Entrevista com o presidente nacional do PT, Tarso Genro
Entrevista com o presidente nacional do PT, Tarso Genro
Para o seu presidente nacional, o partido vive uma crise ético-política porque certos companheiros, ao que tudo indica, constituíram estruturas paralelas por meio de uma relação de financiamento.
O sistema político-partidário brasileiro entrou em colapso e arrastou o PT para sua mais profunda crise desde sua fundação. Novamente a sociedade brasileira se vê diante de um déficit de legitimidade do seu sistema representativo. A seu juízo, quais são as tarefas postas pelo desafio de consolidar uma democracia contemporânea neste século 21, no Brasil?
Creio que esta crise tem de ser analisada em seus dois macrofundamentos. Primeiro, a diversidade político-ideológica regional que existe no Brasil em função da diferença da estrutura de classes e das relações de poder em cada uma das regiões do país, que vão do capitalismo altamente desenvolvido, como em São Paulo, às que estão ainda em “desbravamento”, como os estados do extremo norte e a maior parte da Amazônia. Essas diferenciações regionais estão cobertas por um sistema partidário que não tem obrigação de verticalidade das alianças, não tem a fidelidade partidária como princípio político e jurídico, e que financia as suas campanhas em conseqüência das relações políticas nas regiões, cidades e estados. Portanto, essa diversidade no país reflete no sistema político e leva o sistema partidário à falência, o que exige profunda reforma política.
Além de estar coberta por essas questões, a crise em que se encontra o Partido dos Trabalhadores nos leva a outra. As origens do nosso partido se baseiam muito nas diversas experiências socialistas e socialdemocratas de esquerda, cujos paradigmas foram sendo destroçados em nível internacional, de uma parte, com a queda do Muro de Berlim, como símbolo, e, de outra, com a trasladação da socialdemocracia para posições, senão de integração, pelo menos de cumplicidade com os projetos neoliberais. Portanto, assoberbado por esses elementos, o PT vive um momento extremamente grave. Não sei se é exagero, mas, na minha opinião, o Partido dos Trabalhadores tem de ser refundado. Isso não significa esquecer suas raízes nem descartar suas experiências, mas precisamente tomá-las e colocá-las em novo patamar, não somente de um novo pacto político interno como também de um novo tipo de projeto para o país.
Lembrando uma análise do professor Antonio Candido: ao longo de mais de duas décadas o PT avançou e se consolidou como partido sobre dois trilhos, o da ética e o do compromisso com os trabalhadores. E agora, no debate interno, se diz que ele se abriu em torno das perspectivas de repactuação, de reforma. E você fala em refundação... Qual é o caminho?
Depende da densidade que se dê a cada uma dessas palavras. É preciso definir com maior clareza esses conceitos. Penso que o partido não conseguiu constituir uma visão nova e assimilável, pela maior parte da sociedade, que tivesse como ponto central a participação intensa das classes trabalhadoras neste processo. Não conseguiu repropor um projeto de Nação. Isso significa que, embora o PT seja originariamente um partido dos trabalhadores, ele deve partir da consciência de que os trabalhadores sozinhos não constroem um projeto de Nação nem resgatam a idéia generosa de um novo tipo de socialismo democrático. Acho que hoje as duas coisas estão fundidas, e a grande síntese dessa fusão é precisamente indicar como se dá a transição de um modelo de desenvolvimento – que, mesmo com taxas razoáveis ou elevadas de desenvolvimento, não distribui renda, mas sim a concentra - para um modelo com altas taxas de crescimento, profundo processo de recoesão social, de inclusão social e de redução gradativa, consciente e planejada das diferenças sociais. Esse patamar mínimo é que pode recuperar uma reflexão sadia sobre a utopia. Não é o caos, nem a estagnação, nem a luta de classes exacerbada, sem direção política, que leva ao irracionalismo e ao mais brutal esmagamento das classes trabalhadoras e subalternas, que criará várias condições políticas, culturais e ideológicas para a reproposição de uma estratégia socialista democrática. Por isso, o modelo de desenvolvimento ainda é a questão-chave para a proposição de um projeto de Nação e o primeiro grande compromisso que o PT deve resgatar.
O processo de redemocratização da sociedade brasileira se arrasta há mais de duas décadas e, com a situação de crise que alcançou o sistema político e de maneira profunda o Partido dos Trabalhadores, pergunto: o PT tem saída? E que saída pode apresentar para o país como contribuição, considerando que vivemos em um regime democrático plural?
