Na década de 1990 os neoliberais tinham retirado a energia do cenário político, reduzindo-a à sua dimensão econômica de mercado. O petróleo teria o preço baixo garantido pelo absoluto domínio do mundo pelos norte-americanos após o colapso soviético, minimizando as turbulências em áreas produtoras como o Oriente Médio. Seu barril chegou a US$ 10 no fim do século 20 e quem previsse seu aumento era renegado pelo mainstream. O gás natural, um produto em parte associado ao petróleo, também teria seu preço garantido por contratos. A energia elétrica seria assegurada pelas privatizações, integrando-a como um negócio ao fluxo financeiro globalizado, pela presença das grandes empresas transnacionais em todos os países, em especial na América do Sul. Restava ao Estado o papel regulador, como um juiz de futebol, dirimindo conflitos de interesses. O jogo seria problema dos players privados, que cometeriam falta se dessem caneladas um no outro ou nos consumidores, entre os quais estão grandes empresas também. Só aí o juiz parava o jogo. Nada disso funcionou, deu tudo errado. Os economistas de mercado, conhecidos pelas suas previsões acacianas de curto prazo ou estapafúrdias de longo prazo, se superaram a si mesmos (o problema é a grande influência deles no governo). Um deles me aconselhou a acabar com o Programa de Pós-Graduação de Planejamento Energético da Coppe/UFRJ, onde trabalho. Mais uma visão errada. Em 2006 fui convidado a seminários de política energética na Argentina, no Chile e duas vezes na Alemanha, sem contar os de impactos ambientais, como o efeito estufa, outro grande problema político também, pois trata de escolhas da sociedade que não cabem às empresas fazer sozinhas. Energia voltou a ser uma questão política.
O preço do barril de petróleo subiu de US$ 10 até mais de US$ 20 na virada do milênio, chegou a US$ 70 recentemente e festejaram quando caiu a US$ 50. O imenso poderio bélico dos EUA não venceu a fraqueza militar no mundo árabe e as turbulências continuam. O gás natural, por sua vez, deu problemas entre Rússia e Europa e entre Argentina e Chile, tanto quanto ou mais do que entre Bolívia e Brasil. Na energia elétrica houve colapsos desligando centros urbanos por muitas horas ou dia no Brasil (o do raio que teria caído em Bauru, o qual não houve, como a batalha de Itararé) e nos EUA, bem como racionamentos sérios, por muitos meses ou ano, no Brasil e na Califórnia, ambos em 2001, sem falar em outros países que tiveram dificuldades, como o Chile. As privatizações do setor elétrico nacional tiveram problemas já no governo Fernando Henrique. A Enron e a AES, que vieram para o Brasil, faliram no seu país, os EUA. Ademais, a AES deu um calote de US$ 1,2 bilhão no BNDES, além de outro menor ao abandonar uma empresa que controlava, a Eletronet, só não caindo nas costas da Eletrobrás porque pedi sua falência na Justiça. A Pennsylvania Power and Light abandonou a Cemar, no Maranhão, devendo dezenas de milhões de reais à Eletrobrás. Não houve investimento suficiente na expansão no país e as tarifas dispararam para os consumidores comuns. As distribuidoras privatizadas tiveram um aporte de recursos da ordem de R$ 8 bilhões já no governo Lula, para compensar perdas devidas ao racionamento de 2001. Agora, a EDF, estatal francesa, vendeu a Light do Rio para um grupo nacional liderado pela estatal Cemig.
A retomada do desenvolvimento proposta pelo presidente Lula terá de dar atenção à energia. A política do petróleo deve ser integrada em uma política de combustíveis, por sua vez enquadrada em uma política energética, envolvendo também a energia elétrica, na qual se inclui a geração termelétrica, e as fontes renováveis de energia. O Brasil utiliza combustíveis da biomassa renováveis – o álcool, o bagaço de cana, a lenha, o carvão vegetal − e expande o biodiesel, enquanto no mundo os combustíveis usados em grande escala são de origem fóssil – o carvão mineral, os derivados de petróleo e o gás natural. O consumo do carvão mineral, cujas reservas globais são grandes, se mantém alto em nível mundial, apesar de seu impacto nas emissões de gases do efeito estufa. No Brasil esse consumo é restrito ao coque importado, além de algumas termelétricas no Sul.
