Em 2005, a articulação da mídia hegemônica não foge de sua tradição, da qual tenho tratado nesta série que se inicia em 1954, quando levou Getúlio ao suicídio
Em 2005, a articulação da mídia hegemônica não foge de sua tradição, da qual tenho tratado nesta série que se inicia em 1954, quando levou Getúlio ao suicídio
O escândalo político midiático que ocupou 2005, cujos desdobramentos persistem até hoje, é parte da luta política no Brasil. A articulação da mídia hegemônica, sua intervenção nesse episódio não foge de sua tradição, da qual tenho tratado nesta série que se inicia em 1954, quando se construiu o episódio que levou Getúlio Vargas ao suicídio. E vale lembrar que Fernando Henrique Cardoso rasgou a fantasia e embarcou na aventura golpista
A presunção era fazer Lula sangrar até morrer, mas faltou combinar com o povo. Foto: Antônio Gaudério/Folhapress
Começo este artigo pensando no terrível ano de 2005. E digo terrível porque não sou um observador à distância. Senti tudo aquilo de perto. Vivi os tormentos, as angústias daqueles meses. Um projeto político foi colocado sob cerco implacável, comandado indiscutivelmente pela mídia hegemônica, mais do que pela oposição. Esta, como se sabe, surfou no trabalho da mídia, e teve uma visibilidade aparentemente surpreendente. Aparentemente porque a associação, a cumplicidade entre uma e outra era algo à vista, sem que fosse possível qualquer escamoteação. As pautas eram combinadas, os vazamentos acertados. A revista Veja e a Rede Globo, malgrado não serem exceções entre os meios de comunicação hegemônicos, deitaram e rolaram.
Esses meses, período que recobre maio de 2005 até o segundo turno das eleições de 2006, me fizeram refletir sobre os escândalos políticos midiáticos, cujo significado já me ocupou bastante nos tempos de universidade. Os meios de comunicação já de algum tempo, e hoje mais do que ontem, alteraram inteiramente a visibilidade da política e modificaram as relações entre a vida pública e a privada, atualmente entrelaçadas quase que inteiramente. E esses escândalos, obviamente, não são, penso, fenômenos apenas midiáticos: estão inscritos em processos de luta política, travadas no território simbólico. Diria: são parte da luta de classes da sociedade, e a mídia, regra geral, intervém, como parte interessada, como protagonista do território político. Mais ainda no caso brasileiro, cuja mídia deixa evidente a cada instante sua natureza partidária, lato sensu.
Claro que, dito assim, provoco alguma reação. Até porque há casos em que os escândalos políticos surgem como irrupções, e nem que a mídia pretenda, não há jeito de contê-los. Mas, é inegável que há uma zona de silêncio extremamente volumosa, e que decorre dos interesses da própria mídia. Esta não atua apenas como ente noticioso, como quem revela o mundo naturalmente, como às vezes pretende uma visão idealizada da mídia, mas como parte, primeiro, da vida econômica, especialmente se pensamos nos monopólios, nas poucas famílias que a controlam, e no caso brasileiro isso é escandaloso. E, segundo, como ator político, como quem tem um programa ancorado numa específica visão de mundo, e quanto ao Brasil isso é por demais evidente.
Diria que o escândalo político midiático que ocupou 2005 e se seguiu até o final de 2006, e cujos desdobramentos de alguma forma persistem até hoje, é parte da luta política no Brasil. A articulação da mídia hegemônica, a intervenção dela nesse episódio não foge de sua tradição, da qual tenho tratado nessa série que se inicia em 1954, quando se construiu o episódio conhecido como Mar de Lama, que levou Getúlio Vargas ao suicídio. A partir de maio de 2005, começara a luta sucessória: uma feroz, incansável operação midiática destinada a barrar a continuidade do projeto político iniciado em 2003, com a posse de Luiz Inácio Lula da Silva.
A presidenta da Associação Nacional dos Jornais, Judith Brito, dirigente do Grupo Folha, chegou a dizer, no início de 2010, em declaração que ficou famosa pela sinceridade demonstrada, que como a oposição no Brasil era muito fraca, a mídia devia fazer o papel dela – e não só a Folha de S. Paulo como todo o monopólio midiático tem seguido à risca a recomendação, e muito antes que ela gritasse a palavra de ordem a plenos pulmões. Melhor dissesse que a mídia hegemônica devia sempre defender os interesses das classes dominantes, os seus incluídos, e combater também quaisquer governos que porventura os contrariassem. Melhor dissesse ser uma extensão histórica da Casa Grande, defensora de privilégios seculares, e contra quaisquer políticas que beneficiem os mais pobres, a classe trabalhadora, os excluídos, os negros, os índios, os homossexuais.
