Política

Sindicalismo petista foi vertente atuante na construção do partido, e continua fundamental para humanização das relações de trabalho

Na década de 70 do século passado, em especial nos seus últimos anos, quando foi criada a Comissão Nacional Pró PT, o mundo do trabalho no Brasil passava por transformações significativas decorrentes da concentração de empresas e fusionamento de bancos com aplicação intensiva de novas tecnologias e novos métodos de gerenciamento de pessoal. O regime militar ­ a ditadura ­ agia com mão de ferro e apoio explícito do grande capital nacional e internacional e razoável respaldo de setores médios e até populares. O Estatuto do Trabalhador Rural, uma das primeiras medidas do regime, angariava a simpatia de famílias de pequenos agricultores ou filhos destes que foram levados do Sul e de outras regiões para o "eldorado" da ocupação de terras às margens da Transamazônica. Os grupos que haviam optado pelo enfrentamento armado à ditadura sofriam constantes revezes e as mortes, torturas e desaparecimentos nas prisões e fora delas minavam sua resistência.

No mundo sindical o regime entendia ter um controle ainda maior por conta da própria legislação trabalhista ­ a CLT ­, que desde a década de 1940 colocava os sindicatos sob minucioso e apascentado controle do Estado. Os Partidos Comunistas estavam postos, mais uma vez, na ilegalidade. O Ministério, as Delegacias Regionais e as Secretarias Estaduais do Trabalho eram dirigidos por quadros escolhidos a dedo pelo regime, seus defensores e seus áulicos. Muitos deles, se não militares da ativa ou da reserva, oriundos da ala conservadora da Democracia Cristã, com seu discurso e cursos de formação pregando a conciliação entre o capital e o trabalho e a obediência servil às autoridades. Em Câmaras Municipais, Assembleias Estaduais e Congresso Nacional, nas raras vezes em que ainda teimaram em se manifestar, criticando ou denunciando desmandos, parlamentares entravam para o rol dos cassados e perseguidos politicamente. A censura explícita e/ ou induzida impunha à imprensa, aos artistas e produtores culturais um cerceamento constante à liberdade de informação, opinião e criação. Na economia pregava-se que era preciso fazer o "bolo crescer para depois dividir". A participação do povo estava de bom tamanho nos atos oficiais bem programados, na alegria dos carnavais e nas celebrações das vitórias da seleção brasileira. O "Pra Frente Brasil" e o "Ame-o ou deixe-o" eram as duas faces da moeda do Milagre.

Com todo esse sufoco, no entanto, no movimento popular e sindical construíam-se respiradouros. Eram os mutirões populares, para enfrentar solidariamente problemas de moradia, transporte, saúde, carestia. Eram as comissões por local de trabalho fazendo pontes com oposições sindicais em inúmeras categorias primeiro nas regiões mais industrializadas ­ São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Porto Alegre ­, espraiando-se em seguida para outras regiões e localidades do país, como Salvador, Recife, Belém e Fortaleza. Eram iniciativas localizadas, algumas atomizadas às vezes, ou no início, que logo encontravam meios de intercambiar experiências e construir formas de ação conjunta. As pequenas frestas foram se transformando em janelas e depois em portas com basculantes e duas folhas.

Os impedimentos impostos pelo regime através da máquina oficial de repressão e controle que, na estrutura sindical, contava com a adesão ideológica e militante da maioria das direções das confederações, federações e sindicatos de maior porte do país, eram superados com paciência e persistência através de pequenas, médias e grandes reuniões por ocasião do 1º de Maio, com semanas sindicais paralelas às oficiais, por celebrações de datas de categorias e aniversários de sindicatos ou de datas da história social do país que mereciam rememoração.

Nessas ocasiões lideranças de diferentes origens, faixas etárias, regiões, concepções ideológicas se conheciam melhor, trocavam ideias, intercambiavam experiências e teciam, sem rigidez doutrinária, um ideário democrático de organização pela base e uma agenda comum de lutas para cada conjuntura.

Era pela disposição de cada uma se empenhar em suas bases pela irradiação e espraiamento dessas bandeiras como motivadoras de debates, agregadoras de forças, estimuladoras de mobilização e organização que as direções sindicais passavam a ser qualificadas de combativas, em contraste com as direções "pelegas" e/ou acomodadas nas cúpulas da estrutura sindical. A questão da radicalidade democrática e da indisposição contra qualquer verticalidade ou centralismo foi sempre um divisor de águas entre heranças autoritárias e o Novo Sindicalismo.

