As iniciativas do governo federal de desmonte generalizado dos órgãos de fiscalização e proteção do patrimônio nacional, e a ação cada vez mais desavergonhada das redes de exploração ilegal de todos os tipos, indicam uma forte correlação de colaboração.
A aceleração da exploração dos recursos naturais, a invasão das áreas protegidas e das terras demarcadas para os povos indígenas e o desmatamento desenfreado da Amazônia só alcançou a escala atual, em razão dessa colaboração entre o governo Bolsonaro e os criminosos, que a mídia corporativa insiste em chamar de “empresários”.
Ainda na condição de candidato à Presidência, Bolsonaro já anunciava que iria agir para desmontar os órgãos de fiscalização e controle, especialmente na área ambiental. Suas declarações tinham o objetivo explícito de construir uma aliança com os grupos de interesses espúrios, sempre à margem da legalidade. Todos eles perceberam a sua eleição como uma oportunidade de dar fim à barragem de proteção que, apesar de todas as dificuldades, representava o Sistema Nacional de Proteção Ambiental (Sisnama), construído ao longo de muitos anos de lutas.
A pressa predadora é grande. Já nos primeiros dias de governo começaram as exonerações dos superintendentes estaduais do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), sendo que foi apenas uma questão de tempo a substituição em todas as 27 superintendências existentes; a Secretaria de Mudanças Climáticas e Florestas foi extinta e o Serviço Florestal Brasileiro foi transferido para o Ministério da Agricultura. Esses são apenas alguns exemplos de uma imensa lista de iniciativas meticulosamente pensadas para um desmonte geral.
O curioso é que para executar o enfraquecimento dos órgãos de controle e fiscalização ambiental a gestão foi amplamente militarizada e a representação da sociedade civil nas instâncias de controle drasticamente diminuídas. Segundo o Transparência Brasil, em outubro de 2020, eram 99 os militares em cargos comissionados nos órgãos responsáveis pelas políticas ambientais. Um único exemplo: Walter Mendes Magalhães Júnior, ex-comandante da conhecida e violenta Rota, da polícia militar paulista, foi nomeado para a coordenador-geral de fiscalização do Ibama. Em inquérito realizado pela Polícia Federal, pouco tempo depois da sua nomeação, é atribuído a ele – assim como a outros tantos pares – a emissão de certidões que atestariam a regularidade das exportações de madeiras apreendidas por autoridades americanas e europeias, realizadas pela empresa Tradelink Madeiras Ltda.
Claramente, o projeto em curso é, a partir da gestão do Estado, agir fortemente contra as funções estatais de regulação da ação do mercado e atuar diligentemente em benefício dos interesses dos setores mais predadores do capital. É para dar uma aura de legitimidade para a mais pura rapinagem que serve o discurso de uma completa desregulamentação e a exigência de total liberdade às “forças do mercado”, eufemismo utilizado para mascarar a determinação dos governos neoliberais de transferir renda e patrimônio público para o controle privado.
Como todos têm a consciência de que este governo está assentado em bases frágeis e democraticamente ilegítimas, há uma ansiedade em não “perder tempo” e consumar o mais rápido tudo aquilo que for possível, criando situações de difícil reversão posterior. Há uma nítida determinação desses setores de que este governo pode passar, mas a sua obra destrutiva deve permanecer como uma situação de fato.
Desse projeto resultará uma nação ainda mais empobrecida, mas alguns se tornarão “empresários milionários”, que é, por exemplo, a forma quase reverente que a mídia corporativa está se referindo a Aparecido Naves Júnior, preso pela PF sob acusação de ter mandado incendiar dois helicópteros do Ibama, um crime típico das milícias mais poderosas da América Latina. O “empresário” ficou “milionário” com o garimpo ilegal nas terras Yanomami.
