A atuação do grupo pode revitalizar a vontade coletiva em busca de soluções de consenso para os desafios do início deste século
A atuação do grupo pode revitalizar a vontade coletiva em busca de soluções de consenso para os desafios do início deste século
Ao participar do Brics, o Brasil não faz, como querem alguns críticos, uma opção contra o Ocidente. Não exclui a ampliação das relações com parceiros tradicionais, como Estados Unidos, União Europeia e Japão. Tampouco relega a segundo plano a importância que a América do Sul tem para a política externa brasileira
A recém-concluída VI Cúpula do Brics, realizada em Fortaleza e em Brasília, consolidou intenso trabalho diplomático empreendido nos últimos anos e trouxe promissores resultados para o futuro do grupo. Desde 2009, o Brics, apoiado em encontros anuais de seus chefes de Estado e de governo, fortaleceu-se como foro de concertação econômica e política e ampliou seu protagonismo em variado leque de temas internacionais.
Ao aprovar, em Fortaleza, a criação do Novo Banco de Desenvolvimento – que contará com capital inicial autorizado de US$ 100 bilhões e capital subscrito inicial de US$ 50 bilhões, igualmente distribuídos entre seus membros fundadores –, o Brics oferece aos países em desenvolvimento alternativa às suas necessidades de financiamento, compensando a insuficiência de crédito das principais instituições financeiras internacionais.
O Arranjo Contingente de Reservas, adotado na mesma cúpula, reflete a maturidade da coordenação entre os cinco países ao estabelecer um fundo de US$ 100 bilhões para proteção contra crises de balanço de pagamentos. Esse acordo contribui também para a estabilidade financeira global, ao complementar os mecanismos financeiros existentes.
Muito se discutiu, ao longo dos últimos anos, sobre a viabilidade e mesmo a conveniência de uma coalizão de países tão diversos. Em geral, são apontadas as diferenças históricas, políticas e culturais de seus membros, além da distância física entre eles, para lançar um olhar pessimista sobre o futuro do Brics. Assinalam-se, como aspectos disfuncionais, o fato de China e Rússia serem membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU, de Brasil e África do Sul não possuírem armas nucleares e de haver profundo desconhecimento recíproco de suas sociedades.
Mas nenhum desses aspectos impediu que a ação conjunta dos membros do Brics nos foros de governança econômica e financeira consolidasse a percepção dos benefícios em aprofundar a coordenação, com resultados bastante positivos.
À exceção da Rússia (então não membro da OMC), os demais Brics foram fundadores do G-20 comercial, que, a partir da Conferência de Cancún da OMC, em 2003, subverteu a lógica das negociações multilaterais de comércio, condicionando o avanço da Rodada de Doha à preservação dos interesses dos países em desenvolvimento. Mais recentemente, o Brics revelou-se fundamental para as vitórias de candidatos brasileiros para a direção da OMC e da FAO.
A atuação do grupo ante a crise financeira mundial iniciada em 2008 ampliou seu papel na construção de novas narrativas sobre os problemas globais. O G-7 perdeu sua condição de principal foro de concertação do poder econômico internacional. O G-20 financeiro firmou-se como novo espaço de governança. Nele, a ação coordenada do Brics alimentou o debate sobre estratégias coletivas para superar a crise, com proposta de alternativas para mitigar o impacto da recessão mundial por meio da superação dos surrados dogmas do passado sobre desregulamentação dos mercados, Estado mínimo e o caráter subsidiário das políticas públicas, sobretudo na esfera social. A agenda do Brics incluiu, ainda, apoio a políticas anticíclicas, combate aos paraísos fiscais e reformas das instituições financeiras de Bretton Woods. No caso do Banco Mundial e do FMI, o processo de revisão de cotas só avançou, ainda que de maneira insatisfatória, graças à pressão exercida pelos grandes países emergentes. A flexibilização dos direitos trabalhistas deixou de ser um mantra no combate ao desemprego. A participação da OIT como observador nas Cúpulas do G-20 só se materializou, por iniciativa do Brasil, com apoio do Brics.
Mas as atividades do grupo também vêm ganhando consistência no tratamento de outros temas da agenda internacional. Os debates em Fortaleza se estenderam sobre o complexo cenário atual de crises regionais, que incluem a Faixa de Gaza, Ucrânia, Mali, República Centro-Africana, Sudão do Sul, Síria, Iraque e a questão nuclear iraniana. Isso mostra que integrar o Brics não implica, para o Brasil, endossar posições de nenhum de seus membros. Em vários temas, há posições convergentes, mas as diferenças existem e são tratadas com maturidade.
Essa maturidade orientou ainda a discussão do tema central da VI Cúpula – “Crescimento inclusivo: soluções sustentáveis” –, que realçou o importante papel dos cinco países no atual cumprimento dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, da ONU, por meio do crescimento econômico e de políticas sociais inclusivas.
É prematuro, contudo, esperar que o Brics avance com base em definições conceituais comuns sobre desenvolvimento sustentável. É provável que a atuação do grupo continue sendo mais operacional, buscando coordenar posições em torno de situações concretas. Nas negociações sobre mudança do clima, por exemplo, subsiste espaço para defesa conjunta de compromissos ambiciosos de redução de emissões de gases de efeito estufa em escala global, desde que mantida a margem de manobra para o crescimento dos países em desenvolvimento, fundamental para a erradicação da pobreza. A atuação do Basic (que congrega os países do Brics, exceto a Rússia) será fundamental para a conclusão, até 2015, de novo acordo global para o pós-2020. Com vista a fortalecer o multilateralismo e a governança ambiental, será essencial preservar princípios consagrados como o das “responsabilidades comuns, mas diferenciadas”, hoje sob forte ataque dos grandes poluidores históricos.
Ao participar do Brics, o Brasil não faz, como querem alguns críticos, uma opção contra o Ocidente. Não exclui a ampliação das relações com parceiros tradicionais, como Estados Unidos, União Europeia e Japão. Tampouco relega a segundo plano a importância que a América do Sul tem para a política externa brasileira.
A reunião de trabalho entre o Brics e os países da América do Sul, em Brasília, buscou aproximar o grupo do nosso contexto regional, a exemplo da reunião em Durban, em 2013, que propiciou interação com lideranças africanas. Esse exercício reforça a identidade do grupo e permite que seus membros compartilhem uma visão mais abrangente do mundo de hoje.
Isso é relevante num cenário internacional repleto de antigos problemas e novas ameaças. Nenhum país ou grupo de países apresenta condição de enfrentá-los isoladamente. O unilateralismo, bastante frequente na ação diplomática das potências tradicionais, já se provou desastroso, provocando instabilidade e agravando crises humanitárias, como no Iraque, na Síria e na Líbia. Na esfera multilateral, permanece um enorme déficit de representatividade nas estruturas de governança gestadas no pós-Segunda Guerra Mundial.
Ao articular os maiores países emergentes, o Brics pode contribuir para a construção de um mundo não só multipolar como também portador de um multilateralismo renovado, mais representativo e transparente, capaz de inspirar unidade de propósito e revitalizar a vontade coletiva em busca de soluções de consenso para os grandes desafios deste início de século 21.
Audo Faleiro é diplomata