Nacional

Entrevista com Marco Antônio Trierveiler

Coordenador do Movimento dos Atingidos por Barragens fala sobre a crise do setor energético, as alternativas e o novo modelo proposto pelo governo federal

Trace um retrato do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB). A origem, a história, os objetivos e o alcance do movimento no Brasil.

O MAB é um movimento de massa que, com a construção das barragens, procura organizar a população que será atingida e prejudicada pela obra. O simples anúncio de uma barragem já causa alterações na população e na região onde será inserida. São populações que vivem na barranca do rio e vêm sendo excluídas ao longo dos anos pelo contínuo avanço do capitalismo. Há muitas famílias da resistência quilombola, indígenas, sem-terra expulsos das fazendas, que encontraram abrigo nessas pequenas propriedades. Pelo modelo agrícola aplicado no país, muitos mini e pequenos proprietários foram retirados das melhores terras e encontraram abrigo e resistência nas terras mais dobradas das barrancas do rio.

Num primeiro momento, procuramos organizá-los para impedir que a obra seja construída e, num segundo momento, como não somos vitoriosos em todos os locais, procuramos garantir o direito desses agricultores, principalmente o direito de continuarem na atividade agrícola. Grande parte dos atingidos por barragens é ligada à agricultura.

O movimento surgiu com mais força no final da década de 70, quando o Brasil viveu a época do milagre econômico, das grandes construções e das grandes barragens. Um projeto da Eletrobrás mapeou todo o potencial hidrelétrico no Brasil, e tiveram início obras de Sobradinho, Itaparica, no Rio São Francisco e na bacia do Rio Alto Uruguai, onde técnicos da empresa iniciaram estudos e tivemos notícias do projeto de construção de 23 barragens.

Então surgiram, por exemplo, a Comissão Regional de Atingidos por Barragem (Crab), no Paraná, e a Comissao de Atingidos por Barragens do Rio Iguaçu (Crabi). Dessas organizações regionais fortes passamos a ter necessidade de uma organização em nível nacional. Iniciamos um movimento e em 1989 realizamos o primeiro Encontro Nacional de Atingidos por Barragens.

Como foi a relação entre o MAB e o governo FHC?
Foi muito difícil. Principalmente com a privatização das barragens, a barranca do rio virou uma terra sem lei, onde a iniciativa privada fez os maiores absurdos.

Balbina ou Itaipu, que em dólar acabou custando três vezes mais que o previsto, fizeram parte de um grande processo de corrupção financeira. Houve grandes absurdos sociais, se atentarmos para Itaparica e Sobradinho, com a expulsão de milhares de famílias. Com Fernando Henrique e as privatizações, esses absurdos continuaram ocorrendo, e não havia a presença do Estado. Até hoje ainda não se sente a presença do Estado na barranca do rio, como responsável pelo setor elétrico ou por um setor que interfira na vida das pessoas - meio ambiente, por exemplo. E quando cobrávamos de Fernando Henrique, principalmente denunciando o nosso problema, sempre éramos jogados de um setor para outro. Diziam: "Vocês ligados à questão energética vão para o Ministério de Minas e Energia" Neste avaliavam: "Mas o público de vocês é praticamente sem terra. Então, vão ao Reforma Agrária." E assim por diante. O governo não assumia a responsabilidade pelo setor energético e pelos problemas do modelo energético que estava sendo implementado.

Faça uma comparação. Como tem sido a relação com o governo, desde a posse de Lula?
Em um ponto houve um grande avanço: a disponibilidade de diálogo do governo. Não faltaram nesses dois anos espaços para dialogar, para o MAB apresentar sua pauta, questionar, contar sua história e denunciar o que vem sofrendo. Mas sentimos que o nível de discussão que querem fazer com o MAB é ainda dos problemas sociais.

Você considera que há um limite?
Sim. Hoje a área econômica é o carro chefe do governo. O debate sobre energia ainda é muito tecnicista e economicista: "Precisamos nos desenvolver, para o que precisamos de energia, e precisando de energia vemos as barragens como a grande alternativa." Então, como respeitam o MAB, o tratamento social deve ser diferente.

