Conforme o previsto pelo artigo 72 da Constituição e após muitos conflitos acerca da quantidade e da validade das assinaturas apresentadas, confirmou-se que a oposição colheu assinaturas correspondentes a mais de 20% do colégio eleitoral nacional, e o Conselho Nacional Eleitoral convocou para 15 de agosto de 2004 - pela primeira vez no continente - um referendo revogatório do mandato de um presidente1. Nesse referendo não estava em jogo apenas a permanência ou não de Chávez na Presidência da República, mas a extraordinária proposição de seguir na direção conflituosa dos processos de mudança ou reverter as políticas para um modelo econômico e político neoliberal e um realinhamento geopolítico da Venezuela com os Estados Unidos. O presidente Chávez teve seu mandato confirmado com o apoio de 59% dos votantes, com uma abstenção de 30%2. Venceu o referendo nas capitais de todos os 23 estados, exceto no de Nueva Esparta, no qual perdeu por 313 votos, uma diferença de 0,068%. Na metade dos estados obteve mais de 64% dos votos. O apoio foi maior nas zonas rurais e nas pequenas e médias cidades do que nas mais populosas. A oposição ganhou em algumas das maiores cidades (região metropolitana de Caracas, Maracaibo, Valencia, San Cristóbal e Mérida). Chávez venceu em praticamente todas as outras cidades do país (Barquisimeto, Ciudad Guayana, Puerto La Cruz, Barcelona, Maracay, Cumaná, Acarigua etc.). O resultado do referendo confirma três características básicas da situação política venezuelana atual.
Em primeiro lugar, o governo de Chávez mantém um sólido respaldo eleitoral apesar de todas as dificuldades e obstáculos que enfrentou durante esses anos: golpe de Estado de abril de 2002, greve empresarial dos petroleiros de 2002-2003, que significou perdas de mais de US$ 10 milhões para o país, uma campanha sistemática de oposição radical da quase totalidade dos meios de comunicação privados e ameaças recorrentes por parte dos Estados Unidos, incluindo um sistemático apoio político e financeiro à oposição venezuelana, sobretudo a seus setores mais diretamente golpistas e antidemocráticos.
A política da administração Bush para o governo venezuelano tem sido extraordinariamente agressiva. O presidente Bush, os principais porta-vozes da política exterior dos Estados Unidos, como Condoleezza Rice e Colin Powell, assim como os responsáveis pela América Latina no Departamento de Estado (Otto Reich e Roger Noriega), formularam reiteradas "advertências" públicas ao governo venezuelano. Já não resta dúvida de que o governo Bush apoiou o golpe de Estado realizado por setores da oposição em abril de 20023. Além de se reunir reiteradamente com os principais responsáveis pelo golpe, o Departamento de Estado, através do Fundo Nacional para a Democracia, financiou cada uma das organizações partidárias, sindicais, empresariais e da autodenominada "sociedade civil" que participaram do golpe. Tal financiamento foi incrementado precisamente a partir do golpe em abril de 20024. Em março de 2004, com base em uma documentação bem mais ampla que aquela de que se dispunha logo após o golpe, o embaixador venezuelano na Organização dos Estados Americanos apresentou uma detalhada denúncia do papel do governo dos Estados Unidos no golpe5.
A agência de desenvolvimento dos Estados Unidos (U.S. Agency for International Development, USAID) está atualmente executando um vasto programa denominado "Venezuela: iniciativa de construção de confiança", com um financiamento de US$ 10 milhões (2002-2004), orientado para incidir sobre o processo político venezuelano. Esse programa apóia organizações que tiveram participação destacada no golpe de 2002 e continuam fazendo todo o possível para derrubar Chávez6.
