Nos últimos cinquenta anos houve uma transformação radical na forma como o capitalismo se organiza e na forma como gera valor. Entre o pós-Segunda Guerra e a década de 1970 a forma de acumulação de capital nos países centrais esteve apoiada em um modelo com bases firmes na produção real de bens e serviços, que tinha nos ganhos salariais da classe trabalhadora garantidos por sindicatos protagonistas uma alavanca de impulso ao consumo que dinamizava a economia. Ao Estado cabia assegurar investimentos públicos, garantir o pleno emprego além de fortalecer os gastos sociais. Ao grande capital ficava a responsabilidade por sustentar patamares de investimento que garantissem dinamismo econômico e aceitar uma trilha de lucratividade mais suave. Por sua vez o trabalho organizado ganhava poder de negociação para avançar em direitos e em contrapartida adequar-se aos métodos de produção que garantissem aumento de produtividade. Esse modelo funcionava com uma série de contradições na medida em que estava confinado a alguns países e mesmo nestes países apenas a uma parte da força de trabalho, predominantemente branca e masculina, mas ainda assim foi capaz de promover nos países avançados taxas fortes de crescimento econômico e elevação dos padrões de vida naquele período1.
A partir dos anos 1970, no entanto, o grande capital passa a não mais se contentar com a trilha de lucros suaves. Inicia-se então uma nova fase do capitalismo marcada pela lógica do maior ganho possível ao acionista no menor prazo de tempo possível. Nos anos 1980 os pilares que prevaleceram no período anterior foram sendo enfraquecidos, como as políticas de pleno emprego, a negociação coletiva, o movimento sindical e a participação ativa do Estado na economia. A partir de então as regras do jogo passam a ser ditadas pela desregulamentação econômica, pela predominância da acumulação na esfera financeira, por inovações tecnológicas exponenciais, desindustrialização, terceirização de atividades e flexibilização do mercado de trabalho2. Especificamente este último elemento se expressa em flexibilização das formas de contratação, das jornadas de trabalho, das formas de remuneração e por negociações cada vez mais descentralizadas e fragmentadas3. Estruturalmente o mercado de trabalho passa a ser caracterizado por elevadas taxas de desemprego, crescimento de contratos precários, condições de trabalho heterogêneas, modestos ou inexistentes ganhos salariais e retrocesso do poder sindical, ilustrado pelos ataques realizados aos sindicatos nas gestões Margareth Thatcher e Ronald Reagan nos anos 1980 na Inglaterra e EUA. Observa-se, desde então, como tendência global, queda no número de sócios dos sindicatos e deterioração da ação sindical tanto na regulação das condições de trabalho quanto na influência nos rumos das questões nacionais4.
No Brasil, no entanto, esse movimento geral chega com certo atraso na medida em que nos anos 1980 estávamos saindo de praticamente vinte anos de demandas sociais brutalmente reprimidas pela ditadura civil-militar iniciada em 1964. Sendo assim, o movimento sindical que ganha força naquele período a partir do novo sindicalismo participou ativamente do processo de redemocratização do país, inclusive com a realização de importantes greve e a fundação da Central Única dos Trabalhadores (CUT) em 19835. Nos anos 1990, no entanto, o neoliberalismo chega com força ao Brasil e a liberalização financeira e comercial aumenta a vulnerabilidade externa do país e desarticula nossas estruturas econômicas, gerando desemprego e flexibilização das condições de trabalho em contexto de forte reestruturação produtiva, o que gera um enfraquecimento da ação sindical.
A crise internacional de 2008 foi gestada a partir das desregulamentações trazidas pelo neoliberalismo, e ainda assim a saída dessa crise tem consistido até o momento em uma espécie de ultraneoliberalismo, principalmente com a aplicação intensa de inovações tecnológicas típicas da chamada 4ª revolução industrial e reformas trabalhistas ao redor do mundo aplicadas como forma de recompor margens de lucro com base na precarização incessante do trabalho, cuja última novidade espúria consiste no surgimento do trabalho de plataforma, absolutamente desprotegido.
No Brasil o golpe que tirou a presidenta Dilma Rousseff da Presidência ocorreu para implementar a precarização e flexibilização de direitos trabalhistas, entrega do patrimônio público e uma agenda de retrocessos. A reforma trabalhista de 2017 seguiu esse movimento e criou um cardápio de opções de contratação precárias como o trabalho intermitente e o autônomo exclusivo, por exemplo, enfraqueceu a negociação coletiva e o movimento sindical ao abrir a possibilidade de negociações individuais em inúmeros temas – banco de horas, horas extras, rescisão por comum acordo, intervalo para amamentação etc. –, estabelecer a prevalência do negociado sobre o legislado em condições inferiores a lei e permitir negociação individual para os chamados hipersuficientes6, quando é notório que a negociação individual significa na verdade uma imposição unilateral por parte do empregador de condições de trabalho precárias. Além disso, a reforma trabalhista acabou com a contribuição negocial obrigatória sem colocar em seu lugar nenhuma previsão alternativa de financiamento para as entidades sindicais7.
A CUT – maior central sindical do Brasil – sempre foi contra o imposto sindical obrigatório e sempre defendeu que os trabalhadores e trabalhadoras fossem livres para definir democraticamente a forma como desejam financiar suas entidades de representação. No entanto, a reforma trabalhista de 2017 não trouxe nenhuma previsão de alternativa nesse sentido, na medida em que seu objetivo não era aumentar a legitimidade e representatividade dos sindicatos, mas sim destruir o sindicalismo brasileiro para, assim, poder reduzir direitos da classe trabalhadora.
