Sociedade

É preciso articular ações para implementar a LMP em sua totalidade e não "desidratá-la". Hoje há cerca de 300 propostas de alterações na lei tramitando no Congresso

A LMP é uma conquista tecida com muita dor originada por uma sociedade sexista, mas também com muita luta dos movimentos sociais e feministas. Foto: Fernando Frazão/ABr

A Lei Maria da Penha completa, neste 7 de agosto de 2021, 15 anos e representa até hoje uma das principais ferramentas de promoção e garantia dos direitos humanos das mulheres. Contudo, ainda são muitos os desafios a serem enfrentados. Contamos com a terceira melhor e mais avançada legislação do mundo no combate à violência doméstica, mas o Brasil é o quinto país no ranking mundial de feminicídios. O nível de integralidade e sofisticação dessa legislação de gênero é compatível com o tamanho do desafio para sua implementação e execução.

Sancionada em 2006, no governo Lula, a Lei Maria da Penha (LMP) revolucionou o debate sobre o enfrentamento da violência contra a mulher no Brasil e tem sido um parâmetro importante para alargar projetos de lei e outras proposituras no Congresso Nacional, extremamente importantes no combate à violência. A LMP é uma conquista tecida com muita dor originada por uma sociedade sexista, mas também com muita luta dos movimentos sociais e feministas, cuja aprovação se deu num momento de nossa história em que havia um governo comprometido com políticas públicas para assegurar a equidade de gênero, impulsionada pelo resultado de uma condenação da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, em 2001, justamente pela omissão e negligência do Estado nos governos anteriores.

É a partir da instauração da Lei Maria da Penha que pudemos ter de fato parâmetros legais para dimensionar o tamanho e a abrangência da violência contra as mulheres em nosso território e o quanto de investimentos e articulação se precisa para começar a combater essa violência. A lei determina a criação de varas especializadas e tipifica a violência doméstica muito além das agressões físicas que costumam ser as mais visíveis: psicológica, moral, patrimonial e sexual no âmbito doméstico/familiar, que se expressam em ameaças, ofensas, tentativa de controlar o comportamento da mulher etc.

A tipificação da LMP mostra que nem todas as violências deixam marcas na pele, mas todas elas deixam marcas na alma. Além disso, para além dos dispositivos penais, é uma legislação integral, que desnaturaliza as violências contra as mulheres e contempla prevenção, promoção de direitos e cidadania das mulheres, proteção, responsabilização, reparação e superação por meio de políticas públicas integradas para promover o acolhimento, a emancipação e a autonomia das mulheres vítimas de violência doméstica/familiar.

Após 15 anos de sua aprovação, ainda são muitos os desafios que precisamos encarar para que ela seja implementada na sua inteireza, garantindo todas as ações necessárias para seu pleno funcionamento, aperfeiçoando cotidianamente a sua aplicação. É preciso considerar todos os dispositivos da LMP, colocando em prática todas as campanhas definidas e fomentar a divulgação integral da lei, investir na formação e educação não violenta na sociedade, aplicar a competência híbrida dos Juizados Especiais de Violência Doméstica para julgar casos cíveis e penais, e investir em grupos reflexivos para homens, são mais alguns desses desafios. Para além de outros desafios que estão postos, como assegurar a estabilidade de emprego à mulher vítima de violência.

Para superar esses desafios, o Estado precisa assegurar serviços públicos articulados e investimento adequado; garantir a criação e funcionamento dos equipamentos públicos; executar o conjunto de políticas públicas de forma intersetorial, que envolvam as políticas de educação, segurança, saúde, emprego, cultura, geração de renda e demais, dando margem para a ressignificação da condição de gênero. No Congresso e no Executivo, é preciso fortalecer e articular ações para implementar a LMP em sua completude e não fragmentá-la e/ou enfraquecê-la, além de promover a mobilização social e organização do conjunto da sociedade em torno dessa questão para consolidarmos o campo de atuação dessa legislação e construir a resistência pelo fim da violência contra as mulheres.

Contudo, o que está ocorrendo hoje é a tentativa cada vez mais explícita de se emplacar um fenômeno de “desidratação” da LMP, restringir e desarticular as leis que garantem o direito e dignidade das mulheres: são cerca de 300 propostas de alterações na lei tramitando no Congresso neste momento. O atual governo segue desmontando a estratégia de construção do pacto nacional de enfrentamento à violência contra as mulheres e não fornece os recursos necessários para que estados e municípios façam o enfrentamento dessa violência. Não se propõe a promover as políticas públicas, o orçamento está precarizado e a articulação pela garantia de direitos está engessada.

Em 2020, dos R$ 124 milhões disponíveis para a Secretaria de Política para as Mulheres, apenas 30% foram executados. Já a Casa da Mulher Brasileira, uma das principais políticas de apoio e proteção às mulheres vítimas de violência, não recebeu nenhum investimento em 2019 e, agora em 2021, executou apenas 2,6% da verba autorizada para o ano. Além disso, há aberrações legislativas como a chamada “Escola Sem Partido” que visam proibir a discussão de gênero nas escolas. O Brasil vive neste momento sob o açoite de um governo fundamentalista e ultraneoconservador que propõe a perpetuação da cultura machista, patriarcal, que alimenta a violência contra as mulheres, nos mostrando que não fizemos o luto dos períodos traumáticos da nossa história, entre eles o colonialismo, no qual donos da terra se sentiam “verdadeiros donos” das crianças, das mulheres, dos trabalhadores.

