A aliança entre forças políticas de direita e a mídia foi derrotada pelas forças democráticas
A aliança entre forças políticas de direita e a mídia foi derrotada pelas forças democráticas
As eleições recentes para a Presidência da República, os governos de estado e os legislativos federal e estadual, não obstante a indisposição dos analistas da grande mídia e do pensamento acadêmico conservador, assinalam um momento singular da história política brasileira. A desmoralização dos vaticínios lançados pelo dublê de banqueiro e político direitista Jorge Bornhausen acerca da derrocada completa do projeto democrático-popular capitaneado pelo PT, ao apregoar o “fim dessa raça”, exprime com nitidez a distância que separa os desejos e aspirações dos adeptos do liberalismo-conservador – que Chico Buarque tão bem sintetizou como um sentimento de “alegria raivosa” – e sua efetiva realização.
Os esforços reiterados da “Santa Aliança” nativa, formada pela associação entre grande imprensa, PSDB, PFL e empresários de porte, de banir do horizonte político, econômico e cultural os valores, sensibilidades e visões de mundo da esquerda socialista e democrática incrustados no PT nunca se manifestaram com tamanho ímpeto e agressividade. Parecia-nos que estávamos condenados à dissolução de nossa identidade política e ideológica perante as maiorias, ao mesmo tempo em que víamos irremediavelmente quebrantados os acúmulos programáticos que fomos capazes de sintetizar por meio da nossa participação em lutas empreendidas entre movimentos sociais agrários, culturais, estudantis, negros, indígenas, bem como das reivindicações dos intelectuais, das mulheres e dos homossexuais. Buscando, assim, unificar estratos populares – do campo e da cidade – e frações da esquerda socialista e democrática que se encontravam até então dispersas, mas agora, sob o manto de uma identidade plural, democrática e socialista comum, expressa no PT, podiam sonhar em construir um novo poder.
O PT, enquanto organização partidária mais fértil, plural, generosa e combativa da esquerda brasileira, via-se ameaçado pela propaganda uníssona dos que sempre o odiaram, mas, montados em uma argumentação moralista, oportunamente prediziam – os mais “tolerantes” – a destruição simbólica de nosso legado político, ético, cultural e institucional. O máximo a que podíamos aspirar, segundo tais setores, seria palmilhar o caminho para o passado, aceitando resignadamente a condição de mera força auxiliar, caudatária dos conflitos travados entre liberais acetinados e conservadores vetustos, como foi reservado à esquerda brasileira em tempos não tão distantes, quando esta não exercia a disputa hegemônica sobre os valores e rumos da sociedade e do Estado brasileiros.
No entanto, apesar dos prognósticos fatalistas de muitos, o que se observa, depois de assentados os números dos resultados eleitorais, é o revigoramento de nossa presença na vida brasileira, mantendo, dessa forma, a linha de expansão contínua do PT entre as instituições políticas e administrativas desde sua fundação, nos anos 80. Alguns aspectos dão provas disso.
A maior nacionalização eleitoral do PT, que se espraiou por todas as regiões do país, conquistando o governo de cinco estados (Acre, Bahia, Pará, Piauí e Sergipe), além das votações expressivas obtidas em outros (Paraná, Espírito Santo, Pernambuco, Ceará etc.), em aliança com diferentes partidos, e mesmo naqueles em que fomos ao segundo turno e perdemos, como o Rio Grande do Sul. Somem-se ainda os deputados federais que elegemos, formando uma bancada de 83 integrantes, em meio a um fenômeno de grande pulverização de votos em partidos pequenos, o que confirma a centralidade do PT e de sua identidade no cenário político-institucional brasileiro, principalmente em relação aos segmentos populares mais pauperizados.
A presença junto aos mais pobres, que se alicerçou na penetração dos programas sociais, das políticas públicas, do barateamento de alimentos e de material de construção civil patrocinados pelo governo Lula, do aumento do salário mínimo, entre outras medidas, além, é claro, da orgânica identidade construída entre a figura de Lula e os homens e mulheres do povo.
O reconhecimento identitário entre Lula e povo, que assusta a direita pelas potencialidades democratizantes e emancipatórias que tal vínculo contém, ainda que atualmente represadas pela correlação de forças desfavorável e pelas limitações estruturais da economia que constrangem maiores avanços distributivos no âmbito do governo.
