A votação da CPMF mostrou, de forma dramática, que o governo Lula continua enfrentando sérios problemas em sua relação com o Congresso Nacional. Aproveitando-se da fragilidade da base aliada no Senado e dos erros cometidos pelo governo na condução do processo, os líderes oposicionistas mesmo à custa de enorme tensionamento interno como no caso do PSDB conseguiram impedir a prorrogação do imposto. Dessa forma, jogaram alguma água no chope de um ano que fechou com a popularidade do presidente em alta e os indicadores econômicos e sociais apontando para uma melhora significativa do país.
No Brasil, o presidente da República possui uma considerável gama de poderes legislativos constitucionalmente garantidos, em que se destacam o poder de emissão de decreto, uma ampla área de iniciativa exclusiva e a prerrogativa de solicitar urgência para a tramitação de suas iniciativas. Tais instrumentos têm sido cruciais para que os presidentes eleitos após 1989 formulem e aprovem sua agenda, desde que, e esse é o ponto, obtenham a aquiescência do Congresso. Como as coalizões eleitorais vitoriosas para a Presidência não costumam conquistar maioria congressual (a única exceção foi registrada nas eleições de 1998), os presidentes se vêem diante de duas opções. Ou governam em minoria, como optou por fazer Collor, e dependem de acordos pontuais com partidos independentes e/ou de oposição para a aprovação de suas iniciativas, ou ampliam o leque de aliados até que se configure a maioria necessária. Neste caso, trata-se de saber se os acordos feitos na montagem da coalizão, em termos de formulação de políticas e de concessão de recursos, serão compensados por um apoio mais consistente e sem maiores sobressaltos no Congresso.
Tal como FHC, Lula optou por por constituir uma coalizão majoritária, mas o fez em condições distintas. O primeiro pôde constituir um gabinete ideologicamente contíguo, do centro para a direita, e composto pelos quatro maiores partidos, à época, do Congresso Nacional - PMDB, PSDB, PFL e PP -, mais o PTB. Para Lula, a opção de uma coalizão majoritária ideologicamente coerente sempre esteve descartada. Por um lado a esquerda, além de se mostrar dividida, nunca ultrapassou um terço dos votos na Câmara ou no Senado. Por outro, uma aliança de centro-esquerda, apesar de numericamente viável1, estava, e ainda está, parcialmente bloqueada pelo fato de que PT e PSDB se tornaram, desde a primeira metade da década de 90, os principais competidores em termos de um projeto para o país (Melo, 2007). Além disso, com dois grandes partidos na oposição e o apoio nem sempre confiável de um terceiro (o PMDB), Lula teve de incorporar um elevado número de partidos pequenos e médios para chegar a uma coalizão que lhe desse alguma segurança. O resultado foi que as coalizões formadas pelo governo petista, em seus dois mandatos, contaram com o maior número de partidos e foram as mais heterogêneas, do ponto de vista ideológico, de todo o período pós-Constituinte.
Isso não impediu que, no primeiro governo, Lula apresentasse uma alta taxa de sucesso no que se refere à aprovação de propostas de sua autoria no Congresso Nacional. Dados organizados por Figueiredo e Limongi (2007) mostram que 81,47% das iniciativas legislativas do governo foram aprovadas - a mais alta taxa de sucesso entre os presidentes eleitos pós-882. Entre as mais relevantes destacam-se as PECs da reforma da Previdência, do Fundeb e da prorrogação da DRU e da CPMF até o final de 2007; a criação do Programa Bolsa Família e do ProUni; a aprovação das cotas nas universidades federais, a criação da Super Receita e a nova Lei Geral das Micro e Pequenas Empresas (Anastasia, Inácio e Melo 2007).
O exame dos números no agregado, no entanto, não é capaz de revelar toda a história. No primeiro mandato de Lula, as relações entre Executivo e Legislativo foram marcadas pela instabilidade, por momentos de crise aguda e de paralisia política. Um bom indicador da instabilidade está nas sucessivas modificações verificadas na composição do Ministério. Em seu primeiro ano, Lula optou por incorporar ao governo apenas aqueles partidos que o haviam apoiado no segundo turno das eleições Em 2004, depois de perder o apoio do PDT e de um conjunto de parlamentares que em seguida iria constituir o PSOL, o governo incorporou formalmente o PMDB à sua base de apoio. Mas o fez de modo não proporcional ao peso do partido no Congresso, o que gerou novas tensões e deu argumentos ao ex-governador Garotinho para travar uma renhida disputa pelo controle da liderança peemedebista na Câmara, com intenção de levar o partido a uma postura de oposição. Finalmente, em 2005, depois de perder o apoio do PPS e do PV e em meio à crise do chamado mensalão, o PP foi convidado a participar do Ministério, aumentando a heterogeneidade ideológica da base aliada.
