História, economia, política, cultura... Ianni sabia que o verdadeiro sociólogo vai além da sociologia, mas sabe voltar a ela
História, economia, política, cultura... Ianni sabia que o verdadeiro sociólogo vai além da sociologia, mas sabe voltar a ela
Duas citações. Serão do mesmo autor?
A primeira: “A violência estatal, conjugada com o capital, a tecnologia, a divisão do trabalho, o planejamento governamental e a força de trabalho, adquiriu a categoria de força produtiva suplementar. A força de trabalho (...) foi submetida a condições de produção nas quais passaram a atuar também o planejamento e a violência, como instrumento da política a que a burguesia monopolista subordinou a sociedade”.
A segunda: “São muitas as situações nas quais o pensamento precisa recriar ou romper as palavras guardadas no dicionário. Também são muitas as ocasiões em que o pensamento precisa criar novas palavras. Trata-se de expressar o insuspeitado ou surpreendente, do qual as palavras disponíveis não se deram conta. Há realidades, idéias, conceitos e fantasias que transbordam do arsenal de palavras com que se formularam as narrativas conhecidas. São muitas as situações nas quais ‘a palavra pesada abafa a idéia leve’”.
Sim, são do mesmo autor, em momentos diferentes. Octávio Ianni escreveu a primeira na entrada da década de 1980, ao analisar a “ditadura do grande capital”. A marca das circunstâncias impregna diretamente o texto: duro, anguloso, movendo-se por espasmos à falta de oxigênio. É o lado aguerrido do intelectual atento a seu mundo, que mobilizou todas as suas forças para combater o regime que via como cortando o já difícil avanço da democratização da sociedade brasileira. O mesmo Ianni que, em 1980, respondendo de imediato ao desafio político e intelectual das grandes greves de então, publicara (com título muito seu) O ABC da Classe Operária.
É provável que seja o Ianni das obras de maior fôlego, dedicadas à reconstrução de diferentes momentos e dimensões do desenvolvimento capitalista no Brasil e também na América Latina, que mais diretamente ocorra à memória de quem tenha tido contato com sua vasta produção – sobre relações raciais e de classe, sobre o Estado e o capitalismo vistos pelo ângulo da sociedade, sobre a fase populista da organização política de sociedades como a brasileira e a mexicana, sobre os grandes temas enfim. Mas isso é só parte de um conjunto de rara diversidade. Há o Ianni dos pequenos ensaios, no meu entender o que ele fez de melhor, sempre que a premência da intervenção no debate do dia não o forçava a tolher a imaginação. É nessa categoria que entra a segunda citação, tirada do ensaio sobre “estilos de pensamento” de seu último livro maior, com título que sintetiza a figura de seu autor, sua busca, seu sempre renovado espanto: Enigmas da Modernidade-Mundo. (De passagem: a quantos sociólogos ocorreria buscar nada menos do que em Olavo Bilac a fórmula precisa no ponto exato, como ele faz no final do trecho?).
Não se trata de momentos diferentes numa trajetória linear, em que ao discípulo aplicado de um grande mestre se sucederia a fase pesada da composição de grandes obras para, finalmente, desembocar no remanso de textos menores mais soltos, de ocasião. Importa lembrar que Ianni está inteiro em cada etapa de sua inesgotável formação. Burilado com o tempo, é verdade, mas desde o começo seu olhar percorria os amplos panoramas sem perder de vista os movimentos quase imperceptíveis de suas figuras menores. E é nestas que seu olhar se demorava, sempre que as linhas mais angulosas do momento histórico não lhe impunham a exigência, ética para além de estritamente intelectual, de traçar-lhes as formas e chamar a atenção para o que tinham de cortante rigidez. A feição inflexível que, sobretudo nos anos 1970 e no início dos 1980, está presente em muitos de seus textos exprime muito mais o estigma dos tempos do que uma preferência ou insuficiência de estilo. De modo geral, pode-se dizer que sua forma de escrever amolda-se ao caráter da circunstância: mais solto quando a malha do poder social se apresenta mais flexível, duro e percussivo quando ela se enrijece.