Tem sido essa a trajetória de nossa mídia hegemônica, e não é um acaso que ela combata tão ferozmente o projeto político decorrente do resultado das eleições de 2002. O escândalo político midiático de 2005-2006 não foi um raio caído num dia de céu azul. E o PT, que assumira a hegemonia do país a partir de 2003, devia ter alguma consciência do papel dos meios de comunicação tradicionais no Brasil. Não tinha.
Creio que houve, para fazer uma breve digressão, alguma ingenuidade no PT. Acreditou, quem sabe, ancorado momentaneamente em águas tranquilas, que seu projeto não enfrentaria turbulências maiores, e o escândalo midiático de 2005-2006 pegou o governo e o partido de surpresa. Por isso, quem sabe, desorientou alguns dirigentes e parlamentares do próprio partido e muitos dos que estavam no governo Lula. Era como se o mundo tivesse desabado.
Diria que foi a consciência de Lula, sua têmpera de combatente, acostumado a duras refregas, sua sensibilidade política e a firmeza de significativos setores do partido que evitaram qualquer espírito derrotista, que descartaram hipóteses de rendição. O bombardeio das manchetes negativas que se repetiam a cada dia criou, durante alguns meses, um clima de desânimo e perplexidade em boa parte do PT, só modificado com a realização das eleições diretas para os dirigentes partidários, no segundo semestre de 2005, quando milhares e milhares de militantes foram às urnas e recobraram o ânimo.
A ofensiva da direita brasileira em relação ao projeto iniciado em 2003 iniciou-se em maio de 2005, com a gravação em vídeo do funcionário Maurício Marinho, dos Correios, recebendo uma propina de R$ 3 mil. Mais tarde, soube-se: a filmagem fora feita por um preposto do bicheiro Carlinhos Cachoeira, que mais tarde se revelará quase como um editor da revista Veja. A partir daí, iniciou-se o turbilhão. O escândalo ganhou mais intensidade ainda com a denúncia feita pelo deputado Roberto Jefferson de que os deputados recebiam uma mensalidade para votar a favor de projetos do governo. Construiu-se uma crise política de grande dimensão envolvendo denúncias de corrupção dentro e fora do governo.
Independentemente da indiscutível necessidade de cobertura jornalística, da existência de fatos e declarações a serem apurados, a mídia hegemônica esmerou-se numa cobertura nitidamente negativa. Aparecera o pretexto de que a mídia necessitava para desencadear uma operação destinada, se levadas às ultimas consequências, a algum tipo de golpe político.
Permito-me apenas outra breve digressão. O chamado mensalão, nome com que foi alcunhado o escândalo de 2005-2006, não foi outra coisa senão o famoso e lamentável caixa dois de todas as campanhas brasileiras, procedimento ancorado no câncer da vida política brasileira, o financiamento privado. O resultado do julgamento da Ação Penal 470 já foi exaustivamente discutido e criticado por suas incongruências, pelo profundo desprezo às provas, e no momento em que escrevo ainda não foi concluído. Há inúmeros artigos, ensaios, trabalhos jornalísticos variados, que desmontaram os ritos e decisões seguidos pelo STF. Lembro apenas dois autores: Paulo Moreira Leite e Raimundo Rodrigues Pereira, jornalistas respeitados, que escreveram consistentemente para demonstrar o quanto de equívocos e erros graves ocorreram nesse processo.
A registrar que não houve uma única acusação de enriquecimento de dirigentes do PT envolvidos no processo, o que por si só indicaria que, se crime houve, foi o de caixa dois. O que enfatizo, para além de tudo, é a necessidade urgente de uma reforma política profunda, sem o que conviveremos com o financiamento privado, fonte de todos esses escândalos. E constato que, ao que tudo indica, ela só virá com pressão de baixo. O Parlamento, com sua atual constituição, não permitirá qualquer mudança fundamental nas regras do jogo.
Volto à operação golpista que se inicia em 2005, com a participação decisiva da mídia. Recordo que o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, impulsionado pelo estrondoso barulho da mídia, começou a cortejar a possibilidade de Lula não ser candidato à reeleição. Propôs, ainda em 2005, com o escândalo no auge, que Lula anunciasse que não seria mais candidato, e tudo ficaria no melhor dos mundos. Era o acordo oferecido pela oposição.
Vendo que Lula não aceitava a ideia, o ex-presidente radicaliza, rasga a fantasia: se crime de responsabilidade houve, sigam-se as regras estabelecidas na Constituição, com todas as consequências. Fernando Henrique Cardoso, ao falar em crime de responsabilidade, estava se referindo a Lula, flertando ostensivamente com o impeachment, querendo para o presidente-operário o mesmo destino de Collor. O ex-presidente-sociólogo embarcou de malas e bagagens na aventura golpista. Não era, no entanto, uma manobra fácil.