Ao longo do primeiro mandato, a base do governo Lula foi abalada tanto por disputas em torno do conteúdo das políticas como por conflitos a respeito da distribuição de recursos. A distinção entre os dois tipos de problema ajuda a ilustrar o que foi, e ainda é, a coalizão de Lula. No jogo político, os partidos, além de votos, maximizam políticas e/ou recursos (postos ministeriais, nomeações, emendas orçamentárias e tudo o mais). Podem almejar de forma articulada os dois objetivos ou priorizar um deles. No sistema político brasileiro, no que se refere à quantidade de recursos disponíveis, as vantagens de estar no governo são muito altas, assim como o são os custos de rumar para a oposição. Aderir à situação significa aumentar as chances de sobrevivência política em um cenário extremamente competitivo. E foi principalmente por isso que partidos conservadores, assim como congressistas eleitos pelo PSDB e pelo DEM, migraram para um governo eleito pela esquerda.
Não é de estranhar, portanto, que a depender do flanco que se observe na coalizão de apoio a Lula predomine um ou outro tipo de conflito. Foram disputas pelo conteúdo das políticas que geraram o afastamento do PDT e a cisão no interior do PT. Mas foram os desentendimentos em torno da distribuição de recursos de poder que, de forma reiterada, mobilizaram as parcelas majoritárias de deputados e senadores de partidos como PR, PTB, PP e PMDB e causaram as maiores dores de cabeça ao governo. Tais conflitos estiveram associados à "rebelião" da base aliada no segundo semestre de 2004, que acarretou o trancamento da pauta por 25 MPs (Anastásia, Inácio e Melo, 2007) e contribuiu para que o governo enfrentasse os primeiros meses de 2005 sem orçamento aprovado; à eleição de Severino Cavalcanti em fevereiro de 2005 para a presidência da Câmara; e à denúncia do "mensalão", feita por Roberto Jefferson, em junho do mesmo ano.
Ao não conseguir azeitar o processamento das demandas por emendas, cargos e nomeações oriundas de sua heterogênea base de apoio, o governo descuidou de algo absolutamente crucial para sua tranquilidade no Congresso. Por outro lado, ao aceitar um jogo no qual se responsabilizava pela transferência de recursos financeiros "não contabilizados" a partidos aliados, pôs em risco todo o seu projeto.
Seja como for, com erros no varejo e no atacado, o governo abriu espaço para uma oposição que, de resto, contava com recursos institucionais relevantes. No Congresso Nacional, os principais postos são distribuídos proporcionalmente ao tamanho dos partidos, o que, especialmente no Senado, sempre garantiu enorme poder de fogo ao PSDB e ao DEM - também nesse aspecto a situação de FHC era mais confortável, uma vez que o PT era a quinta bancada em 1994 e a quarta em 1998. Mais ainda, a Constituição de 1988 e os regimentos internos das duas casas legislativas colocam à disposição das minorias instrumentos nada desprezíveis de ação política. De posse de tais instrumentos a oposição a Lula conseguiu aprovar três CPIs, entrou em obstrução em 46,6% das sessões legislativas e forçou 166 votações nominais, através de pedidos de verificação de quorum, entre 2003 e 2006 (Anastásia, Inácio e Melo, 2007).
A coalizão montada por Lula para o segundo mandato revelou alguns avanços em relação à experiência anterior. O número de participantes continuou elevado e a heterogeneidade ideológica acentuada, mas a manutenção de todos os partidos que haviam terminado o primeiro mandato foi positiva. O mesmo se pode dizer da (re)incorporação do PDT e da ampliação da participação do PMDB no Ministério. A concessão de maior número de pastas aos peemedebistas diminuiu a sobre-representação do PT no governo - algo que, no mandato anterior, contribuiu para acirrar os conflitos distributivos no interior da coalizão - e se refletiu em uma adesão mais consistente, pelo menos no que se refere à Câmara dos Deputados, daquele partido à base do governo.
