Política

O estilo autocrático e confrontador do presidente e de seu governo desestruturou a dinâmica de cooperação formal e informal que existia entre os entes federativos em diversas políticas públicas

Bolsonaro se revelou absolutamente disfuncional na relação federativa. Marcelo Camargo/ABr

Os arranjos federativos, na lição de Márcia Miranda Soares1, possuem algumas características, entre as quais a divisão do território, o sistema bicameral, a presença dos três poderes, a existência de uma Suprema Corte, a definição das competências administrativas e fiscais entre os entes e a autonomia de cada ente para construir seu governo, mas a dinâmica de funcionamento de um federalismo com políticas públicas universais e descentralizadas depende, essencialmente, da relação de interdependência entre os entes federativos, da cooperação entre eles e da coordenação do governo central, fato que não tem ocorrido no governo Bolsonaro.

Operacionalmente, o bom funcionamento de federações como a brasileira − com desenho de descentralização e universalização das políticas sociais, competindo ao governo federal a formulação, o financiamento e a orientação técnica e aos entes subnacionais a execução − depende da interação entre os entes, especialmente da coordenação do governo central, que poderá ser exercida pelo presidente da República ou por delegação deste, e do respeito às lideranças políticas subnacionais.

O presidente Jair Bolsonaro − tanto por seu estilo quanto pelas características de sua eleição − se revelou absolutamente disfuncional nessa relação federativa, porque além de não participar pessoalmente da interação com as unidades subnacionais, de proibir seus ministros de fazê-lo, de desativar os espaços de diálogo, articulação e negociação federativa, ainda adotou um modelo de confronto com os titulares dos entes subnacionais, substituindo a cooperação pelo conflito.

Bolsonaro foi eleito num clima de polarização, de grande conflagração nacional e forte rejeição ao sistema político e suas práticas, reforçado pelo ambiente moralista-justiceiro da Lava-Jato e pelo estilo mobilizador e confrontador do então candidato, um cidadão sem preparo nem noção das três relevantes funções do cargo de presidente da República: chefe de Estado, chefe de governo e líder da Nação. Além disso, o presidente montou uma equipe liberal, do ponto de vista econômico; fiscalista, do ponto de vista de gestão; conservadora, em relação a valores; à extrema-direita, do ponto de vista político; atrasada, em relação aos direitos humanos; e refratária em relação à proteção ao meio ambiente.

Com tais características, o governo tentou colocar em prática uma gestão que nega os postulados da Constituição de 1988, voltada para: a) reduzir o papel do Estado no provimento de bens e serviços; b) concentrar o poder decisório no Poder Executivo federal; c) desmontar políticas públicas consideradas contrárias à visão do presidente e sua equipe, como as das áreas de educação, meio ambiente e direitos humanos; d) redução do papel técnico-político na produção de políticas públicas; e e) montagem de um modelo de federalismo descoordenado, confrontador, autocrático e que não assume responsabilidade, terceirizando os problemas e erros para os entes subnacionais.

A visão governamental sobre o federalismo se baseia em um esquema dualista de relações intergovernamentais, segundo o qual o governo federal deve, de um lado, reduzir a sua participação na redução da desigualdade e no suporte técnico e financeiro aos governos subnacionais, e, de outro, centralizar as questões importantes em âmbito nacional, numa relação hierárquica que subordina os entes subnacionais, numa lógica de que o governo central manda e os demais obedecem. A lógica desse modelo, segundo Abrucio et al (2020) é de que os entes subnacionais são mais eficientes que o governo central e, como dispõem de autonomia administrativa, financeira e orçamentária, não precisam de coordenação nem do suporte do governo central, podendo responder melhor às situações locais2.

