O projeto de reforma sindical está pronto para ser encaminhado ao Congresso Nacional. Ele atende aos anseios de amplos setores interessados em fortalecer e dinamizar as relações de trabalho por meio do diálogo social, compromisso posto em prática pelo governo federal por meio do Fórum Nacional do Trabalho (FNT), que realizou um exaustivo processo de negociação tripartite.
O FNT, instalado em julho de 2003 sob a coordenação do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), conduziu a mais rica experiência nacional de negociação tripartite. Representantes de trabalhadores, governo e empregadores reuniram-se durante oito meses para discutir todos os aspectos concernentes às normas jurídicas relativas a organização sindical, negociação coletiva e solução de conflitos do trabalho.
No mesmo período, foram realizadas Conferências Estaduais do Trabalho em todas as unidades da Federação. Elas contaram com a participação de mais de 20 mil pessoas em ciclos de debates, oficinas, seminários e plenárias. Coordenadas pelas Delegacias Regionais do Trabalho, as Conferências colheram subsídios para a Comissão de Sistematização do FNT.
Também foram realizadas consultas a juristas, operadores do direito, membros de associações da área trabalhista, bem como a autoridades de outras esferas do Poder Público, como o Tribunal Superior do Trabalho, o Ministério Público do Trabalho, a Câmara dos Deputados e o Senado Federal.
Além disso, a coordenação do FNT acolheu diversas contribuições, de caráter individual e institucional, e procurou dialogar com os setores que reivindicavam maior participação no processo de negociação, como as confederações de trabalhadores, com as quais houve cinco encontros oficiais.
Sem menosprezar as divergências, os consensos obtidos superaram as expectativas, coroando o esforço dos representantes de trabalhadores e de empregadores, que dialogaram até o limite da exaustão em busca de um novo padrão jurídico-institucional para as relações de trabalho no Brasil. Foi também a valorização do diálogo social que presidiu a atuação do governo, o que implicou abdicar de uma proposta preliminar, em nome do consenso possível entre os principais interessados na reforma sindical.
Mesmo depois de concluídas as negociações, foram realizadas várias rodadas de conversações para aperfeiçoar o projeto legislativo. Tal opção não significou, porém, ausência de orientação quanto aos objetivos da reforma, que foi pautada por um claro diagnóstico dos problemas que derivam do marco legal das relações de trabalho.
O atual sistema de relações do trabalho é herdeiro de uma tradição autoritária e corporativista, que remonta à década de 1930 e cujos fundamentos persistem até hoje, apesar de inúmeros questionamentos. As mudanças introduzidas ao longo dos anos desfiguraram os propósitos originais desse sistema, mas não conduziram à plena democratização das relações de trabalho.
A Constituição de 1988 pôs fim à interferência e à intervenção do poder público na organização sindical, restabeleceu o direito de greve e consagrou o princípio da livre associação. Entretanto, ao mesmo tempo manteve a unicidade, o sistema confederativo, a contribuição sindical obrigatória, o poder normativo da Justiça do Trabalho e ainda criou a contribuição confederativa, que possibilitou o acesso a mais uma fonte de custeio às entidades sindicais, sem garantias de contrapartidas aos seus representados.
O fim do controle político e administrativo das entidades sindicais representou inegável avanço e tornou nulas as normas de enquadramento sindical, inclusive a exigência de autorização prévia para a criação de sindicato. Mas, diante da determinação constitucional do registro em órgão competente, sem a devida regulamentação, o MTE, por decisão do Poder Judiciário, passou a enfrentar a difícil tarefa de disciplinar o registro sindical tendo de observar o princípio da unicidade sem afrontar a liberdade sindical.
A Constituição também assegurou aos servidores públicos o direito a livre associação sindical e o direito de greve. Contudo, os servidores não tiveram assegurado o direito à negociação coletiva e continua pendente a regulamentação do exercício do direito de greve no serviço público, assuntos que estão sendo discutidos no FNT por meio da Câmara Setorial do Serviço Público.
Outro avanço constitucional foi o estabelecimento da garantia de eleição de um representante dos trabalhadores em companhias com mais de duzentos empregados, com a finalidade exclusiva de possibilitar-lhes o entendimento direto com os empregadores. Na prática, porém, esse direito não se efetivou por conta de sua não-regulamentação em lei.
As centrais sindicais, por sua vez, organizaram-se à margem das imposições legais e algumas delas se firmaram como as mais importantes entidades nacionais de representação dos trabalhadores. Mas, se obtiveram reconhecimento político-institucional, com sua crescente participação em conselhos e fóruns públicos, as centrais não possuem até hoje personalidade jurídica sindical.