Assegurar uma vida sem violência de gênero é estruturante para a construção de uma sociedade envolta em cultura de paz. A violência doméstica contra as mulheres se estende para além dos lares, atinge crianças, famílias, o conjunto da sociedade e os direitos. A ameaça aos direitos é a própria ameaça à democracia. Estamos vivendo uma ruptura democrática fundamentada na necropolítica que atinge corpos e direitos específicos de forma mais intensa. Há um nítido desmonte do Estado e do sistema de garantia de direitos no Brasil.

Faz-se necessário, portanto, resgatar o Estado capturado pelo pensamento da era medieval, obscurantista, para promover a dignidade humana, princípio basilar da nossa constituição. Essa captura se expressa no fato de termos à frente do Ministério de Defesa dos Direitos Humanos, das Mulheres e da Família, o antifeminismo, na Fundação Cultural Palmares, o racismo e no Ministério do Meio Ambiente, o anti-ambientalismo, dentre outros disparates.

Temos na Presidência da República um discurso que, de forma massiva e ostensiva, legitima inúmeras violências sistêmicas, inclusive a violência doméstica. É preciso termos clareza de que não há inocência nos discursos. Discursos são pontes entre pensamento e ação. Posições e discursos de ódio e misóginos, como do atual presidente da República, que considera o estupro como prêmio, reforçam a violência literal e simbólica, se transformando em hematomas, balas e estatísticas cruéis. O feminicídio literal, que sempre é precedido por um feminicídio simbólico, caracterizado pelo impedimento de mulheres de serem donas do seu pensar, do seu agir, do seu sentir, negando-lhe sua humanidade, representa o auge de uma construção sexista e patriarcal, que hierarquiza os seres humanos em um processo de desumanização. É consequência da naturalização de uma construção de gênero que subordina o feminino ao masculino, reforçada constantemente pelas práticas emanadas do atual governo federal.

A violência doméstica de gênero se expressa de forma absolutamente intensa, porque o objeto do nosso desejo e do nosso amor é o agente das agressões que nos atingem. Quando estamos nas ruas, somos anônimas, ninguém sabe quem somos. É em casa que temos nome, história e laços afetivos, e há milhões de mulheres que têm medo de voltar para casa porque serão submetidas a um processo semelhante à tortura. A violência doméstica arranca as mulheres delas mesmas e de repente quando ela olha pra si percebe que foi esvaziada enquanto pessoa, tornando-se o espelho do desejo do homem.

Assim, a LMP é um convite ao exercício da cidadania e da defesa e promoção de direitos. Enfrentar a violência de gênero não é secundário ou mesmo está à margem de qualquer outra discussão sobre o perfil da sociedade em que vivemos. É estruturante. Enquanto houver violência de gênero, o processo de desumanização se fortalece e se espalha por toda a sociedade. Posto que relações sociais violentas são fruto, dentre outros aspectos, de uma desumanização do outro. Se as pessoas se sentissem igualmente humanas e detentoras de direitos, teríamos uma cultura de paz. Não se enfrenta a violência que nos rouba as ruas e as noites sem enfrentarmos a violência contra as mulheres.

A LMP, como toda relação dialética, é semente e fruto. Fruto da luta de todas as mulheres para superar as dores do pacto letal entre patriarcalismo e racismo. Semente de uma sociedade justa e igualitária que pressupõe a igualdade de direitos entre homens e mulheres.

Jamais viveremos numa democracia de alta intensidade enquanto mulheres, que representam mais da metade de nossa população, vivenciarem tantas expressões de violência. Urge que possamos implementar plenamente a LMP, com o compromisso do Estado de efetivar políticas públicas que garantam o empoderamento e protagonismo das mulheres assegurando o direito inalienável de vivermos em paz.

Assim, para que nossos risos substituam nossas lágrimas, transformar o cenário de múltiplas violências perpetradas contra a mulher exige um Estado profundamente engajado e comprometido com os direitos humanos, fundado na intersetorialidade, com perspectiva de gênero em suas ações e equipamentos públicos necessários. Para tanto, é fundamental a construção do protagonismo e autonomia das mulheres, bem como pactuar nos territórios redes de enfrentamento à violência e de fortalecimento da igualdade de direitos. Temos pressa na capacitação dos profissionais, na desconstrução dos preconceitos e estereótipos de gênero, no desenvolvimento de novas formas de sociabilidade que identifiquem e desconstruam as diversas formas de masculinidades tóxicas.

São fundamentalmente as mulheres em movimento que arrastarão o conjunto da sociedade para a mudança cultural de valores e comportamentos discriminatórios, construindo a igualdade de direitos imprescindível para assegurar princípios e garantias inerentes ao Estado Democrático de Direito. Da mesma forma que as violências e discriminações não são solitárias, uma sempre estimula a existência da outra, enfrentar a violência contra as mulheres significa construir as condições para o enfrentamento de todas as violências.

 Erika Kokay é deputada federal (PT-DF) e coordenadora do núcleo de deputadas federais do PT na Câmara