O desenho federativo brasileiro, segundo os autores mencionados, combina autonomia subnacional com coordenação nacional, num modelo cooperativo, no qual o processo de financiamento, de regulação e de indução acontece de forma centralizada e a implementação acontece de modo descentralizado e com autonomia política do ente, sem oposição entre centralização e descentralização. Já o modelo de Bolsonaro, ainda de acordo com os autores, segue o slogan “Mais Brasil, Menos Brasília” e prevê uma lógica tripla federativa: divisão rígida de funções entre os níveis de governo, concentração autocrática de decisões no governo federal que afetam entidades subnacionais, e confronto e luta intergovernamental constante contra adversários reais ou imaginários.

Esse estilo autocrático e confrontador do presidente e de seu governo desestruturou a dinâmica de cooperação formal e informal que existia entre os entes federativos em diversas políticas públicas, seja com iniciativas que ignoram os governos subnacionais, seja com mudanças em conteúdo de políticas públicas sem qualquer consulta aos demais entes federativos, seja na desativação de instância de diálogo e concertação interfederativa. Chegou, mesmo, por meio da PEC do Pacto Federativo, a propor a extinção de mais de 1200 municípios, sem qualquer diálogo com os entes subnacionais.

Para corroborar o que se afirma acima, vamos citar quatro exemplos dessa postura autoritária de interferência em políticas públicas que ampliam o conflito federativo, dois antes e dois durante a pandemia, os quais ilustram bem a opção deliberada do governo federal pelo conflito federativo na formulação e implementação de políticas públicas.

O primeiro exemplo foi na área de educação, com o Ministério da Educação criando o Programa Nacional de Escola Cívico-Militar, que expande as escolas cívico-militares sem qualquer consulta ou consideração à posição ou opinião dos governos subnacionais sobre a questão, num completo desrespeito a autonomia federativa dos entes.

O segundo exemplo foi na área ambiental com a criação do Conselho da Região Amazônica, uma estrutura de governança sob a liderança do vice-presidente da República, que incide sobre o território amazônico sem consulta nem participação dos governadores dos estados afetados.

Já o repasse de recursos para socorrer os estados e municípios, definido nos termos da Lei Complementar 173/2020, foi concebido e aprovado pelo Congresso à revelia do Executivo, ao qual coube, apenas, fazer as transferências. A atuação do governo, nesse processo, porém, foi no sentido de impor condições, como o congelamento de despesas até dezembro de 2021, invadindo as competências dos entes subnacionais.

Isso também pode se dizer do repasse de parcela dos recursos decorrentes do acordo entre Petrobras e União sobre a cessão onerosa do pré-sal, em que o papel de articulador e negociador foi exercido fora do Executivo. A questão das vacinas para o enfrentamento da Covid-19 também foi uma evidência da descoordenação governamental: apenas após o protagonismo do estado de São Paulo, e de inúmeros conflitos abertos, inclusive com direito a bate-boca virtual, o governo federal adotou medidas concretas para promover – e de forma insuficiente – a compra e distribuição de vacinas.

Para o bem do Brasil, o governo Bolsonaro não teve força política para revogar ou desmontar as instituições criadas pela Constituição nem os sistemas nacionais de políticas públicas criadas por lei, mas tem conseguido paralisar seu funcionamento, tanto por ações quanto por omissões deliberadas. A institucionalização de mecanismos de freios e contrapesos, anteriores à sua gestão, e a atuação direta do Legislativo e do Judiciário, têm conseguido segurar seu ímpeto destrutivo, embora não consigam impedir ações de competência exclusiva do Poder Executivo, especialmente aqueles em nível infralegal, como portarias, orientações, instruções normativas e atos declaratórios, cuja vigência independe da aprovação do Congresso Nacional, com efeitos deletérios sobre políticas públicas que conflitam com a visão atrasada e reacionária de um governo de extrema-direita.

Antônio Augusto de Queiroz é jornalista, mestre em Políticas Públicas e Governo pela FGV. Ex-diretor de Documentação do Diap, é analista e consultor político em Brasília

Luiz Alberto dos Santos é doutor em Ciência Sociais, mestre em Administração, Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental. Advogado, consultor legislativo do Senado Federal. Professor colaborador da EBAPE/FGV. Sócio da “Diálogo Institucional Assessoria e Análise de Políticas Públicas”