Vivemos numa sociedade que demanda cada vez mais energia, sobretudo com o avanço do capitalismo, da tecnologia. A principal fonte de energia mundial, o petróleo, é finita. A produção não acompanha o consumo. A energia elétrica assume então um papel cada vez mais relevante. Tanto que no Brasil 18% da energia produzida vem da hidreletricidade. De que forma produzir essa energia? De que forma consumir essa energia? Achamos que o MAB também deve ser chamado para esse debate.

Há uma retomada do crescimento econômico, que esbarra numa demanda de energia, cuja oferta dentro de pouco tempo se esgotará. Como o MAB avalia esse novo modelo do setor elétrico?
Há duas formas de ver a energia: energia como um bem necessário para o desenvolvimento, para o acesso de todos - e o governo seria responsável por garantir esse acesso -, e energia como mercadoria, como fonte de lucro. O novo modelo continua vendo a energia como uma mercadoria. Então, por exemplo, a Parceria Público-Privada continua privatizando, ainda estamos entregando esse bem extremamente importante. Estamos discutindo a importância da energia para o modelo de desenvolvimento que se quer aplicar num país. Mas a energia continua na mão da iniciativa privada, dos grandes grupos econômicos. Continuam privatizando a água junto com a energia. Uma das primeiras iniciativas, ao mesmo tempo que são construídos os lagos de barragem, é cercar o lago. A empresa cria até uma nova relação de poder na região, passa a dizer o que pode e o que não pode ser feito no lago. Acaba se apropriando da água.

O governo sustenta que, para manter o ritmo de crescimento, a hidreletricidade é uma necessidade incontornável. Quais são as alternativas?
Hoje, 35% da energia vai para a indústria pesada. Boa parte está indo para as empresas chamadas eletrointensivas, que têm algumas características peculiares: grande demanda de energia; por serem totalmente automatizadas, geram pouco emprego em comparação com outras indústrias; poluem muito o meio ambiente; e em geral o que produzem não é para consumo interno - celulose, alumínio, ferro-liga, muita química. Por essas características, estão proibidas de se instalar em países desenvolvidos. Então, Japão, Estados Unidos e países europeus instalam essas indústrias em países do Terceiro Mundo, onde conseguem hidreletricidade, benefícios do governo, energia subsidiada.

Temos o exemplo de Tucuruí, em que a barragem foi construída para alimentar a Albrás e a Alumar, indústrias de alumínio. Que beneficio temos em colocar muita terra debaixo da água, causar muito problema ambiental e social, para produzir uma energia que será gasta por uma empresa japonesa que utilizará esse alumínio para fazer latinhas de cerveja no Japão? Questionamos esse tipo de desenvolvimento.

É preciso fazer um raio X da questão energética do país. Qual a nossa real necessidade? Para onde vai essa energia? Qual a melhor forma dessa energia? Sobre as alternativas, temos acompanhado alguns estudos. Há pouco tempo saiu uma pesquisa de professor Célio Bergmann, da Universidade de São Paulo, sobre a alternativa de repotenciação das barragens já existentes. Muitas barragens estão com mais de vinte anos, com equipamento sucateado. Se modernizássemos essas barragens, acrescentaríamos grande quantidade de energia ao sistema, a custo muito mais baixo. Uma barragem repotencializada custaria um terço de uma nova.

Outra opção é mexer no próprio sistema de transmissão de energia do Brasil. As perdas técnicas que ocorrem são maiores do que as consideradas aceitáveis pelo padrão internacional - que é 6%. Portanto, eliminar perdas na transmissão da energia é uma boa economia.

Uma terceira alternativa é um programa sério de economia de energia. Algo de positivo na crise de energia foi constatarmos que podemos economizá-la. O problema é que se tem energia elétrica como uma mercadoria, para obtenção de lucro, na mão da iniciativa privada. O incentivo é para consumir mais, e não de economizar. Então, um programa de eliminar os desperdícios, um programa sério de economia de energia, esbarra na energia para obtenção de lucro.

Há também a energia eólica, dos ventos. A própria cana-de-açúcar que está sendo queimada em São Paulo poderia ser usada na produção de energia. Energia solar, embora tenha limites, pode ser uma alternativa para regiões isoladas do país.

Enfim, alguns estudos afirmam que, aplicando essas várias opções, acrescentaríamos cerca de 40% de energia ao sistema brasileiro, não havendo praticamente necessidade de construir novas barragens, pelo menos por um bom período.