Devemos crer que o PT tem saída. A questão-chave é saber qual saída dará coerência, ou não, à sua história pregressa, isto é, a do partido da consolidação da democracia e da revolução democrática no Brasil. Em primeiro lugar, acho que essa saída passa por novo pacto de direção no partido - menos exclusivista do que o atual, que foi importante para o país, até porque elegeu o presidente Lula e transformou o PT em um dos partidos mais importantes do mundo -, porque o pacto de hoje está esgotado, já cumpriu sua função histórica. Em segundo lugar, é preciso que esse pacto de direção consiga estabelecer uma nova relação com a nossa base militante, que está exausta, desencantada. Em terceiro, que o partido consiga desenvolver ações políticas de médio e de largo alcance na sociedade brasileira para que ele possa, novamente, intervir na luta social de maneira legítima, o que não está acontecendo neste momento. Para tanto, nosso partido vai ser obrigado a lavar a roupa suja fora de casa. Não adianta entregar duas ou três cabeças em uma bandeja e dizer que estamos todos purgados. Temos de dizer à sociedade e à nossa base quais foram os processos internos, os descuidos, as irregularidades, a falta de controle ou, quem sabe, até os autoritarismos involuntários ou voluntários que permitiram que o PT se metesse na enrascada em que se encontra hoje.
A crise, inevitavelmente, provoca um reposicionamento das forças internas. O PT precisa de uma nova maioria para superar esta crise? Você também poderia situar melhor esse legado de cultura política do PT, que talvez esteja na raiz desta crise profunda?
Recentemente, comentei em uma entrevista que o problema que estamos passando diz respeito a uma raiz teórica. Ele se refere a uma ética bolchevique maldigerida, e aplicada em um tempo histórico em que havia o princípio de que os fins justificavam os meios, e, portanto, existe uma ética “nossa” e uma ética “deles”, cujos pressupostos não são adaptáveis ao Estado democrático de direito, e logo não constituem elementos capazes de fundar uma nova hegemonia. Se o PT é um partido que tem responsabilidade com o Estado democrático de direito, sua ética não é uma ética em que os fins estão desprendidos dos meios. Porque na política democrática os meios são sempre públicos, se dão na cena pública e quando submergem para a clandestinidade perdem a conexão com os princípios do Estado democrático de direito e, portanto, têm capacidade de perversão máxima. É o contrário do que ocorria com o bolchevismo na época do czarismo, uma vez que a ética ruinosa, a “ética do mal”, era do Estado de fato do czarismo; e a ética da resistência, a “ética do bem”, que encantava setores da população e da classe operária, estava submersa, a ética da revolução. Portanto, são situações completamente distintas. Por isso, temos de aproveitar, ao mesmo tempo, o que de exponencial existe em nossa cultura política, que não é pouco, e refundar uma ética pública diferenciada. Por exemplo, não é admissível que na gestão dos aparatos institucionais do Estado de direito os fins justifiquem os meios, porque isso se torna uma agressão ao conjunto da cidadania. Não é aceitável que estabeleçamos redes clandestinas de recolhimento de recursos, porque isso vai ser utilizado para o bem da campanha eleitoral. Não estou falando de irregularidades em processos eleitorais que todos os partidos cometem, mas de redes clandestinas de sustentação de campanhas eleitorais. Essa atitude nas sombras transforma-se em ação perversa e sujeita a todo tipo de deformação. O partido, no futuro, terá de encarar essas questões se quiser se diferenciar. Jamais poderá avocar, como fazíamos até certo tempo, o monopólio da virtude. Vai ter de demonstrar, para se diferenciar dos partidos tradicionais, que mantém duros mecanismos de controle e de coerção desse processo perverso.
Em sua avaliação, o Processo de Eleições Diretas (PED) pode desempenhar o papel de lançar essa nova fase?
Acho que sim, mas temo que ele possa radicalizar de maneira artificial algumas posições. Estamos vivendo problemas tão sérios que, se forem utilizados como tática meramente eleitoral do PED, podem levar a radicalizações internas desnecessárias. Conversei com as correntes de opinião do partido, por intermédio de seus líderes, e creio que será um bom momento de debate político, até porque tudo o que aconteceu no partido não foi somente por cumplicidade de indivíduos. Foi também por um processo de acomodação, cegueira interna, e às vezes omissão, que envolve todo o partido com graus diversos de responsabilidade. O que não significa acusar os que estejam fora da maioria de ter contribuído para isso. Há todo um problema nas estruturas de direção do partido, desde a base até sua estrutura mais central, de relativa acomodação.
O PT se define, desde sua fundação, como um partido socialista e democrático, portanto, com profundos vínculos com os movimentos sociais dos trabalhadores. Qual sua avaliação hoje dessa relação? Os movimentos sociais têm algum papel nessa nova perspectiva do partido?
O partido ainda não resolveu seu dilema, entre partido de governo e partido de movimento. Um partido de esquerda em sua maturidade necessariamente se encontra perante essa ambigüidade, que até agora não foi resolvida por nenhum partido pós-comunista. Os partidos comunistas resolveram isso sufocando a sociedade civil, integrando o Estado nos movimentos sociais e, portanto, castrando até sua capacidade de contribuir e de tensionar as políticas do Estado, que eram centralizadas por meio de um processo burocrático. Se os movimentos sociais não desempenharem papel decisivo na reconstrução ou na refundação do partido e, mais do que isso, não tiverem incidência sobre o governo, estabelecendo com ele uma dialética negocial intensa, não haverá saída para o partido como constituição de esquerda e não haverá saída para o governo, que ficará atado a uma posição mais centrista do que de esquerda.