Ao manter a porcentagem de apoio obtido nas eleições de 2000, dado que o colégio eleitoral é significativamente maior, Chávez aumentou seu respaldo em 2 milhões de votos. Com esses resultados, são sete as eleições consecutivas que Chávez e as forças políticas de apoio ganham desde 19987. Essa reafirmação de sua legitimidade democrática mostra uma importante consolidação de apoio a seu governo entre os setores populares. Isso é conseqüência principalmente do que vem ocorrendo na Venezuela durante os últimos anos: uma profunda mudança na cultura política, que se expressa em níveis de organização e participação popular anteriormente desconhecidos no país. É igualmente fruto das políticas do governo nas condições de vida e, sobretudo, nas expectativas de futuro dos setores populares. Para isso, vem desempenhando papel destacado o conjunto de políticas públicas denominado Misiones, que tem impulsionado o governo por todo o país. Trata-se de uma ampla gama de programas extraordinários que, fazendo um bypass parcial da burocracia estatal, busca responder a cada um dos principais problemas sociais que, uma vez identificados como críticos, demandam respostas urgentes.
A Misión Robinson é um programa cívico-militar cujo objetivo é alfabetizar em curto prazo os cerca de 2 milhões de pessoas que não sabem ler nem escrever no país e, em etapas posteriores, fazer com que os recém-alfabetizados cursem o ensino fundamental. A Misión Ribas tem como meta levar ao ensino médio pessoas de todas as idades que tenham parado de estudar ao concluir o ensino fundamental. A Misión Sucre visa a uma ampla incorporação de estudantes ao ensino superior, dando prioridade àqueles vindos da classe média baixa e aos pobres. Já a Misión Mercal tem como propósito a comercialização de produtos alimentícios e outros gêneros de primeira necessidade para garantir o fornecimento de bens de qualidade e preço baixo à população de baixa renda em todo o país. No processo de criação de canais alternativos de produção e comercialização, o programa propõe-se a fomentar cooperativas e pequenas empresas. A Misión Barrio Adentro, com a participação em massa de médicos cubanos, pretende levar atendimento médico primário e familiar a setores populares em todo o país. O plano Misión Zamora busca distribuir terras aos camponeses, acompanhada de capacitação, assistência técnica, comércio, infra-estrutura, serviços e financiamento. E o Misión Vuelvan Caras está voltado para a geração de emprego permanente mediante a capacitação para o trabalho, a formação sociocultural e a criação de núcleos de desenvolvimento endógeno no campo do turismo, da agricultura, da infra-estrutura, dos serviços e da indústria. Em contraste com as políticas sociais pontuais que prevaleceram em todo o continente nos últimos tempos, essas políticas estão direcionadas para a obtenção da eqüidade social e para a superação das desigualdades políticas e das exclusões culturais. Para isso, são enfatizadas a participação e a construção da cidadania. As Misiones não são concebidas como políticas compensatórias dos efeitos sociais negativos das políticas econômicas, mas como parte integrante destas. A meta é que consigam níveis crescentes de coordenação para ir construindo o tecido produtivo e social da nova Venezuela, assim como uma nova institucionalidade pública.
Em segundo lugar, a Venezuela possui uma sociedade profundamente dividida, e essa divisão tem um claro conteúdo de classe. Nos setores de maior renda, a votação a favor do "Sim" (pela saída de Chávez) flutuou em geral entre 80% e 90%. Nos setores de maior concentração popular, o voto pelo "Não" flutuou em geral entre 70% e 80%. O problema para a oposição é que os setores pobres constituem uma grande maioria no país. Essa divisão classista do eleitorado pode ser ilustrada através do exemplo dos resultados da área metropolitana de Caracas. Assim corno na maior parte das cidades do continente, as divisões sociais em Caracas têm claras expressões espaciais na forma segregada como se distribui a população entre os diferentes municípios e bairros desse conglomerado urbano. Para a maior parte dos que estão à frente da oposição e muitos de seus analistas políticos, essa divisão é produto e conseqüência direta do discurso polarizante de Chávez, de sua apelação populista e demagógica aos setores populares.