Apesar de a narrativa favorável à reforma trabalhista defender que ela seria capaz de gerar 6 milhões de empregos formais8 em pouco tempo, não foi o que se observou desde então. A mudança de paradigma, somada ao cenário político instaurado no país a partir do golpe de 2016 e aprofundado após a eleição de 2018, gerou uma profunda precarização do mercado de trabalho brasileiro. A taxa de desemprego saiu de pouco mais de 6% no final de 2013 para o patamar de mais de dois dígitos que temos desde 2016 até o presente momento. Entre a população ocupada vemos uma perda de participação do emprego assalariado com carteira de trabalho assinada, e, portanto, protegido pela legislação trabalhista e pela organização sindical, e uma expansão do emprego sem carteira assinada e o trabalho por conta própria, ambos atingindo seus maiores patamares históricos nesse início de 2022. Estudo da LCA indicou que nos últimos oito anos o contingente de trabalhadores com carteira assinada teve queda de 2,8 milhões, enquanto o de trabalhadores sem carteira assinada ou conta própria tiveram crescimento de 6,3 milhões9.
Como resultado vemos a remuneração média real dos trabalhadores do Brasil atualmente em patamar inferior ao observado há 10 anos segundo dados da PNADC-IBGE, as negociações salariais com cada vez mais dificuldade em conquistar ganhos reais de salário ou ao menos recompor a inflação, além de uma queda na taxa de sindicalização do país justamente como resultado do crescimento do emprego em segmentos precários, sem tradição ou histórico de organização coletiva. Em suma, os trabalhadores e trabalhadoras do Brasil estão cada vez mais fragmentados e isolados. Para completar o quadro o governo Bolsonaro realizou uma reforma da Previdência dificultando o acesso das pessoas à aposentadoria digna, o que diante de um mercado de trabalho cada vez mais informal irá levar a um aumento da pobreza também na velhice.
Os desafios do movimento sindical passam, portanto, pelo enfretamento corajoso e criativo do cenário aqui exposto: os impactos da tecnologia no emprego intensificados com a pandemia, a distribuição dos ganhos de produtividade oriundos das inovações tecnológicas entre os trabalhadores por meio de elevação da remuneração e redução das jornadas de trabalho, a organização não só dos segmentos formais tradicionais, mas também dos segmentos precarizados e não assalariados, as contradições do trabalho no mundo digital, a mobilização de trabalhadores em home office, a criação de identidades de classe e solidariedade num mundo que cada vez mais incentiva a competição entre trabalhadores, a regulamentação do trabalho de plataforma, e a reversão dos mecanismos perversos originados na reforma trabalhista.
Para tanto faz-se urgente uma reforma sindical que garanta ampla liberdade sindical para os trabalhadores e trabalhadoras se organizarem para além da estrutura atual de categorias. Porém, liberdade não significa fragmentação dessa organização. É necessário fortalecer a negociação coletiva, acabando com o imbróglio da negociação individual aprovada na contrarreforma trabalhista, avançar por caminhos que de fato fortaleçam grandes negociações coletivas articuladas, por exemplo, por ramos de atividades econômicas ou macrossetores, por meio de sindicatos representativos que tenham o trabalhador e a trabalhadora como soberanos em suas decisões coletivas tomadas em assembleias e que todos os trabalhadores e trabalhadoras, independente de sua forma de inserção no mercado de trabalho, tenham direito de ser organizar em sindicatos. Diante das novas realidades trazidas pelo mundo digital a organização precisa passar não só pelo local de trabalho físico nas empresas, mas também pelo local de moradia, pelo bairro, e pelas mídias sociais e novos canais de comunicação que podem ser utilizados para fortalecer a luta coletiva, como foi demonstrado nas recentes mobilizações dos trabalhadores de aplicativo. O caminho da mudança passa também pela autorregulação, na qual os trabalhadores definem regras para sua organização. Para que isso ocorra é necessário combater as práticas antissindicais.
Para além dos temas diretamente relacionados as relações de trabalho, os desafios do movimento sindical também se encontram na esfera mais ampla dos grandes debates nacionais. Vivemos um período de economia estagnada, inflação elevada, desemprego, endividamento da população, aumento da pobreza, da desigualdade e da fome. O modelo econômico neoliberal faliu e se mostra cada vez mais incapaz de responder as demandas da população brasileira. Nesse sentido o movimento sindical precisa ser ator protagonista na criação das bases da reconstrução do Brasil e já deu início a este processo ao formular a Pauta Unificada da Classe Trabalhadora aprovada durante a Conferência da Classe Trabalhadora (Conclat) realizada em abril de 2022. A pauta consiste em documento com 63 propostas divididas em quatro eixos (prioridades; desenvolvimento sustentável com geração de empregos de qualidade; trabalho, emprego e renda; Estado e Políticas Públicas).
Trata-se de uma construção e uma conquista da ação unificada dos trabalhadores e trabalhadoras do Brasil e é justamente tal unidade que será tão necessária para que o sindicalismo possa renovar suas estratégias e fazer frente ao cenário adverso que nos assola, retomando o protagonismo na regulação das relações de trabalho no país e na construção de uma sociedade justa, igualitária e democrática, com geração de empregos decentes a partir de uma estrutura econômica sólida, moderna, diversificada e que ao mesmo tempo tenha a preservação ambiental e a universalização de políticas públicas como preocupações centrais com o intuito de atender as necessidades sociais e melhorar substancialmente as condições de vida da classe trabalhadora no Brasil.
Juvandia Moreira Leite é presidenta da Confederação Nacional dos Trabalhadores do Sistema Financeiro (Contraf) e integra a direção nacional do PT e da CUT