Em fevereiro de 2023, o litoral de São Paulo sofreu com as maiores chuvas já registradas na história no país em 24 horas, em Bertioga as chuvas alcançaram incríveis 683 mm, de acordo com o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet). Os imensos deslizamentos ocorridos na região tiraram a vida de 64 pessoas em São Sebastião e a massa de terra destruiu tudo aquilo que encontrava no seu caminho. Sete meses depois, a população da cidade do Rio de Janeiro suportou um calor de 41,1°C e uma sensação térmica de 58,3°C – algo que não ocorria desde 2009; enquanto no sul do país choveu o “triplo e o quádruplo da climatologia normal para o mês de setembro”, segundo a MetSul, e cidades como Muçum, foram totalmente destruídas.
Eventos climáticos extremos como esses não estão mais limitados a nenhum continente ou região e tendem a ficar cada vez mais intensos, como é possível perceber a partir dos dados divulgados pelo Climate Reanalyzer da Universidade do Maine (EEUU), que registraram um aumento espantoso das temperaturas nos polos da Terra. Em partes da Antártida foram registradas temperaturas de 40°C acima do normal e 30°C acima da média no Ártico, o que fez Antártida ficar 4,8°C mais quente, em média, do que a temperatura de referência entre os anos 1979 e 2000. Ao analisar esses dados, o reconhecido cientista do Centro Nacional de Pesquisa Atmosférica dos Estados Unidos (NCAR), Kevin Trenberth, concluiu que esses eventos extremos já podem ser considerados como o “novo normal”.
A combinação do aumento das temperaturas nos polos da Terra e a diminuição das áreas cobertas pelas florestas tropicais são determinantes para acelerar o desequilíbrio das temperaturas e a consequente ocorrência de eventos extremos. As emissões das florestas, por exemplo, cumprem a função de esfriar o clima, mas “derrubando as florestas, acabamos com este efeito esfriador, e aumentamos o aquecimento global”, segundo o físico Paulo Artaxo, do Instituto de Física da Universidade de São Paulo. Entender isso torna mais fácil compreender a razão pela qual estamos diante de uma das piores secas jamais ocorridas na Amazônia, enquanto no Sul temos chuvas inéditas.
Marco temporal
Exatamente nesse momento a maioria na Câmara dos Deputados aprovou o projeto de lei sobre o marco temporal da ocupação de terras por povos indígenas (PL 490/07). Esse projeto restringe a demarcação de terras indígenas àquelas tradicionalmente ocupadas por esses povos em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição federal e impede o reconhecimento de que qualquer área que não estivesse ocupada antes desse marco temporal como dos povos originários, independentemente da causa. Além disso, o projeto prevê a permissão para plantar cultivares transgênicos em terras exploradas pelos povos indígenas; a proibição de ampliar terras indígenas já demarcadas; adequação dos processos de demarcação em curso às novas regras; e a nulidade da demarcação que não atenda a essas regras.
O projeto é tão abjeto que a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) o caracterizou como evidente “violação do Direito Originário dos Povos Indígenas", que é reconhecido desde o Brasil Colônia. "É uma tradição do direito brasileiro, com disposições semelhantes na primeira Lei de Terras do ano de 1850 e nas Constituições de 1934, 1937, 1946 e 1967". Em outras palavras, o “desenvolvimento” defendido pela atual maioria na Câmara de Deputados é um retrocesso ao período anterior ao Segundo Reinado, sob D. Pedro II.
Enquanto os modelos de aquecimento global eram apenas projeções para o futuro próximo, a incapacidade das elites com poder decisório de realizar as ações necessárias para evitar o aquecimento global poderia ser interpretada como uma espécie de síndrome de São Tomé, o santo católico que só acreditava naquilo que conseguia ver. Agora, todos estamos vendo que os modelos apresentados pelos cientistas do clima só erraram em um único ponto: os eventos extremos estão ocorrendo numa escala maior e mais cedo do que foram previstos. Isso, no entanto, não impede que mais recursos e esforços sejam destinados à fabricação e desenvolvimento de tecnologias para a guerra, do que para proteger as milhões de pessoas que estão sendo duramente atingidas pelas consequências do aquecimento global.
A civilização que produziu uma tecnologia para viver
Ao invés de atacados, os povos originários deveriam ser vistos como fonte de aprendizado sobre como construir uma civilização capaz de aprender a conviver em interação com as florestas e constituiu a sua identidade sem precisar cindir cultura e natureza. Diante da aceleração dos problemas ambientais para níveis alarmantes e das desigualdades sociais que condenam milhões de pessoas a viverem em situação cada vez mais precárias, não é mais racional identificar a realidade do mundo atual como o triunfo da civilização contra a sua negação, a barbárie.
Os conquistadores de outrora e os seus sucedâneos na atualidade sempre se autodefiniram como os portadores da “civilidade” e, assim, legitimaram a destruição de culturas e civilizações diferentes ao longo da história. Nos dias de hoje, essa retórica beneficia apenas o 1% dos hiper-ricos da população, cuja causa única é a defesa de um modelo de sociedade que interessa a eles mesmos. Tanto que, apenas na última década, concentraram 50% da riqueza mundial, segundo a Oxfam.
Quando os defensores do capitalismo dominado pela financeirização fala em “liberdade”, se referem tão somente às medidas necessárias para “libertar” o capital de qualquer controle por parte do Estado e/ou da sociedade e, assim, dar curso à sua natureza destrutiva. Essa necropolítica não tolera a diversidade e precisa sabotar permanentemente toda forma de democracia e não titubeiam em desestabilizar governos que fogem do seu controle e de financiar golpes, basta para isso que os 1% dos muito-ricos sintam que seus interesses correm riscos.
A concentração de tanta riqueza e poder nas mãos de tão poucos é a principal razão da sabotagem de todas as formas de democracia em curso no mundo. Uma ordem tão hipertrofiada só pode ser mantida por meio da negação de tudo aquilo que é diferente e possa desnudar a legitimidade de uma sociedade que, em nome da civilização e do progresso conduz aceleradamente a humanidade para a barbárie. O marco temporal aprovado pela maioria da Câmara dos Deputados deve ser entendido como mais uma demonstração da intolerância do neoliberalismo para com tudo que pode produzir alternativas e um ato de fúria contra a civilização que desenvolveu a mais imprescindível das tecnologias: a de como preservar a vida.
Gerson Almeida é sociólogo, foi secretário Nacional de Articulação Social, no segundo governo de Lula