Mudando de foco, seria possível retornar ao saudoso passado de uma sociedade supostamente integrada. Essa é uma interpretação que deixa transparecer por completo a profundidade da exclusão prevalecente na sociedade venezuelana antes do governo Chávez, tanto por uma herança colonial de hierarquização social e racial nunca superada como pelos efeitos mais recentes da aplicação de políticas econômicas neoliberais. A fratura profunda da sociedade venezuelana teve sua mais nítida expressão na explosão social de fevereiro de 1989, conhecida como Caracazo, durante a qual, nas principais cidades do país, produziram-se saques em massa em uma escala desconhecida na história da Venezuela. Essa mobilização popular pôs fim a uma repressão militar generalizada, executada pelo governo de Carlos Pérez e responsável por centenas de mortes. Com o Caracazo quebrou-se para sempre a "ilusão de harmonia" que, durante décadas, constituiu a mitologia das elites políticas, econômicas e culturais do país. O discurso de Chávez não criou a divisão social da sociedade venezuelana, apenas lhe deu visibilidade.
Em terceiro lugar, o comando da oposição venezuelana, em sua reação à derrota eleitoral, demonstrou uma vez mais pouca disposição em aceitar as regras do jogo democrático, quando estas não o favorecem. Como a oposição venezuelana realizou uma campanha sistemática de alcance nacional e internacional para deslegitimar o Conselho Nacional Eleitoral e de denúncia dos resultados do referendo como produto de uma grande fraude, é necessário examinar melhor a questão. Os mecanismos da fraude denunciados pela oposição foram variando à medida que seus diversos argumentos eram rebatidos: limites prefixados ao número de votos "Sim" que cada máquina poderia registrar; transmissão distorcida dos resultados dos centros de votação ao centro nacional de totalização; programação das máquinas de votação para transformar os votos "Sim" em votos "Não"; seleção tendenciosa da amostra utilizada para a auditoria pós-referendo, etc. Afirmam ter havido fraude porque os resultados oficiais do referendo não são consistentes com suas pesquisas de boca de urna - pesquisas realizadas por ativistas políticos de Súmate, uma das organizações da oposição. Produziram volumosos documentos mediante os quais afirmam ter demonstrado a fraude de forra contundente8
Primeiramente deve-se destacar que os resultados do referendo foram consistentes com as previsões de todas as principais pesquisas de opinião realizadas anteriormente, várias delas feitas por empresas ligadas à oposição - pesquisas que deram a Chávez urna vantagem que variava entre um mínimo de 5,2% e um máximo de 31%. Essas eleições tiveram numerosa presença de observadores internacionais, incluindo os das organizações que a oposição havia apontado como os únicos árbitros confiáveis, cujo veredicto aceitariam: a OEA e o Centro Carter. Depois de concluído o processo eleitoral, realizou-se uma auditoria dos resultados, organizada pelo Conselho Nacional Eleitoral, a OEA, o Centro Carter e observadores eleitorais europeus, com a presença do Comando Maisanta, representante do "Não" em todas as atividades do referendo.
Os representantes da oposição, absolutamente conscientes de que a auditoria confirmaria os resultados oficiais, o que os deixaria sem argumentos, negaram-se a participar. Do total de 8.141 mesas de votação, selecionou-se aleatoriamente, e na presença de todos os observadores, uma amostra representativa de 150 mesas, com uma margem de erro de 3% e um grau de confiança de 95%. Para um total de mais de 135 mil eleitores incluídos nessa amostra, foi classificado e contado cada um dos comprovantes de votação impressos depositados nas urnas eleitorais e os resultados comparados com os relatórios emitidos pelas máquinas automáticas (touch screen) de votação correspondentes. Encontrou-se uma discrepância de menos de 0,01%, atribuída à possibilidade de alguns dos eleitores não haverem depositado o comprovante na urna após a votação automática. O resultado da referida auditoria, resumidamente, é o seguinte: "Com base na amostra analisada, pode-se afirmar com segurança que os resultados apresentados pelas máquinas de votação foram plenamente validados pelos resultados obtidos mediante a recontagem manual dos votos"8. Uma vez recebido o relatório da missão da organização que participou como observadora, o Conselho Permanente da Organização dos Estados Americanos reconheceu como válidos os resultados oficiais e acordou: "Fazer um chamado a todos os atores a respeitarem os resultados do Referendo Revogatório Presidencial, emitidos pelo Conselho Nacional Eleitoral e acreditados pela Missão de Observação Eleitoral da Missão de Observação Eleitoral da OEA, o Centro Carter e demais observadores internacionais. Igualmente, exortar todos os setores nacionais a se abster de promover a violência e a intolerância, com o fim de facilitar a necessária busca da reconciliação nacional"9. De sua parte, o Centro Carter, nas conclusões de seu relatório, afirma: "A conclusão do Centro Carter é de que as máquinas de votação automatizada funcionaram bem e que os resultados da votação refletem a vontade do povo. Nossa rápida contagem também incluiu os centros de votação manual e quase não houve preocupações a esse respeito.