Há razão de sobra para dedicar atenção e admiração – temperadas ambas pela crítica, como ele seria o primeiro a recomendar – a seus trabalhos mais sistemáticos, alguns deles de caráter pioneiro, como o livro de 1965 sobre Estado e capitalismo no Brasil, do qual germinaram tantos outros, sem falar de sua obra de maior repercussão, O Colapso do Populismo no Brasil. São contribuições fundamentais, sim, mas apanham só uma faceta de seu autor, a do estudioso disciplinado e movido pela compulsão a fazer frente ao duro semblante dos dias (se me permitem uma referência solta a Max Weber, autor aliás que lhe oferecia afinidades, pela impregnação política da reflexão sociológica, pela têmpera combativa de raiz moral, filtradas nele por sua referência maior, Gramsci). Para vê-lo por inteiro é preciso ir a alguns dos temas que percorrem sua obra de ponta a ponta, explícitos em certas passagens, ocultos ou deformados em outras.
O primeiro deles, talvez o principal, aparece com todas as letras já no título de seu primeiro livro de 1962, As Metamorfoses do Escravo. Trata-se, no caso, de uma reconstrução histórica do processo de substituição do trabalho servil pelo trabalho livre sob o impacto da expansão do capitalismo no Paraná. A natureza da pesquisa em que esse tema primeiro se exprime já permite indicar o papel mais amplo que desempenha na obra de Ianni. Metamorfose é o modo como, para ele, o processo histórico aparece em sua dimensão social: na diversidade e na sucessão das formas assumidas pelas relações entre os homens e mulheres e por eles próprios nessas suas relações. É o signo da história se fazendo. Sua ausência indica um desvio ou uma paralisação forçada do andamento histórico. Por isso mesmo o tema é sempre forte nele, mas só se aplica a grandes processos quando neles se encontra a história em pleno curso. Quando ela se encontra bloqueada – como Ianni a via durante o regime pós-64, especialmente pós-68 –, então só será percebida nas fendas e nos desvãos de uma sociedade que se move, sim, mas sob constrangimentos que convertem o fluxo das relações numa malha de restrições e de indicações imperativas.
Mudanças de formas nas relações entre os homens, mudanças de formas nas próprias figuras dos homens, eis o que sempre atraiu a atenção de Ianni. Para ele o insuportável é a metamorfose não se dar, ou se degradar em deformação. Nisso, de passagem, ele permite um contraste e uma certa analogia com um autor de peso que está entre os raros a quem quase não dedicou estudo, apesar da preocupação compartilhada com os fundamentos sociais da realização da democracia. Habermas tem como foco a comunicação (vale dizer, a forma compartilhada, não a metamorfose) e tem como referência negativa a distorção sistemática numa comunicação refratada pela dominação (vale dizer, o prejuízo no meio básico das relações dos homens entre si, não o bloqueio da mudança de forma das próprias relações). Em comum ambos têm o mal-estar com a dominação, essa relação paradoxal, que induz rigidez nas relações graças a sua mobilidade para infiltrar-se por todos os cantos da vida social.
Como o mesmo homem de negro se transmuda em escravo e depois de novo em negro, mas em outro negro? Como o polonês se torna polaco? E, num caso que fascinou Ianni por toda a vida e foi assunto de um de seus primeiros e melhores ensaios, qual a constelação de formas que configura o jovem como jovem e, em circunstâncias determinadas, lhe dá a qualidade de radical? São questões que nunca deixaram de fasciná-lo, e que reencontrou nos mais variados matizes em todas as dimensões da vida social que suas inquietas andanças o levaram a percorrer. Andanças – eis um bom termo, em se tratando de Ianni. A viagem é uma de suas referências básicas, tanto que lhe dedicou um ensaio tardio, A metáfora da viagem. Onde outros talvez vissem antes de mais nada o mero deslocamento ou matéria de distração, ou ainda outros enxergassem a sombra de uma condição pouco inspiradora para ele, a do exílio, parecia-lhe encontrar a experiência (termo, aliás, que já sugere viagem) que “desvenda alteridades, recria identidades e descortina pluralidades”. Nela o viajante “tanto se perde como se encontra, ao mesmo tempo que se reafirma e se modifica. No curso da viagem há sempre alguma transfiguração, de tal modo que aquele que parte não é nunca o mesmo que regressa”.