O temor do elo político entre Lula e as maiorias populares, que alimenta os fantasmas liberais de que os processos deliberativos “arrebentem” com os diques de contenção das formas representativas democráticas, abrindo espaços para um maior protagonismo da soberania popular no país. Quando, pelo contrário, são os liberais e conservadores brasileiros, como já demonstrou sobejamente Florestan Fernandes na Revolução Burguesa no Brasil, que sempre se mantiveram à sombra do Estado, conformando um capitalismo estamental, não-competitivo e autocrático, pouco propício à recepção das formas representativas de exercício do poder. Daí o pendor bonapartista, substitucionista do poder que sempre acalentou as elites patrimonialistas do país, buscando deter as reformas democráticas das estruturas de poder e de renda em prol das maiorias populares. Pois a expansão da participação popular na fixação das prioridades e nas decisões fundamentais não inviabiliza o funcionamento das instituições representativas.
O peso simbólico de Lula, que se espraia por todos os rincões do país, mas se densifica politicamente no Nordeste, dada a sinergia que se estabelece entre Lula e o homem sertanejo, calejado mas forte, como diria Euclides da Cunha. E que sempre se viu preterido pelas classes dominantes e pelo Estado patrimonialista brasileiro, que o rechaçava, qualificando-o como primitivo, místico e pertencente a uma sub-raça. Daí a extrema violência com que sempre foram tratados os movimentos ou reivindicações provenientes dos camponeses, especialmente quando mexiam com os interesses dos latifundiários e das oligarquias. Na verdade, a utilização do racionalismo retórico como forma de justificação do combate ao messianismo dos sertanejos do campo e de sua mobilização (como ocorreu em Canudos, na Bahia, e em Caldeirão, no Cariri), não raramente temperado por uma ideologia de “higienização social”, buscava elidir a natureza brutalmente excludente do capitalismo periférico brasileiro e sua absoluta intolerância com as demandas “dos de baixo”.
Distintamente da racionalidade etnocêntrica européia que inspira os preconceitos de nossas elites, sempre avessas ao que consideram o caráter rudimentar do povo brasileiro, Lula emerge dessa realidade nordestina, aparentemente paradoxal, cheia de contrastes, mas ao mesmo tempo prenhe de potencialidades utópicas. O conhecimento de Lula da realidade do agreste, de seu dia-a-dia, adversidades, assim como da dimensão estético religiosa, sebastianista, que nutre a esperança nordestina do povo por dias melhores – não se deixando abater pelas agruras do cotidiano –, exibe os limites do entendimento daquelas elites “bem pensantes” da complexidade cultural do Brasil. Racionalidade abstrata européia de que se alimentam, entre outros, quadros da intelligentsia tucana, que não conseguem apreender as determinações plurais e regionalmente diferenciadas do povo brasileiro.
A emergência da vontade popular no Nordeste, estilhaçando as cercas do coronelismo político que teimava em resistir ao processo de modernização do país, constitui-se em um dos elementos mais relevantes a serem devidamente analisados nas últimas eleições. A derrota acachapante do mandonismo de caciques oligárquicos como Antonio Carlos Magalhães, Tasso Jereissati, Agripino Maia, Mão Santa, Marco Maciel, José Jorge, entre outros, demonstra de maneira inequívoca a desestruturação dos vínculos de subalternidade e barganha políticas em que se mantinham agrilhoados milhões de cidadãos nordestinos. O controle da mídia local, a truculência e o poderio econômico associado ao domínio familiar do poder político não foram suficientes para sustar o processo de rejeição aos velhos esquemas de poder do coronelismo, mesmo daqueles que se apresentavam com a face renovada, aparentemente modernizante.
No Ceará, por exemplo, temos uma situação emblemática das modificações profundas sofridas pelo Nordeste, haja vista que é lá que o líder do golpismo tucano contra o governo Lula, Tasso Jereissati – presidente nacional do PSDB –, teve um dos desempenhos mais vexatórios destas eleições, não conseguindo eleger vários de seus próceres tucanos mais próximos, candidatos a deputado federal, estadual e senador. Derrotados, que logo se transmutaram em desolados, ao assistir ao crescimento da esquerda e de suas candidaturas, em contraste com a “desidratação” do percentual de votação de Alckmin no segundo turno das eleições presidenciais no estado,circunscrito a liliputianos 18% dos votos apurados, contrastando com os 82% obtidos por Lula.
A bem da verdade, a oposição de direita, de nítida inspiração udenista, mesmo tendo evocado o espírito lacerdista contra o governo Lula, sofreu sérios reveses eleitorais também em outros redutos do país, como é o caso da votação pífia obtida por Artur Virgílio no Amazonas (menos de 5%) e Demóstenes Torres (cerca de 4%) em Goiás.
