, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e a Corte Interamericana. Qualquer violação dos direitos humanos, que tenha passado por um processo e esgotado os recursos internos de tratamento, é passível de recurso por uma ONG ou um familiar − por exemplo, dez anos sem ninguém condenado pelo Carandiru. O Brasil tem aproximadamente 70 casos nas duas entidades, um deles diz respeito à Guerrilha do Araguaia. A expectativa é de que também o sistema OEA dará uma sentença sobre esse caso.
Há uma sentença, que agora tramitou em julgado, de uma ação iniciada em 1982, tendo como patronos Luiz Eduardo Greenhalgh, Sigmaringa Seixas e familiares do Araguaia. Em junho de 2003, a juíza Solange Salgado, da 1ª Vara da Justiça Federal, condenou a União a abrir todas as informações, localizar os corpos em sessenta dias etc. Em outubro de 2003, o governo federal, por intermédio da AGU, recorreu da decisão, e o presidente Lula criou a Comissão Interministerial do Araguaia. Em março de 2007, findo seu trabalho, a comissão recomendou iniciativas que incorporam basicamente os conteúdos da sentença da juíza. E o advogado-geral da União anunciou a retirada desses recursos, o que então coloca a sentença como transitada em julgado, e o ministro Jobim já está com o acórdão para que se acatem as determinações.
Então, logo teremos novidades em relação ao Araguaia?
Com esse livro o governo consegue preencher uma lacuna, recolocamos a discussão no seu eixo natural, com essa linha de diálogo, separando a responsabilidade dos núcleos da repressão política daquele período e do cenário atual, composto por pessoas que há muitos anos estão revelando empenho profissional, disciplina, hierarquia... Não faz sentido manter nenhuma cortina de fumaça que negue a existência de arquivos, documentos, uma vez que a imprensa, a cada mês, faz uma matéria com impacto, apresentando arquivos... Houve dois livros recentes sobre o Araguaia, nos quais abundam cópias de documentos oficiais sobre a repressão e depoimentos de militares dizendo “eu matei, eu mirei, mandei virar de costas e disparei”... Execuções, que mesmo as leis draconianas do regime militar nunca permitiram. O regime criou leis e essas leis não prescreviam torturas e execuções sumárias. Mostramos na narrativa de cada um dos casos como as leis eram desobedecidas.
Não há por que, em 2007, querer encobrir esse passado. O país é maduro, tem uma democracia consolidada e todas as condições de conhecer seu passado recente.
Então, no caso das Forças Armadas, não se espera uma autocrítica?
A Igreja Católica já fez autocrítica pelas violências da Inquisição e por suas opções no período do nazismo. Também o fizeram as Forças Armadas chilenas e argentinas. No Brasil, não há por que haver um tratamento diferente. Mas isso não pode ser feito de forma agressiva e autoritária. Deve ser um diálogo democrático de convencimento e, ao final do processamento necessário, a partir das ações
do ministro Jobim, o cumprimento do acórdão que o Judiciário determina. E, se as Forças Armadas se recusarem a fazer um pronunciamento reconhecendo que naquele período houve violação dos direitos humanos e sua responsabilidade nisso, o presidente da República pode fazê-lo na qualidade de seu comandante supremo.
E no caso, por exemplo, da família Teles, em que medida ações individuais ajudam esse diálogo?
Produzimos esse livro e a sociedade civil, por intermédio de juristas e grupos de familiares, toma outras posições, que às vezes complementam e outras tensionam. Como cidadão eu já saudei a iniciativa do dr. Fábio Comparato de uma saída civil, que requereu o reconhecimento do torturador e uma indenização simbólica de 1 real. Para a construção histórica do país é mais importante a responsabilização do que jogar na cadeia. Por exemplo, a divulgação de relatos que levem a filha do torturador a questionar: “Pai, você fez isso mesmo?” Ele pode negar. O relato dos livros feitos pelos torturadores, mesmo o de Ustra, é derrotado de antemão, porque eles se recusam ao debate, negando a tortura. Esses torturadores tinham de assumir. Leia Elio Gaspari, quatro volumes de insuspeito testemunho sobre a ditadura. O jornalista fez basicamente seu trabalho a partir de arquivos cedidos por Golbery do Couto e Silva. Ele agradece a Ustra e sua esposa na apresentação do livro, como pessoas que colaboraram.
O que se alega sobre os arquivos?
O argumento de que todos os arquivos foram destruídos com base na legislação da época é discutível, porque se assim aconteceu deve existir o termo de destruição, um documento com testemunhas e autoridade responsável. Nas vezes em que foram requisitados, esses termos não foram apresentados, o que indica que não existem e não houve destruição de documentos com base na lei. Houve destruição de patrimônio público da República.
Como especialista no tema, trabalhei cinco anos no projeto Brasil Nunca Mais, pesquisando, e acredito que os documentos da repressão política da Rua Tutóia, em São Paulo, eventualmente possam ter sido destruídos, mas não os arquivos do Centro de Informações do Exército. Por outro lado, nunca houve comentário que indicasse a possibilidade de encontrar documentos em algum lugar em Brasília, por exemplo. Em 1982, com a vitória nas eleições estaduais da oposição, Montoro em São Paulo, Brizola no Rio, Tancredo em Minas, os arquivos estaduais começaram a ser abertos. O Brasil Nunca Mais foi feito entre 1979 e 1985 e pegou todos os arquivos do Superior Tribunal Militar, que estão na Unicamp e podem ser pesquisados. Existem muitos arquivos abertos.
Em dezembro de 2005, a ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff, que é responsável pelo Arquivo Nacional, anunciou a transferência dos arquivos da Abin. Há pessoas, ex-presos políticos, militantes, que dizem que nesses arquivos não tem nada. Não é verdade. Em pastas sobre o presidente Juscelino Kubitschek, há fotos em que fica evidente que ele era vigiado pelo serviço de inteligência.
A Polícia Federal passou para o Arquivo Nacional também os arquivos da inteligência. Ainda foram requisitados os arquivos da Divisão de Segurança Interna de todos os ministérios. Curiosamente, a DSI do Itamaraty tinha seis pastas sobre dom Paulo Evaristo Arns. No material do Ministério da Educação aparecem as conspirações do reitor da USP para cassar Caio Prado Jr., Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso. Isso é história de repressão política dentro da universidade. Há material para pesquisas universitárias, centenas de livros e filmes. A ministra Dilma deve anunciar ainda em 2007 a construção de um centro de memória da repressão política, organizado e informatizado, interligando todos os arquivos estaduais.
Chamou minha atenção o fato de o presidente Lula ter assumido esse livro. Ele não sofreu nenhuma pressão para não fazê-lo?
Quando o presidente me convidou para assumir a secretaria, manifestou sua insatisfação com o fato de não ter conseguido atender os familiares de mortos e desaparecidos. Em suas palavras: “Não quero passar como o presidente que encobriu essa história. Quero virar essa página”. Então, fui trabalhar e, por duas vezes, voltei a fazer referência a essa determinação dele. Falei sobre o livro e não houve nenhuma dificuldade de sua parte. Se foi pressionado, não cedeu.
Rose Spina é editora de Teoria e Debate