Qual é a posição do MAB sobre a exploração das usinas atômicas para produção de energia?
Os estudos que o MAB teve até hoje não trazem a energia atômica como reivindicação ou como forma de substituirmos, em parte pelo menos, a produção de energia por meio da hidreletricidade. Participamos da luta contra a construção de Angra 3, no Rio de Janeiro. Temos muita resistência.

Como suprir a demanda de energia em regiões fora dos centros industriais, como o noroeste do país - norte de Mato Grosso, Rondônia, Acre?
O MAB não é contra a energia - ela é um bem necessário para todos e por isso deve estar a serviço de toda a população. Principalmente nessas regiões muita gente, muita pequena indústria ainda não têm energia elétrica. É preciso um programa para fazê-la chegar lá. Por isso, achamos que o modelo energético brasileiro não pode ser monogerador. Hoje, dados mostram que entre 78% e 85% da energia elétrica brasileira é produzida por hidreletricidade. É preciso diversificar.

Em algumas regiões a opção pode ser a construção de barragens, em outras produzir energia eólica, em algumas talvez seja repotencializar barragens.

A tradição no Brasil é de baixa sensibilidade social e ambiental, quando se trata de grandes investimentos de infra-estrutura, particularmente hidrelétricas. O MAB acredita que o Estado brasileiro e as empresas privadas de construção de barragens avançaram, se modernizaram, adquiriram alguma sensibilidade social e ambiental?
Nossa experiência mostra que o discurso se amenizou. Notamos diferenças em conversas principalmente com o governo, sentimos uma preocupação com a questão social. As empresas também têm um discurso mais democrático... Mas há um dado concreto: a cada dez famílias, sete são expulsas do local da construção de barragens sem nenhum direito - ou seja, 70%. Podemos citar exemplos como o de Canabrava, Tucuruí, Campos Novos... Isso ocorre, primeiro, porque quem faz o estudo de impacto ambiental é o próprio grupo construtor da barragem, ou empresa contratada por ele. Os critérios utilizados, por sua vez, tendem a considerar atingido aquele que tem a documentação da terra, a comprovação da posse. E a grande maioria não tem, porque já foi empurrada para a barranca do rio. É o meeiro, o posseiro, o mineiro, o pescador...

Com relação à questão ambiental, temos o exemplo da barragem de Barra Grande, na divisa do Rio Grande do Sul com Santa Catarina. O estudo de impacto ambiental foi feito pela Engevix, que faz parte do grupo proprietário da empresa Desenvix, também dona de barragem. O estudo constatou que na região a vegetação existente era praticamente capoeira, e foi ao Ibama pedir a licença para instalação da barragem. No dia da vistoria, o Ibama, ainda no governo anterior, alegou um problema no avião e deu a licença sem fazer a vistoria. Quando a Baesa, consórcio formado por Alcoa, Camargo Correia, Votorantim, Bradesco e CPFL, ganhou a licitação, já tinha a licença. Construiu 80% da obra e foi ao lbama, já no governo Lula, para desmatar uma parte da área.

Os técnicos do Ibama constataram que lá estavam as últimas e mais ricas reservas de araucária do Brasil. Mais de 26% da mata a ser derrubada é de floresta primária, praticamente virgem, e outros 25% de floresta em bom estado de regeneração. O fato é que a barragem está 80% construída. O acordo agora mediado pelo governo federal é que empresa adquira outros 6 mil hectares de terra para reflorestar.

Cobramos do governo Lula que assuma essa responsabilidade pelo setor. Não podemos deixar a questão energética e as barrancas de rio nas mãos da iniciativa privada. É preciso que o Ibama e o Ministério de Minas e Energia assumam essa responsabilidade. Temos sentido boa vontade, pequenos passos, mas ainda é forte o poder econômico na barranca do rio. Isso que significa que o tratamento social e ambiental é muito mal resolvido.

Hoje, em quase todos os países do mundo, há grande ênfase nos projetos de desenvolvimento local. Como se dá, no Brasil, a relação entre os grandes empreendimentos hidrelétricos e o desenvolvimento local?
Há alguns poucos casos em que a população conseguiu de fato, com a barragem, um salto de qualidade. Onde havia uma organização mais forte obtivemos algumas conquistas do movimento, melhoria de vida para os agricultores.