Maus resultados eleitorais colhidos pela direita que decorreram de nossa capacidade, especialmente no segundo turno das eleições presidenciais, de ter clarificado programaticamente nossa disputa contra o neoliberalismo de tucanos e pefelistas. O choque entre concepções de sociedade e de Estado deixou claras as distinções entre as candidaturas. Uma, democrático-popular, identificada com a candidatura Lula, lastreada em um conceito de liberdade positiva, em que o Estado desempenha uma função indispensável na promoção dos direitos fundamentais, articulando políticas públicas distributivas de renda e de poder. A outra, representada por Alckmin, fundada na supremacia das forças do mercado internacional e no ideal de um Estado mínimo, atuando circunscritamente na tutela dos direitos de propriedade.
Tal fato ficou manifesto ainda no balanço feito dos últimos governos. O de FHC, marcado pela “herança maldita”, com medidas como “privatizações selvagens”, que ocasionaram a transferência patrimonial de mais de US$ 100 bilhões do setor público para o privado, com financiamento a fundo perdido, pelos bancos oficiais, a seus compradores; falta de recursos para universidades públicas; instauração da corrupção sistêmica no coração do Estado; ausência de planejamento para pensar estratégias de desenvolvimento soberano para o país; exclusão social; quebra da economia brasileira, por três vezes; criminalização dos movimentos sociais.
O de Lula, pelas ações voltadas para reinserção independente do Brasil na ordem internacional; aumento de recursos para universidades públicas e contratação de novos professores por meio de concurso; fim das privatizações; delineamento de uma política estrutural de combate à corrupção, com reforço da Corregedoria da União, da Polícia Federal e da autonomia funcional do Ministério Público (término da figura do “engavetador-geral” da República); ações afirmativas em favor de negros, mulheres; políticas sociais distributivas; investimentos muito maiores em ciência e tecnologia; relação qualificada com os movimentos sociais e suas demandas.
Entretanto, o êxito do PT nas últimas eleições não pode nem deve encobrir verdades que precisamos enfrentar, sob pena de debilitação da capacidade do partido de disputar a hegemonia ético-política da sociedade brasileira. Primeiramente é necessária uma reestruturação profunda do PT. Não somente o transformando em um partido que seja mais sintético da diversidade brasileira − e, assim, mais consentâneo com a heterogeneidade cultural, étnica e regional que nos define −, mas notadamente no âmbito de sua direção nacional, ainda marcada pela ótica restritiva das exigências postas ao país, o que impede que se dê a devida visibilidade a questões de desenvolvimento regional do Nordeste e de outras regiões.
Em segundo lugar, a renovação que se deve realizar com urgência, principalmente em relação às concepções burocráticas dominantes que enrijeceram o relacionamento entre direção e base partidária, afastando-nos de uma concepção mais orgânica do PT e de seus nexos com os movimentos sociais, com a intelectualidade e com a ampliação da esfera pública no Brasil.
Tampouco pode ser adiada a reflexão analítica sobre as causas dos erros cometidos por determinados membros da direção do PT que se envolveram em graves ilícitos e atentados à ética socialista, democrática e republicana, punindo-os com rigor, inclusive com expulsão de alguns dos quadros partidários. Não é possível apostarmos na ruptura com as condutas particularistas, e com a cadeia de lealdades estamentais que marcam o Estado no Brasil, na medida em que alguns dos dirigentes do PT se deixam captar pelos mecanismos sigilosos e antidemocráticos de cooptação e de distribuição de prebendas e favores que conformam historicamente o “nosso” Estado.
O reencontro do PT com os fundamentos originários que orientaram nossa luta, quais sejam, a luta contra a exploração dos trabalhadores, a defesa da soberania do país e a radicalização democrática no intuito da construção de uma sociedade socialista, significa a reafirmação de nossos compromissos e da razão de nossa existência, pois acreditamos que o brilho de nossa estrela ainda pode ajudar a iluminar os caminhos do povo brasileiro rumo a sua emancipação. Afinal, essa “raça” popular, socialista e democrática é formada pela maioria dos brasileiros, que, a despeito do ódio e do rancor de alguns poucos, resistem, teimam em sonhar juntos esse mesmo sonho!
Newton de Menezes Albuquerque é membro do Conselho Curador da Fundação Perseu Abramo