As projeções das reservas mundiais de petróleo não apresentam um encurtamento tão drástico do tempo de vida, como alguns autores previram, mas tampouco esse tempo é longo. Considerando o petróleo convencional, inclusive a recuperação terciária do restante do petróleo deixado nos poços já explorados, as reservas entrarão em declínio em poucas décadas. Incluindo o petróleo não convencional, como os óleos pesados venezuelanos, os de águas extremamente profundas e o xisto betuminoso, esse prazo se dilata relativamente. O gás natural, por sua vez, tem reservas para tempo maior que o do petróleo convencional. contudo, embora haja muitas incertezas, a tendência futura é de preço alto do petróleo, ainda que não deva permanecer na faixa atualmente atingida. Contribui para esse cenário o forte crescimento da demanda da China.
Isso sugere a necessidade de um critério para uso das reservas brasileiras, além da auto-suficiência que hoje se configura graças ao êxito da Petrobras, pois elas não são muito grandes em termos mundiais, embora possam ainda aumentar. Assim, é questionável exportar petróleo, além daquele para compensar a importação de derivados e petróleo leve para o blend no refino. Ademais, a última licitação de blocos pela Agência Nacional de Petróleo foi suspensa pela Justiça devido à limitação pretendida do número de blocos por empresa, o que, em última análise, reduziria a participação da Petrobras. Deveria merecer maior atenção do governo a política estratégica para o petróleo brasileiro, a ser ainda definida.
A política de combustível do governo incluiu agora o biodiesel e deu ênfase ao álcool motor, cujo crescimento tendeu a se acentuar pelo uso de motores flexíveis, que permitem a mistura de álcool e gasolina, e pela alta do preço internacional do petróleo. Os motores flexíveis são adaptados e, quando se usa o álcool sem a gasolina, seu rendimento cai. O consumo de álcool por quilômetro é maior do que poderia ser em carros a álcool puro, cuja taxa de compressão é aumentada para compensar o menor poder calorífico. Deve-se aperfeiçoar os motores flexíveis para superar essa perda de eficiência. Já no biodiesel a questão é a diversidade de matérias-primas, que produzem óleos com características diferentes, alguns com deficiências que estão sendo resolvidas. Não há problema na fase atual de adição de até 2% de biodiesel ao diesel. A mamona de pequenos produtores foi estimulada, mas cresceu o uso da soja. Um avanço importante paralelo ao biodiesel foi o uso de óleos vegetais no refino pela Petrobras (Hbio).
O gás natural tem sido objeto de debate, destacando-se a necessidade de definir melhor sua participação na geração elétrica, inclusive na geração distribuída fora das redes, bem como injetar o excedente de energia na rede elétrica como uma usina virtual distribuída. De outro lado, ampliouse o uso de gás natural, nos veículos, na indústria e nas residências. Esses pontos se articulam com o problema das relações com a Bolívia após a nacionalização pelo governo boliviano do petróleo e do gás natural do país. No setor elétrico o novo modelo avançou em comparação com o anterior, voltado à privatização. A criação da Empresa de Pesquisa Energética (EPE) para o planejamento do setor foi importante. Há pontos ainda polêmicos, que merecem discussão.
Muitas das questões dizem respeito à transição malfeita do antigo para o novo modelo, em decorrência da herança deixada por um processo de privatizações malsucedido e, em particular, pelas seqüelas do racionamento de 2001. Destacam-se entre esses pontos: a energia hidrelétrica, mais barata, está sendo substituída por energia termelétrica, mais cara; o cancelamento dos contratos iniciais das geradoras elétricas federais, determinado pelo governo, que manteve a regulamentação anterior voltada à privatização; a manutenção de contratos de termelétricas onerosos para o consumidor.