A transfiguração se dá no curso da viagem (em termos mais gerais, da experiência); é pois o curso, a travessia, e não os pontos de partida e de chegada, que importa. Novas relações, mudanças, novas formas: é sempre isso que lhe interessa examinar, tanto pelo ângulo do que têm de criador quanto pelo do trauma da parada brusca sob o olhar pétreo do despotismo em suas variadas formas. Por isso a busca sempre reiterada pela vibração do novo e a aversão por todo sinal da batida monótona e unívoca daquilo que se mantém inalterado. Pois não é a imobilidade que o preocupa. Esta não existe na vida social. Pode, sim, existir mobilidade viciada, insistente reiteração do mesmo. Por exemplo, sob o efeito dos grandes sistemas de comunicação no mundo contemporâneo, na presença do “príncipe eletrônico”, que simultaneamente sataniza, amedronta e promete salvação: “Essa pode ser a estrada na qual é tangida a multidão solitária no seio da qual o príncipe eletrônico constrói hegemonias e exerce soberanias”.
Encontram-se nele características de estilo que à primeira vista espantam, e podem mesmo ter afugentado um ou outro leitor apressado, mas melhor vistas se revelam inteiramente afins à figura do autor. Uma delas consiste no modo como invoca textos alheios e outros autores. Nos trabalhos mais sistemáticos isso não transparece tanto, pelas exigências convencionais que neles se impõem: aqui a erudição está subordinada à obrigação de citar as fontes e a dar os devidos créditos aos que vieram antes. Já nos ensaios mais informais é diferente. Neles também encontramos abundantes referências, mas não se trata de mera erudição. Elas servem para balizar o caminho, para indicar pontos de passagem, especialmente para permitir o retorno em novos termos a lugares já visitados. Por isso mesmo às vezes parecem redundantes. A idéia, porém, é retomar certas passagens (termo expressivo, também) moduladas pela referência à maneira como elas encontraram outra expressão.
Algo semelhante a isso se dá num outro aspecto da forma de pensar de Ianni. Trata-se do recurso à multiplicação dos termos, às vezes enfileirados em cadeia, cada qual modificando do seu modo o sentido do conjunto. “Ao longo dessas décadas, houve principalmente escravos, agregados, colonos, seringueiros, parceiros, assalariados, peões, volantes e outros. Mas também pelourinhos, troncos, tocaias, invasões de terras, greves, prisões e assassínios políticos. E, ainda, romarias, santos milagrosos, monges, profetas, cangaceiros, ligas camponesas e sindicatos rurais.” Percebe-se o sentido desses encadeamentos: buscam exprimir, para além de toda uma percepção do mundo, a unidade na multiplicidade de suas formas, sem cair na armadilha fácil de buscar o fecho do conjunto pela via da definição. O desafio que ele enfrentava com plena consciência consiste em dar expressão racional e adequada a um mundo uno mas não definido, sempre tenso entre o fechamento e a fragmentação. É no espaço entre ambos que ele encontra o terreno das múltiplas metamorfoses, e é a elas, ou a sua possibilidade sempre presente, que aludem as cascatas de significados que construía. Por isso repudiava o deleite na contemplação do múltiplo desprovido de qualquer princípio material de unificação. Daí sua referência de fundo às modalidades do desenvolvimento capitalista.
Sempre se tratava, para ele, de observar em todas as suas manifestações, e buscar explicar, “as formas de sociabilidade e o jogo das forças sociais”. História, economia, política, cultura, tudo isso plasmado numa linguagem própria e peculiar por sua dimensão social. Ianni sabia bem que o verdadeiro sociólogo vai além da sociologia, mas sabe voltar a ela – o que também é uma forma de viagem.
Principais obras de Ianni:
Metamorfoses do Escravo – Apogeu e Crise da Escravatura no Brasil Meridional. São Paulo, Difusão Européia do Livro, 1962.
Industrialização e Desenvolvimento Social no Brasil. Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 1963.
Estado e Capitalismo – Estrutura Social e Industrialização no Brasil. Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 1963.
Política e Revolução Social no Brasil. Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 1965.
Raças e Classes Sociais no Brasil. Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 1966.
O Colapso do Populismo no Brasil. Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 1968.
A Formação do Estado Populista na América Latina. Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 1975.
Imperialismo e Cultura. Petrópolis, Editora Vozes, 1976.
Escravidão e Racismo. São Paulo, Hucitec, 1978.
A Ditadura do Grande Capital. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1981.
Dialética e Capitalismo – Ensaio sobre o Pensamento de Marx. Petrópolis, Editora Vozes, 1982.
Revolução e Cultura. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira 1983.
Classe e Nação. Petrópolis, Editora Vozes, 1986.
Ensaios de Sociologia da Cultura. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1991.
A Sociedade Global. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1992.
Gabriel Cohn é professor titular de teoria política clássica e contemporânea do Departamento de Ciência Política da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP