Sociedade

Talvez nenhum outro pensador soube encarnar as contradições radicais de nossa época

“O autor de A Náusea, Entre Quatro Paredes, O Ser e o Nada, As Palavras é evidentemente um espírito superior. Somente os cegos ou os ignorantes tinham necessidade do Prêmio Nobel para perceber isso. Além disso, se Sartre era desconhecido até a publicação de A Náusea, ele jamais deixou de ser reconhecido. Alguns de nós, na Escola Normal, já pressentíamos o seu gênio. Mas eu pouco aprecio (tampouco ele) os elogios acadêmicos que, faz alguns dias, vêm sendo dirigidos ao laureado. Elogios tanto mais irrrisórios na medida em que se referem a um escritor engajado e que ignoram as causas a serviço das quais Sartre se engajou.”
Raymond Aron, “La lecture existentialiste de Marx” in Marxismes imaginaires, pp. 189-190, Gallimard, 1970.

"Não é a busca da imortalidade que nos faz eternos: não seremos absolutos por termos refletido em nossas obras alguns princípios descarnados, assaz vazios e nulos para passarem de um século a outro, mas porque combatemos apaixonadamente em nossa época, porque a amamos apaixonadamente e porque aceitamos perecer inteiramente com ela.”
Jean-Paul Sartre, Apresentação da revista Les Temps Modernes, nº 1.

Faz tempo, uma questão vem se prestando a simplificações das mais abusivas - ao lado de teorizações passíveis de serem levadas a sério -, na qual grassam outras da mais pura leviandade, embora se pretendam constatações inequívocas. Referimo-nos à alegada perda de relevância do intelectual no debate público, pois seu papel, dizem, em face das novas exigências dos tempos que correm, marcados pelo descrédito da dimensão política, tornou-se anacrônico. A julgar por tais avaliações, rompeu-se a relação histórica entre o intelectual e a sociedade. Esse liame surgiu, na forma que perdurou até recentemente, com o Iluminismo, alcançou seu momento mais destacado com o caso Dreyfus e se institucionalizou, pode-se dizer assim, com as lutas sociais e políticas do século 20.

Quando, no caso Dreyfus, descoberto o verdadeiro autor do delito, provou-se a inocência do capitão, boa parte da opinião pública francesa – em aliança com os republicanos de esquerda e os radicais, mais o apoio de personalidades como Clemenceau e Reinach – exigiu a revisão do processo. Logo depois da célebre carta de Zola, J’Accuse, publicada no L‘Aurore, escritores como Proust e Anatole France, além do próprio Zola, assinaram o Manifesto dos Intelectuais, documento que explicitamente pede a reparação de uma injustiça e também fixa a idéia, a partir daí consagrada no pensamento de esquerda, do intelectual como o indivíduo não apenas ligado à produção simbólica, mas igualmente participante ativo dos conflitos sociais e políticos. Também data desse momento a campanha de descrédito em relação ao termo, com o intuito de ridicularizá-lo, patrocinada pela direita antidreyfusarde e cultivada desde então por seus afilhados ideológicos.

Hoje, note-se, vai-se mais além: insiste-se em anular, ou tornar menos relevante, a função até há pouco – e durante um longo tempo – atribuída ao intelectual. Este, anteriormente considerado, por conta de suas atitudes diante das circunstâncias, alguém a serviço do interesse geral da sociedade, uma espécie de ator coletivo empenhado em mobilizar consciências, teria se convertido, na atualidade, numa figura obsoleta. Na verdade, mais do que isso, mais do que advertir sobre seu declínio, anuncia-se até mesmo seu completo desaparecimento do debate público1. Em relação a esta obra, conferir especialmente a página 221. Note-se que na contramão desses vaticínios, recentemente, um grupo de intelectuais, apesar do desgaste que se abateu sobre seu papel no debate das questões contemporâneas, deu sobeja demonstração de como ainda é possível aos homens de pensamento atuarem na defesa de causas em prol das liberdades individuais e coletivas quando estas se encontram ameaçadas pelo aventureirismo político. Tal se deu à época em que o Afeganistão foi invadido por tropas americanas. Com o título de “Não à cruzada imperial”, documento parcialmente publicado no Le Monde, filósofos, sociólogos, economistas e outras figuras ligadas a organizações francesas de esquerda denunciaram a armadilha de uma “lógica binária” que, a pretexto da justa condenação ao atentado terrorista de 11 de setembro, busca justificar o linchamento e instituir a “lei de talião”.

Embora muitos liguem o fenômeno aos processos de mudança acarretados pelo desmoronamento do bloco soviético, décadas atrás suas raízes já eram alvo de estudos sociológicos, voltados para a análise do papel que ainda caberia aos intelectuais e dos obstáculos que eles deveriam transpor para desempenhá-lo2.

As observações formuladas até aqui nos conduzem claramente à velha (mas nem por isso despropositada) discussão sobre a pertinência ou não da intervenção dos intelectuais no debate político de nosso tempo, ou, noutras palavras, se ainda lhes é lícito se erigir, conforme foram chamados no século 18, em preceptores do gênero humano, que com uma das mãos tentaram abalar o trono e com a outra quiseram derrubar os altares3. Não é preciso muita argúcia para perceber que o intelectual de talhe voltairiano, caracterizado pela defesa das liberdades individuais e crítico acerbo das instituições políticas e sociais caducas, vem cada vez mais saindo de cena, substituído por propagandistas do status quo. Já vai longe o tempo em que, sem detrimento de sua atividade essencialmente criadora, uma figura como André Gide se insurgia contra a ação colonialista no Marrocos e no Congo; ou a Guerra da Argélia mobilizava personalidades de destaque, em diferentes áreas, como Pierre-Vidal Naquet, Jean-Pouillon, Laurent Schwartz e Jean-Paul Sartre, signatários de manifestos e artigos contra o jugo colonial francês no continente africano. Portanto, é inegável a ocorrência em nossos dias de uma crise de representação do intelectual, com a conseqüente busca de recuperação de uma identidade que, parece – ou querem fazer crer –, está perdida para sempre.

A questão ora discutida traz sempre à baila um nome: Jean-Paul Sartre. Com efeito, poucos duvidam de que outro intelectual, em todo o século 20, tenha encarnado e resumido, melhor do que ele, tal identidade, tida agora como inadequada e ultrapassada. Menos ainda, quem mais corajosamente assumiu a figura do intelectual público, envolvendo-se nas grandes polêmicas de sua época. Em todas as suas intervenções teóricas sobre o assunto, confirmadas por sua incansável ação, em uma trajetória admirável por tantos conhecida, Sartre centrou-se continuamente na idéia do engajamento do intelectual nos empreendimentos humanos, insistindo na tese de que tal compromisso só será conseqüente quando guiado por um projeto político revolucionário, não devendo quem o assuma temer, nessa ação, intrometer-se em tudo, mesmo que a intervenção não tenha sido solicitada. Esse papel, em um contexto semelhante, já fora defendido por ele anos antes ao observar que todo escrito, independentemente das intenções de seu autor, possui um sentido, pois quem o escreve, não sendo nem Vestal nem Ariel, está sempre na “berlinda” (dans le coup)4.

Mais do que simplesmente avançar além dos limites tradicionalmente estabelecidos para o ato de filosofar, Sartre incursionou, com o gênio de sempre, não apenas na literatura de ficção e ensaística, na dramaturgia e no jornalismo, passando pelo cinema, mas ainda – tomado por uma pujança intelectual fantástica, nas palavras admiradas de Canguilhem - engajou-se, com audácia e obstinação, nos conflitos ideológicos de seu tempo. Por isso, ousou, ao arrepio das normas dos “bem-pensantes”, e em permanente estado de provocação, denunciar a repulsa do colonizador europeu em compreender aqueles a quem oprimia, preferindo entregar-se a um “jogo de anomalias”, pretexto para ver o semelhante como “um mosaico de diferenças irredutíveis” (D’une Chine à l’autre); criticar o colonialismo como um sistema que busca perpetuar-se pela mistificação ao criar a distinção entre os “bons colonos e os colonos muito maus” (Le colonialisme est un système); indignar-se diante da leitura de um dossiê relatando o “exercício cínico e sistemático da violência absoluta” praticada por autoridades civis e militares francesas na Argélia contra a população do país, onde as execuções sumárias e o recurso à tortura para obter informações e confissões eram comuns (Vous êtes formidables). Ainda foi adiante ao exibir a hipocrisia da burguesia francesa, que infiel a seu passado e às suas próprias leis, saiu, sem pudor, do papel de vítima quando da ocupação nazista para o de algoz na repressão aos anseios de libertação do povo argelino (Une victoire); atacar o gaullismo e seus defensores (Le prétendant; La constitution du mépris; Les grenouilles qui demandent un roi e L’analyse du référendum); analisar, com argúcia impecável, o pensamento político do líder congolês Patrice Lumumba (La pensée politique de Patrice Lumumba); e exortar o governo francês a exigir que o general René Barrientos, ditador boliviano, libertasse Régis Debray, preso com base exclusivamente num “delito de opinião” 5.

As posições de Sartre, nesse sentido, constantemente marcadas por implacável crítica ao mundo burguês e suas hipocrisias, não só atraíam a ira da boa consciência burguesa de seus compatriotas como também de todo o pensamento conservador, tanto o que se manifesta claramente de direita quanto o que aparece travestido de liberal. Exemplos concretos dessa reação a nosso filósofo, em meio a tantos outros episódios ilustrativos, podemos encontrar na cobertura da imprensa brasileira quando de sua visita ao país em 1960. Com efeito, de “materialista ateu”, cujo talento não lhe garantia ombrear-se aos homens de estirpe do século 18, a “propagandista revolucionário” indigno da histeria (sic) que provocara entre nós, pois “Sartre hoje em dia na Europa não passa de uma sombra”, chegando à repulsa ao escritor que vem “criticar impunemente, em terras estrangeiras, sua pátria e seu governo”, foram feitas muitas das matérias do noticiário de nossa imprensa cobrindo a visita de Sartre ao Brasil6.

Um pensador que fez do engajamento político sua própria condição de existência e jamais temeu tirar todas as conseqüências dessa atitude, sempre convencido do propósito transformador necessariamente ligado à tarefa do intelectual, ainda que essa posição lhe acarretasse a fúria dos detratores, pôde cobrar de seus pares o compromisso da responsabilidade. A fuga a esse compromisso marcou por longo tempo, segundo Sartre, a carreira literária dos escritores burgueses, que, tentados pela irresponsabilidade, raramente estabeleceram uma ligação entre sua atividade e o pagamento que recebiam em troca. O comprometimento entre as duas coisas parecia inexistir, porque aparentemente uma não se relacionava com a outra. Por conta disso, os defensores da arte pela arte e os autores realistas, escreve o filósofo, só fizeram consolidar suas posições. O escritor burguês, na incerteza de sua situação social, assustado demais para se levantar contra a classe que o sustentava, contentou-se em julgar seu tempo, mas sem nele intervir, pois estava convencido de que se mantinha exterior a ele, da mesma forma que o experimentador se encontra fora do sistema experimental. Sartre viu nessa atitude - por ele chamada gratuidade da arte pela arte - o equivalente, no plano das idéias e da criação artística, ao desinteresse da ciência pura. Isso, a seu ver, explicaria que um escritor como Flaubert fosse ao mesmo tempo um puro estilista e “pai do naturalismo”. Tal herança de irresponsabilidade só fez perturbar os espíritos, criando má consciência literária (mauvaise conscience littéraire), dela resultando a dúvida sobre se escrever era uma atividade admirável ou grotesca: o homem de letras um dia se orgulha daquilo que faz, imaginando-se um guardião de valores nobres; no dia seguinte, vê-se tomado de vergonha, atordoado pela idéia de que a literatura se assemelha a uma forma especial de afetação. Em um instante, sabendo-se lido pelos burgueses, acredita na dignidade de seu ofício; mas diante dos operários, que não o lêem, padece de um complexo de inferioridade. Houve quem tentasse mudar esse estado de coisas desprezando a literatura que fazia. Os surrealistas, observa Sartre, entregaram-se a essa tarefa. Outros chegaram mesmo a mostrar contentamento diante da reprovação que receberam da burguesia. Mas, ao fim e ao cabo, conclui, foram tentativas isoladas que não puderam impedir a deterioração gradativa das palavras, cujo resultado mais imediato foi uma “crise da retórica” e uma “crise da linguagem”, esta última, segundo ele, defendida pelos autores que pregavam a destruição da linguagem como o fim secreto (but secret) de toda literatura. Porém nenhum escritor, resume Sartre, se fiel a seu ofício, à sua missão, tem o direito de evadir-se de sua época – na verdade, deve abraçá-la estreitamente. E não há como fugir desse compromisso, pois mesmo que um escritor escolha o imobilismo, ainda assim sua passividade será uma ação. Mesmo que se dedique a escrever romances sobre os hititas, ainda uma vez isso representará uma tomada de posição, pois todo escritor está sempre situado em sua época. Cada palavra sua tem repercussão. Cada silêncio também7.

Sartre jamais silenciou sobre sua época. Mesmo quando suas posições, sempre desafiantes, suscitaram, ao lado de muitas manifestações de admiração e entusiasmo, outras tantas – e tão intensas – de ódio e indignação, o filósofo nunca as abandonou. Não recuou nem quando suas escolhas políticas trouxeram o ônus do rompimento de velhos laços de amizade. Não poupou sequer Raymond Aron, seu antigo companheiro de juventude, mas de quem se separou por divergências ideológicas incontornáveis. O baque emocional dessa relação conflituosa parece ter sido mais doloroso para Aron, conforme atestam, ora explicitamente, ora veladamente, vários de seus escritos, enquanto Sartre, salvo referências esporádicas ou perdidas em meio a muitas outras, só uma única vez se ocupou mais detidamente em rebater as idéias políticas e filosóficas de seu antigo companheiro, e o fez da maneira mais contundente possível8. Tampouco se absteve de relações tempestuosas com os comunistas franceses e com o comunismo em geral, em uma trajetória marcada por momentos de tolerância mútua e outros tantos de repulsão de parte a parte9.

Sartre, como bem observou um de seus mais argutos intérpretes, soube, como talvez nenhum outro pensador, encarnar as contradições radicais de nossa época10. Nesse sentido, seu pensamento permanece como um dos documentos mais dilacerantes sobre nosso tempo: um tempo atormentado por inquietações e incertezas.

João da Penha é professor de literatura na Universidade Federal do Rio de Janeiro.