Do ponto de vista numérico, a coalizão do segundo mandato iniciou a legislatura contando, pelo menos formalmente, com maioria qualificada nas duas Casas (ver quadro). No curso de 2007, cresceria um pouco mais, devido às trocas de partido. Mas no Senado tal maioria não se mostrou consolidada e, na votação da CPMF, seis dos 53 senadores não acompanharam o Executivo. O que salta aos olhos, em uma comparação com o primeiro mandato, é que o governo efetivamente nunca chegou a ter, nem sequer formalmente, uma maioria de três quintos no Senado e, no entanto, apesar das crises e dos períodos de paralisia, não havia sofrido nenhuma derrota contundente na Casa.
Como explicar? Ocorre que, em um contexto no qual a coalizão governista, ainda que majoritária, nem sempre se mostra efetiva e a oposição dispõe de recursos que lhe possibilitam exercer poder de veto, o encaminhamento da agenda do Executivo passa a depender de negociações, se não com toda a oposição, pelo menos com parcela dela. Especialmente naqueles pontos mais polêmicos e/ou que exijam maioria qualificada. Boa parte do excelente desempenho do Executivo em 2003 deve-se ao fato de este haver conseguido dividir e neutralizar a oposição na discussão sobre as reformas. Por outro lado, o fracasso das negociações com o PSDB foi determinante para a derrota da votação da CPMF em 2007.
Isso significa que o governo tem pelo menos um sério problema para os próximos anos, uma vez que, ao que tudo indica, a disposição para a negociação por parte dos partidos oposicionistas diminuiu sensivelmente. A explicação para tanto é simples: depois de amargar a derrota em uma eleição que, à custa do "mensalão julgaram possível vencer e cientes de que a disputa tende a ser mais favorável em 2010, as lideranças do PSDB e do DEM iniciaram a atual legislatura dispostas a fragilizar ao máximo o governo.
Tal problema pode se agravar se os conflitos no interior da base aliada se mantiverem no mesmo nível que o observado no primeiro mandato. Em especial, como já dito, aqueles de ordem distributiva. Nesse sentido, dois pontos merecem destaque. Em primeiro lugar, o governo terá de tomar extremo cuidado ao realizar os cortes no Orçamento para 2008 em decorrência do rombo causado pela queda da CPMF Em segundo lugar, é preciso ter claro que segundos mandatos tendem a ter "vida útil" menor do que os primeiros. À medida que o final do governo se aproxime e não se apresente com força eleitoral uma alternativa de continuidade, é possível que o desempenho da coalizão diminua, ainda que a popularidade do presidente se mantenha em alta.
O governo tem uma pauta relevante no Congresso: as reformas tributária e sindical, além de projetos de lei importantes como o que regulamenta as atribuições das agências reguladoras, o que cria o Cadastro Positivo e permite a identificação dos bons pagadores para efeito de facilidade nos empréstimos, o que moderniza o processo de licitações no país, o que reestrutura o sistema brasileiro de defesa da concorrência ou o que define uma política para o salário mínimo. Mas as coisas não serão fáceis. Se quiser levar à frente sua agenda, terá de manter mobilizada a base e coordenar suas ações de modo a impedir, ou minimizar, a irrupção de conflitos distributivos em seu interior. A oposição voltará a abusar da obstrução e procurará fazer valer seu poder de veto. Isso não impede, pelo contrário, que o governo procure se antecipar aos fatos, buscando o diálogo e tentando criar uma ambiência na qual a recusa sistemática à negociação imponha custos aos partidos oposicionistas.
Referências
Anastasia, Fátima; Inácio, Magna; Melo, Carlos R. "Para um balanço da 521 legislatura". Revista Plenarium, nº4. Câmara dos Deputados, Brasília, 2007, pp. 154-195.
Figueiredo, Argelina e Limongi, Fernando. "Instituições políticas e governabilidade: desempenho do governo e apoio legislativo na democracia brasileira". in Melo, Carlos R. & Alcántara, Manuel (Eds.), A Democracia Brasileira: Balanço e Perspectivas para o Século 21. Belo Horizonte, Ed. UFMG, 2007.
Melo, Carlos Ranulfo. "Nem tanto ao mar nem tanto à terra: elementos para uma análise do sistema partidário brasileiro”, in Melo, Carlos R. & Alcántara, Manuel (edds.), op cit.
Carlos Ranulfo Melo é professor do Departamento de Ciência Política e pesquisador.