Recentemente cresceu a preocupação com um novo apagão. Mas a situação atual é diferente daquela de 2001, pois as chuvas no fim de 2006 foram favoráveis, apesar de os reservatórios de hidrelétricas no fim de 2006 estarem com 60% da capacidade, nível menor que em 2005, quando era de 70%. O nível médio, entretanto, está acima da curva de aversão ao risco, definida como limite a ser evitado. Entretanto, se as chuvas não forem favoráveis no futuro próximo e/ou a economia crescer significativamente e o consumo subir, pode haver alto risco de racionamento. Muitas termelétricas não dispõem de gás, conforme alertei em artigos, em reunião do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, a convite do ministro Tarso Genro, e em minha intervenção em encontro da comunidade científica com o presidente Lula. O problema foi reconhecido pela Aneel ao retirar várias termelétricas do plano de operação.
O governo quer que a Petrobras remaneje o gás de outros usuários, mas ela não dispõe do gás para operar cerca de 3 GW termelétricos que não estão contratados. Os leilões de compra de energia planejados pela EPE não absorveram as termelétricas no sistema. Tudo isso revela que há problemas no novo modelo a serem corrigidos. Por exemplo, há os consumidores livres, que compraram a energia hidrelétrica barata que as geradoras da Eletrobrás tinham descontratado por força da regulamentação do governo anterior, mantida equivocadamente. Essas grandes indústrias intensivas em energia absorvem 30% da energia elétrica do país, fora do sistema atendido pelas concessionárias com tarifas altas.
Uma usina termelétrica opera em complementação às hidrelétricas, pois não se vai verter água enquanto se queima gás, fóssil e importado. Nos contratos usuais, se paga pelo uso de gás sem interrupção, por isso a Petrobras estuda a importação de gás natural liquefeito por navios, pois pode ser interrompida conforme a necessidade. Outra possibilidade é adaptar termelétricas para serem bicombustíveis, podendo usar diesel ou outros combustíveis no lugar de gás, mas eles são muito mais caros.
Na implantação do novo modelo mantiveram-se contratos de termelétricas que vendiam energia sem gerá-la, repassando energia hidrelétrica comprada barato das geradoras federais, obrigadas a descontratar grande parte da energia. Conforme observei em artigo recente na Folha de S.Paulo, as termelétricas foram introduzidas sem considerar o sistema hidrelétrico brasileiro e os leilões de energia levaram a termelétricas a carvão e a diesel, caras e poluentes, emitindo mais gases do efeito estufa. O governo deve dar mais atenção às fontes renováveis, entre elas a geração hidrelétrica, embora deva reconhecer seus problemas ambientais, incluindo emissões de metano medidas pela Coppe e USP/São Carlos, objeto de recente reunião em Paris.
Quando presidi a Eletrobrás, ela assumiu o compromisso de comprar energia de usinas eólicas e de biomassa e de pequenas hidrelétricas do Proinfa, totalizando 3,3 GW, e foram feitos investimentos na duplicação de Tucuruí, nas duas novas turbinas de Itaipu e na hidrelétrica de Peixe Angical, em parceria de Furnas com a EDP. Além do projeto do Rio Madeira, foi muito reduzida a área inundada no projeto de Belo Monte. Mas, concordo com a ministra Marina Silva, as regras ambientais têm de ser obedecidas. Cabe ao governo convencer a sociedade da qualidade dos projetos. E discordo de substituir futuras hidrelétricas por reatores nucleares, como se cogita. Caberia ao grupo Eletrobrás um papel maior, devendo-se integrar a gestão das suas empresas em um conselho formado por seus presidentes e retirá-las da partilha dos partidos da base parlamentar.
Luiz Pinguelli Rosa é coordenador do Programa de Planejamento Energético (Coppe/ UFRJ), foi presidente da Eletrobrás