Enfim, o novo texto constitucional refletiu o estágio das lutas sindicais e a dinâmica das relações de trabalho característicos do período de redemocratização. Contudo, a tentativa de conciliar a unicidade sindical com o direito a livre associação revelou-se contraditória e abriu brechas para a pulverização das entidades sindicais e para o surgimento de novos “sindicatos de carimbo”.
O aumento do número de entidades sindicais nos últimos anos, que já ultrapassa os 18 mil, resultou menos do avanço na organização sindical e bem mais da fragmentação de entidades preexistentes, de uma maneira que está enfraquecendo tanto a representação de trabalhadores como a de empregadores, situação que a vigência da unicidade sindical não tem sido capaz de impedir.
É certo que não são poucas as entidades sindicais representativas e atuantes, mas isso contrasta com a profusão de sindicatos cada vez menores e menos representativos, o que torna evidente a necessidade de superar o atual sistema, há anos criticado por sua origem autoritária e corporativista, por sua baixa representatividade e por ser pouco permeável ao controle social.
Quanto à negociação coletiva, houve nos últimos anos um aumento no número de acordos coletivos e uma queda no número de dissídios coletivos julgados pelos Tribunais do Trabalho. Mas esse crescimento deve ser ponderado, pois a possibilidade de recolhimento da contribuição confederativa estimulou o aumento artificial do número de acordos coletivos.
Também ocorreu uma dispersão da negociação coletiva, traduzida na progressiva descentralização das negociações por empresa, que reflete, em certa medida, a tendência à pulverização sindical. E o processo de negociação coletiva continuou restrito ao momento da data-base e limitado em sua abrangência e níveis de articulação.
A Justiça do Trabalho continuou a desempenhar relevante papel. Contudo, o TST é o primeiro a reconhecer que o país se tornou recordista em volume de reclamações trabalhistas. Além disso, a prevalência de soluções judiciais para conflitos de interesses tem representado, muitas vezes, a persistência de impasses que poderiam se resolver por meio de composição voluntária, sem prejuízo do acesso ao Poder Judiciário.
Essas e outras questões alimentam há décadas o debate público e indicam a necessidade de aprimorar o atual sistema de relações de trabalho, tarefa que envolve operações complexas e trará conseqüências tanto para os atores sociais como para as diferentes esferas do Poder Público envolvidas com as questões do mundo do trabalho.
Não se trata, porém, de mera alteração legislativa, mas de um amplo reordenamento jurídico-institucional, que do ponto de vista normativo deverá envolver o Direito Sindical, a Legislação do Trabalho, o Direito Processual do Trabalho, os órgãos de Administração Pública do Trabalho e a Justiça do Trabalho.
A reforma sindical é apenas o primeiro passo. A prioridade conferida a ela decorre do entendimento de que a redefinição das normas jurídicas pertinentes às relações coletivas de trabalho deve ser o centro dinâmico de qualquer esforço de democratização das relações de trabalho, precedendo assim a revisão dos demais institutos que regulam o trabalho no Brasil.
Fazem parte dos objetivos da reforma sindical:
Essa reforma, ao contrário de pautar um modelo predefinido, considerou a realidade do sindicalismo brasileiro e as expectativas dos atores sociais, sem perder de vista a necessidade de incorporar o que já foi consagrado mundialmente. Ela pretende erigir um novo sistema que valoriza nossa cultura sindical e ao mesmo tempo incorpora o princípio da autonomia privada coletiva, em sintonia com o cenário jurídico predominante nas democracias contemporâneas.
Mas, como indica a experiência internacional, até mesmo em um contexto de ampla liberdade sindical não se pode prescindir de algum critério para identificar as entidades sindicais com um mínimo de representatividade. Se há a pretensão de elevar a negociação coletiva do trabalho a um novo patamar, é indispensável identificar os atores da negociação habilitados ao exercício legítimo desse direito.
Qualquer entidade poderá pleitear a condição de sindicato. Contudo, o exercício das prerrogativas asseguradas em lei, entre as quais a de instaurar o processo de negociação coletiva, exigirá um mínimo de representatividade do proponente para que ele possa solicitar de sua contraparte a atenção e a qualificação necessárias ao exercício da negociação coletiva.
A nova dimensão conferida à negociação coletiva deverá contribuir para revitalizar as confederações, as federações e os sindicatos. As confederações e federações, que hoje só negociam facultativamente, terão a prerrogativa de negociar em seus respectivos âmbitos de atuação. Os sindicatos não apenas irão preservar as suas prerrogativas de negociação como a celebração de qualquer contrato coletivo de trabalho estará sujeita ao crivo de seus representados.