A exemplo de outros partidos de esquerda que chegaram ao governo, o PT vive enormes dificuldades para definir seu perfil diante de um governo que é sustentado por uma complexa frente de partidos. Quais os termos da relação que o PT deve estabelecer com o governo Lula?
Neste período, por inexperiência nossa, ou maior responsabilidade da direção ou de grande parte, na qual eu me incluo, o PT na verdade se transformou em um braço do governo e uma espécie de continuidade da estrutura estatal. Por várias razões, entre as quais o fato de que muitos quadros altamente qualificados foram para o governo, e o processo de acomodação que se dá por meio de cooptação de cargos e vem, não digo da arrogância, mas da soberba de um jovem partido que chega ao governo em um dos países mais importantes do mundo e desempenha uma política externa exemplar. Esse choque cultural que o partido sofreu neste período também é responsável por esse nível de problemas que estamos enfrentando hoje. Suponho que tenhamos de criar as condições para que o novo núcleo dirigente tenha duas características: manter e articular o partido como de sustentação parlamentar e estratégica do governo; e ter autonomia suficiente em relação ao governo, até para se descolar de algumas políticas suas com contribuições densas, sérias e capazes de promover alterações no rumo do governo. Isso não significa propor rupturas irresponsáveis ou ataques a um ou outro ministro, mas sim tornar o partido sujeito do processo de construção do programa. Se não o fizer ficará simplesmente diluído em um frentão, até excessivo para as necessidades de reforma que hoje temos de desenvolver.
O Executivo, inevitavelmente, exige em sua dinâmica os quadros mais experimentados para exercer as funções de governo, o que, forçosamente, debilita a ação partidária. A esquerda européia viveu problemas dessa natureza. Como equacionar esse dilema? O que dizer sobre a formação de quadros dirigentes, de quadros intermediários, em um partido como o PT?
O problema pode ser equacionado, principalmente, de dois modos. De um lado, estabelecendo uma estrutura de formação adequada e, de outro, desenvolvendo um relacionamento com a inteligência técnica, inteligência humanística não-partidária. O partido não pode formar quadros apenas a partir de sua dialética interna e das balizas políticas e ideológicas, que qualquer partido tem; ele sempre será parte e nunca tenderá ao universal. E a vocação de um partido, que seja um partido dirigente, de mudanças, é sempre tensionar em direção ao universal. Nesse sentido, além de um processo de formação de quadros, temos de estabelecer uma relação muito ampla com a intelectualidade democrática para que as nossas posições sejam permanentemente verificadas e enriquecidas.
Por exemplo, utilizando mecanismos como a Fundação Perseu Abramo...
Obviamente que nem falo na Fundação porque, sem ela, o partido hoje não teria sequer condições de realizar esse movimento, por seu prestígio, sua autonomia e pelo que aportou inclusive ao partido até hoje.
Uma preocupação da militância do partido e da base que eu chamaria de “sociedade civil petista”, tecida no âmbito da sociedade brasileira, é saber qual é o ponto-chave da crise. É uma crise política ou ética?
Acho que é uma crise ético-política. Não é simplesmente para facilitar a resposta que faço essa fusão. Creio que o governo tem um déficit de direção política central, à qual os dirigentes políticos de gestão do Estado deveriam se reportar de maneira mais orgânica, mais articulada. Isso ocorreu a partir do caso Waldomiro, que atingiu o ex-ministro-chefe da Casa Civil José Dirceu. Sua figura foi abalada enquanto gestor político do governo naquele momento, evidentemente não para nós, militantes do partido, que o conhecemos. De outra parte, a crise tem natureza ética na medida em que estamos percebendo que determinados companheiros excederam ao mandato específico concedido pelo partido para exercer determinadas funções e, ao que tudo indica, constituíram estruturas paralelas de poder por meio de uma relação de financiamento. Isso tem de ser profundamente estudado e avaliado pelo partido com as conseqüências que vierem a determinar os estatutos. Portanto, é uma crise ética e uma crise também de direção política.
Evidentemente, não há possibilidade de solução duradoura da crise que não passe por uma reforma política substantiva.
Sem dúvida. Uma grande contribuição que o PT pode dar à sociedade neste momento não é sair apontando irregularidades nos outros partidos, porque todo mundo sabe que existe, provavelmente em todos – não estou fazendo uma afirmação irretocável. Mas, sobretudo, dizer que o que está ocorrendo é um fato relativamente comum na sociedade brasileira e nós devemos aproveitar essa nossa catarse para ajudar a sociedade a mudar as regras jurídicas, dificultando que tais situações aconteçam com os demais partidos.
Hamilton Pereira é presidente da Fundação Perseu Abramo.