Diferente dos filmes da sessão da tarde, nos governos neoliberais como o de Bolsonaro, não há uma fronteira bem definida a separar os representantes do Estado, responsáveis por fazer cumprir as leis (os mocinhos), e os interesses daqueles interessados em burlá-las (os bandidos). O esmaecimento desta fronteira gerou na gestão ambiental brasileira autorizações para exportação de madeira sem licença, a defesa de licenciamento automático para o agronegócio, punições e constrangimentos sistemáticos aos servidores do Ibama por exercerem as suas obrigações de fiscalização.
Resta lembrar do caso emblemático do servidor Júlio Cezar Dutra Grillo, superintendente do Ibama em Minas Gerais, que “ousou” registrar que barragens como a de Brumadinho, caso não fossem diligentemente cuidadas poderiam ser um grave risco. Nas suas palavras "em uma negligência qualquer de quem está à frente de um sistema de gestão de risco, aquilo rompe”. Esta afirmação lhe custou sua exoneração e a incúria redundou num dos maiores crimes ambientais da nossa história. O nome adequado é crime, pois como era possível prevenir e agir, o ocorrido não pode ser classificado como desastre.
O retrocesso nas políticas de proteção ambiental no país, cujo símbolo são os sucessivos recordes de desmatamento da Amazônia devem ser vistos como objetivos cumpridos por um governo que age ativamente contra a lei e deixa caminho livre para as ações predadoras. O governo Bolsonaro instituiu uma espécie de “estado de bem-estar” para os criminosos ambientais.
Mas isso não é um ponto fora da curva, por mais chocante que seja. Ao falar sobre a questão moral na atualidade, o sociólogo Bauman, chama a atenção sobre a sua inerente característica de “ambivalência”, e ela não seria moral sem uma escolha entre o bem e o mal” e é por essa razão que a moral precisa de uma base ética capaz de orientá-la. Ética, ainda segundo Bauman, seria “um código de leis que prescreve o comportamento ‘universalmente’ correto isto é, para todas as pessoas em todos os momentos”.
A lógica do neoliberalismo não comporta nenhum compromisso com a noção de “universalidade”, de um padrão comum que sejam ao menos idealmente aceito como necessário a todos. Ao compreender a “liberdade individual” de forma fundamentalista, todo o regramento da vida social passa a ser visto como limitação da liberdade do indivíduo – a guerra contra as vacinas e a exigência de passaporte vacinal demonstram bem isso. Dessa forma, a racionalidade neoliberal não pode comportar a ideia de bem comum, de interesse coletivo.
A aceleração obscena da desigualdade demonstra esse divórcio dos neoliberais com a noção de bem comum, que faz concentrar nas mãos de apenas 2.153 bilionários tenham uma riqueza equivalente à de 4,6 bilhões de pessoas, cerca de 60% da população mundial, conforme relatório da Oxfam, de janeiro de 2020.
O compromisso do governo Bolsonaro em desmontar os órgãos de regulação, controle e fiscalização não deve ser entendido como uma anomalia política. Os esforços em benefício do chamado “setor econômico” expressa uma lógica social e econômica mais ampla, que dissociou os “interesses de mercado” de qualquer vínculo com a noção de “interesse geral”, fundadora da modernidade. Os neoliberais, portanto, atuam como verdadeiros missionários da desigualdade e não perdem oportunidade de glorificar todo o tipo de abuso e privação como se desenvolvimento fossem.
Resta à consciência crítica rearticular escolhas morais a um padrão ético de sociedade que não normalize a exclusão, os preconceitos e a obscena desigualdade, o que passa por conceber o indivíduo e a sociedade como projetos não excludentes. Muitas coisas são necessárias para que isso aconteça e, entre elas, precisamos deixar de tratar as quadrilhas que incendeiam helicópteros a serviço da proteção dos bens naturais e da população mais vulneráveis, com deferência, como “milionário” e, sim, como bandido que é.
Gerson Almeida é sociólogo, ex-secretário do meio-ambiente de Porto Alegre (RS)