O mesmo princípio deverá nortear a organização sindical. O reconhecimento da personalidade sindical das centrais e o fortalecimento das confederações e federações dependerão da representatividade dos sindicatos, que serão a fonte legitimadora das entidades de nível superior e a unidade fundamental de representação e negociação coletiva, de trabalhadores e de empregadores.
As centrais sindicais terão reconhecida sua personalidade jurídica. Não se justifica o receio de que elas possam concorrer com os sindicatos. Além da representação político-institucional, as centrais terão o papel de articular os interesses do conjunto de seus representados, cabendo a suas confederações, federações e sindicatos a tarefa efetiva de negociar em seus respectivos níveis e âmbitos de representação.
Também poderão continuar a ser únicos os sindicatos que já têm registro perante o MTE. O direito à exclusividade de representação dependerá, no entanto, do aval dos próprios representados, da comprovação de representatividade e da adesão a normas estatutárias que garantam os princípios democráticos que assegurem ampla participação dos representados, além de perder seu caráter vitalício.
No que se refere à sustentação financeira, prevêem-se a extinção imediata das contribuições confederativa e assistencial e a extinção gradual da contribuição sindical obrigatória, que deverão ser substituídas pela contribuição de negociação coletiva. Essa contribuição, que terá um teto, estará condicionada ao exercício da negociação coletiva e à prestação de serviços por parte das entidades sindicais a seus representados.
Serão incorporados ainda ao ordenamento jurídico brasileiro diversos institutos já consagrados no direito estrangeiro, como as já mencionadas tipificação das condutas anti-sindicais, a caracterização do que se compreende por boa-fé, o delineamento da proteção à liberdade sindical, a promoção efetiva da negociação coletiva em todos os níveis e âmbitos de representação e o refinamento dos mecanismos de tutela jurisdicional.
Nesse último caso, procurou-se consolidar os mecanismos de tutela consagrados no direito processual civil, mas de aplicação ainda discutida na esfera do processo do trabalho, a base do processo coletivo comum, formada pelo Código de Defesa do Consumidor e pela Lei da Ação Civil Pública. Isso vai facilitar o recurso à substituição processual, mas sem ferir as garantias do devido processo legal, o direito ao contraditório e de ampla defesa do trabalhador e do empregador.
Outra alteração diz respeito ao exercício do poder normativo da Justiça do Trabalho, que já foi alvo de mudança na reforma do Judiciário. Para valorizar a ação coletiva, a solução de conflitos de interesse será possível apenas mediante o consenso dos atores coletivos, pela via da arbitragem ou por meio de um procedimento de jurisdição voluntária do Tribunal do Trabalho.
Pretende-se, também, rever a ação em matéria de greve, ajustando-a ao regime de liberdade sindical. A possibilidade jurídica de emissão de ordem para o retorno ao serviço ficará restrita àquelas graves situações em que estão em jogo os interesses maiores da comunidade ou quando há o risco de prejuízos irreversíveis a pessoas ou ao patrimônio do empregador ou de terceiros.
No rol das inovações, cabe mencionar a criação do Conselho Nacional de Relações do Trabalho (CNRT), concebido como um órgão tripartite e paritário voltado às questões sindicais e de relações de trabalho, em consonância com as normas da OIT. Esse conselho pretende não apenas institucionalizar a prática consagrada pelo Fórum Nacional do Trabalho, mas possibilitar a efetiva democratização da gestão pública na área de relações de trabalho.
Por fim, pretende-se dar um passo decisivo para que de fato seja assegurado o direito de representação dos trabalhadores nos locais de trabalho, ponto em que não houve consenso entre as partes, mas que o governo considera fundamental contemplar na nova legislação para estimular o diálogo social e prevenir conflitos desde os locais de trabalho.
Além dessa divergência, há outros dispositivos de menor relevância no projeto de reforma sindical que não foram objeto de consenso com os empregadores ou com os trabalhadores. Há, ainda, outros dispositivos que incorporam os consensos registrados no Relatório Final da Reforma Sindical, mas sobre os quais houve divergências de interpretação.
Estamos convencidos de que essas divergências poderão ser superadas na nova etapa de negociação, que terá início com o envio deste anteprojeto ao Congresso Nacional, ao qual caberá decidir sobre a nova legislação sindical do país, considerando, porém, as relevantes contribuições que tiveram origem no Fórum Nacional do Trabalho e indicam o desejo de dotar o país de instituições mais democráticas e sintonizadas com as novas exigências do desenvolvimento nacional e do mundo do trabalho.
Osvaldo Martines Bargas é secretário de Relações do Trabalho e coordenador-geral do Fórum Nacional do Trabalho.
Marco Antonio de Oliveira é secretário adjunto de Relações do Trabalho e coordenador-geral adjunto do Fórum Nacional do Trabalho.