Fernando Henrique Cardoso, timoneiro do golpe, ciscou pra lá, ciscou pra cá, conversou, avaliou as possibilidades do impeachment. A aposta, sabia, era arriscada demais. Mas, não custava tentar, esticar a corda ao máximo que pudesse. Afinal, Lula não aceitara desistir da candidatura à reeleição. O depoimento do publicitário Duda Mendonça à CPI dos Correios, em 11 de agosto de 2005, admitindo ter recebido dinheiro de caixa dois no exterior como pagamento de seus trabalhos na campanha de Lula, jogou lenha na fogueira da aventura golpista.
Fernando Henrique Cardoso sentia, e escrevia sobre isso nos jornais que lhe garantem coluna fixa, que a opinião pública até ali não se sensibilizara ao ponto de uma proposta de impeachment ter alguma ressonância. Chegou a teorizar que a opinião pública sempre reage lentamente. Apostava em antiga tese elitista, segundo a qual, em ondas sucessivas, as camadas dominantes esclarecidas iam passo a passo convencendo as classes do andar de baixo, com a ajuda decisiva da mídia hegemônica, que nunca faltou às elites, e nunca deixou de jogar-se de corpo e alma em aventuras golpistas.
Acontece, no entanto, que querer não é poder. O pensamento desejoso nem sempre corresponde à realidade. Em reuniões com seus pares, o ex-presidente foi alertado que as ruas não estavam prontas para a proposta. O senador tucano Arthur Virgílio jogou a pá de cal na tese do impeachment. Foi claro: não havia clima político para tanto. Se pedido de impeachment tivesse que haver, teria que vir da sociedade, que não estava sensibilizada. Ao contrário, continuava ao lado do presidente Lula.
Não sei se Lula chegou a dizer, mas sua ação indicou isso: com ele, não haveria suicídio, como Vargas. Não haveria renúncia, como Jânio. E não haveria golpe, como em 1964. Certamente, tinha consciência profunda de sua ligação com o povo brasileiro e, também, tinha noção da existência de um Estado democrático relativamente consolidado. Sabia do impacto da opinião midiatizada, mas sabia também que, mesmo caindo nas chamadas pesquisas de opinião como decorrência daquela ofensiva, o povo brasileiro não o abandonaria, como não o abandonou. A impressionante ofensiva midiática não fora suficiente para afastá-lo da população, especialmente dos trabalhadores e dos mais pobres.
E a rua cresceu, as mobilizações se sucederam, e não contra Lula, mas a seu favor. “Mexeu com Lula, mexeu comigo” era a palavra de ordem de manifestações que se repetiam país afora. O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, então, e toda a oposição, muito pequena, compreenderam que, descartado o impeachment, como óbvio, era melhor mudar de tática. E partiram, então, para a tática dos cangaceiros: sangrar o adversário até morrer. Com isso, e numa articulação óbvia com a mídia hegemônica, acreditavam erodir a imagem e a aprovação do presidente junto ao povo de modo que ele chegasse fraco no momento da eleição.
A oposição sabia ter um aliado confiável, sabia, insista-se, que face à unidade programática e de interesses, a mídia não lhe faltaria, e seguiria até o fim sangrando Lula. No fim dessa operação, restaria um presidente frágil, sem forças para reagir, e um vasto campo favorável às forças neoliberais, prontas para voltar ao poder. Seria fugaz a presença transformadora do PT e seus aliados. Esta era a presunção. Este era o pensamento desejoso da mídia e da oposição. Só faltou combinar com o povo.
Referências
"A CONSTRUÇÃO do Mensalão: Como o Supremo Tribunal Federal, sob o comando do ministro Joaquim Barbosa, deu vida à invenção de Roberto Jefferson". Retrato do Brasil, São Paulo, abril-maio, 2013. Edição Especial
LEITE, Paulo Moreira. A Outra História do Mensalão: as Contradições de Um Julgamento Político. São Paulo: Geração Editorial, 2013.
LIMA, Venício A. de. Mídia: Crise Política e Poder no Brasil. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2006.
____. (org.). A Mídia nas Eleições de 2006. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2007.
RUY, José Carlos. Raízes do mensalão: nem 1998, 2004 ou 2005 – Conheça o pontapé inicial. Pragmatismo Político, [S. l.], 7 ago. 2012.
Disponível em: http://www.pragmatismopolitico.com.br/2012/08/raizes-mensalao-esquema-primeira-eleicao-fhc.html. Acesso em: 22 jul 2013.
THOMPSON, John B. O Escândalo Político: Poder e Visibilidade na Era da Mídia. Petrópolis: Vozes, 2002.
Emiliano José é professor-doutor (aposentado) em Comunicação e Cultura Contemporâneas da Universidade Federal da Bahia, jornalista, escritor e integrante do Conselho de Redação de Teoria e Debate.