A herança sindical do PT vem desse Novo Sindicalismo. A ênfase na organização pela base, na radicalidade democrática, na combatividade na ação faz parte de sua grandeza. Mas as limitações na formulação teórica de uma práxis nos fazem ainda hoje, depois da criação da Associação Nacional dos Movimentos Populares (Anampos) e da Central Única dos Trabalhadores (CUT) e da conquista de mandatos executivos e legislativos nos três níveis do Estado brasileiro, titubeantes em questões-chave como a relação ricamente contraditória entre movimentos sociais-partidos-governo, liberdade, autonomia e independência sindical. Nossa ambiguidade é grande, por exemplo, diante do Imposto Sindical, que combatemos sempre pelo caráter impositivo e de atrelamento da entidade sindical ao aparelho de Estado. Na Constituinte não conseguimos construir um posicionamento comum com o campo popular democrático sobre essa questão e acabamos perdendo a oportunidade de substituí-lo definitivamente por uma contribuição decidida em assembleia de trabalhadores. A Confederação Nacional das Indústrias (CNI) e outras confederações patronais, junto com as representações oficias e oficiosas dos trabalhadores, conseguiram a maioria na Constituinte para manter o imposto.

Estamos também diante de novos desafios que nos propomos como protagonistas da construção de um Outro Mundo Possível e Necessário, conforme reflexões do Fórum Social Mundial em suas diferentes edições, que colocam para as entidades sindicais e dos demais movimentos populares responsabilidades de maior complexidade que as de ordem puramente categorial e corporativa que são, e continuarão a ser, a base e razão de sua existência. O conceito de Sindicato Cidadão implica não só a reavaliação de paradigmas, mas uma postura cada vez mais internacionalista e solidária com causas que vão além das da categoria ou da corporação. Penso que ainda não temos uma formulação mais clara sobre esse realinhamento de percurso. O que podemos propor e discutir para ajudar a pavimentar o caminho da globalização humanizada, enquanto responsáveis por entidades que representam milhares de trabalhadores ­homens e mulheres, de diferentes idades e etnias ­ que vivem segregados e excluídos, em permanente estado de exceção dentro do chamado Estado de Direito Democrático, no espaço urbano das maiores cidades do mundo? A solução para o emprego e o salário é o subsídio ou o privilégio fiscal para as grandes empresas, em especial as do setor automobilístico? Nosso sonho de consumo é cada um ter seu automóvel? A solução é construir mais espaços para circulação do veículo particular (remover vilas, abrir avenidas, duplicar vias, construir elevados, viadutos, edifícios de garagem) e reduzir os espaços de fruição coletiva e trânsito das pessoas? É só um exemplo da necessidade que as entidades sindicais têm de incluir na pauta de discussão com a base, junto com suas atividades específicas, a formulação de um modelo de desenvolvimento que se contraponha de forma alternativa e consistente ao modelo em curso no globo.

A vertente sindical do PT intercambiou intensamente experiências e reflexões com o Movimento Sindical Internacional, respeitando suas diferentes correntes, sem se vincular organicamente a nenhuma delas. Mas a Secretaria Sindical Nacional do PT, constituída no Encontro Nacional de Sindicalistas do Partido, no dia 24/7/1982, no Colégio Equipe, na capital paulista, nascia sob o signo do apoio entusiasta e classista ao Solidariedade, da Polônia, cujo líder, Lech Walesa, um trabalhador metalúrgico, foi mais tarde eleito presidente de seu país.

No Brasil temos um trabalhador metalúrgico e líder sindical, Luiz Inácio Lula da Silva, fundador da Anampos, do PT e da CUT, presidente da República reeleito, ouvido e respeitado internacionalmente, sem deixar de se orgulhar e nos orgulhar de sua origem e compromissos.

O PT é um partido de construção coletiva e solidária ­ não surgido de gabinetes executivos e legislativos (conquistou esses espaços depois, na sua trajetória, por seu programa e suas candidaturas) ­, por isso a contribuição de suas diferentes vertentes, sendo a sindical apenas uma delas, foi e será sempre fundamental para seu aperfeiçoamento e consolidação.

Olívio Dutra é presidente do Diretório Regional do PT do Rio Grande do Sul.