Esperamos que essas conclusões dêem ao povo da Venezuela confiança no funcionamento adequado do sistema automatizado, especificamente frente à proximidade das eleições regionais. A votação maciça de cerca de 73% do REP (Registro Eleitoral Permanente) reflete o intenso interesse levantado pelo referendo revogatório. Deve-se reconhecer o esforço do povo da Venezuela, que permaneceu nas filas durante horas sem gerar incidentes, em uma demonstração cívica de participação e orgulho cidadão. Instamos todos os venezuelanos a aceitar esses resultados e a olhar para o futuro. Os 41% da população que votaram por uma mudança na Presidência têm preocupações legítimas que devem ser atendidas. Urgimos ao governo que reconheça os direitos e as preocupações dessa enorme minoria e, com ela, dê início a discussões que lhe permitam criar uma visão comum sobre o futuro da Venezuela. Também instamos aqueles que conduzem a oposição a buscar caminhos que lhes permitam trabalhar de maneira construtiva como governo, a fim de alcançar os sonhos de todos os venezuelanos"10.
O desconhecimento dos que estão no comando e das organizações da oposição venezuelana tem pelo menos duas explicações. Por um lado, trata-se da continuidade do esforço sistemático realizado ao longo desses anos de deslegitimar o governo e de convencer a chamada "comunidade internacional" (leia-se: o governo dos Estados Unidos) de que não passa de um governo antidemocrático rechaçado pela maioria da população venezuelana. Não perderam a esperança de que se possa aplicar a Carta Democrática ou de que o governo dos Estados Unidos decida intervir para salvar a Venezuela da "ameaça castro-comunista." Do ponto de vista interno, a liderança da oposição encontrou-se diante da necessidade de dar aos eleitores alguma explicação. Haviam-lhes dito outra vez que eram a absoluta maioria do país... Mas a solidez do respaldo eleitoral a Chávez e a relegitimação de seu governo puseram em questão todos os seus principais argumentos e prognósticos.
Há, igualmente, outras explicações. Desconhecendo a realidade do outro, da ampla maioria do país que é pobre e vem de uma história de exclusão sistemática, e expressando um desapreço que não pode ser definido senão de racista em relação aos setores populares, não podem aceitar que essa maioria possa optar consciente e voluntariamente por um projeto político que eles recusam e vêem como tão ameaçador.
Nessas condições só encontram duas explicações possíveis: ou os pobres foram comprados para que votassem a favor de Chávez, ou houve uma imensa fraude. Encontramos uma expressão grosseira desse desapreço racista pela dignidade dos pobres no cardeal venezuelano Rosalio José Castillo Lara, que declarou à Rádio Vaticano que esses resultados foram fruto do fato de que "aos pobres eram dados de US$ 50 a US$ 60 se votassem no 'Não'11.
Quanto à fraude, depois de haverem denunciado o governo por anos, alegando ser este totalmente incapaz, composto de funcionários incompetentes, agora lhe atribuem uma fraude tão incrivelmente sofisticada que nem seus assessores internacionais do mais alto nível conseguiram detectar os mecanismos mediante os quais operou.
Tradução: Heyd Más
Edgardo Lander é professor da Universidade Central da Venezuela