De modo geral, quando a barragem é construída, dizem que a obra vem em nome do progresso, do desenvolvimento do país, que vai gerar emprego, melhorará vida das pessoas. Esse é o discurso. Mas o que observamos é a piora na vida das famílias porque foram expulsas. Tinham pelo menos um local para trabalhar, estavam inseridas na comunidade, e foram desalojadas. Quanto ao meio ambiente, hoje temos em torno de 34 mil quilômetros quadrados de terra, geralmente terra boa, bastante fértil, e muita mata que estão debaixo d'água. Chamamos de latifúndios de água.

Há ainda outra questão. Para a construção das barragens, as grandes empreiteiras acabam contratando mão-de-obra de fora. Na de Barra Grande, são 2.700 funcionários, dos quais 700 da região e 2 mil de fora. Muitos desses que vêm para a região acabam ficando, e não há como absorvê-los, não tem emprego necessário, não tem infra-estrutura de saúde, educação... Causa-se um problema social muito grande. E, pior, a energia que é ali produzida não fica na região. Vinte mil famílias de Tucuruí não têm energia elétrica.

A barragem quando vem tira gente, inunda estradas, fecha escolas, diminui o público na comunidade - então passa a não ter mais missa, o elo de vizinhança se quebra, um vizinho fica a três quilômetros, o outro a oito. Acaba com a comunidade, as festas tradicionais, o time de futebol.

Afirmei há pouco que muitas famílias ao redor da barragem acabam não tendo energia elétrica, mas quero lembrar que as muitas outras que têm não conseguem pagar o preço da energia elétrica. Recente estudo do Ilumina levantou o preço da energia em 31 países e classificou o Brasil como a quinta maior tarifa energética do mundo. Estou pagando em torno de R$ 420 o megawatt de energia. Em Paris pagam-se US$ 95.
Quanto a Alcoa paga?
A Alcoa paga US$ 27. Ou seja, o preço alto não é para todo mundo. Nos últimos dez anos, a energia residencial subiu 50% descontada a inflação, enquanto para a indústria teve um aumento real de 23%.

A Aneel cumpre seu papel regulador?
Para nós, a Aneel é uma agência que sempre esteve em defesa do interesse da iniciativa privada. Sempre teve em sua diretoria pessoas preocupadas em garantir esse modelo de privatização, esse modelo da energia como mercadoria, para obtenção de lucro. O MAB, sempre que recorreu à Aneel, não teve nenhum tratamento, digamos, respeitoso. No nosso contato, a Aneel não defende nem o que está escrito nos contratos de licitação, quando denunciamos alguma irregularidade.

Energia é um bem essencial para a vida humana. É estratégica para a soberania do país e para o modelo de desenvolvimento que o país quer adotar - por isso precisa ter o total controle do Estado. A Aneel foge um pouquinho dessa idéia.

Como evitar os problemas sociais e ambientais gerados pela construção de barragens?
Primeiro, é preciso uma ação mais forte do governo. Segundo, achamos que a discussão da questão social e ambiental tinha de contar com a participação da população, desde a construção da barragem, da discussão de critérios, regras, definições. E o MAB, que historicamente sofreu as conseqüências sociais e ambientais, incorpora também a luta ambiental. Os atingidos por barragem têm de estar no foco desse debate. Outra questão é que se tenha a presença do Estado no processo de fiscalização. Em muitas denúncias que o MAB leva para o próprio Ibama não se consegue ver uma ação forte do governo, para atuar na fiscalização e até na punição, se houver descumprimento do acordo.

Como estão sendo tratadas concretamente pelo MAB as questões emergenciais?
Temos mantido um debate freqüente com o governo federal, apesar do limite de ser ainda muito mais voltado à questão social do que a uma discussão mais ampla da questão energética. Temos dito que, em virtude do modo como foram construídas as barragens até hoje, há um passivo muito grande das questões sociais. Muitas daquelas famílias que são expulsas sem direito nenhum, outras mal indenizadas, estão sem o que comer, porque ao perder a terra perdem o trabalho, o sustento, e deixam de produzir alimentos para o Brasil. Essa é uma questão emergencial.

O segundo ponto emergencial diz respeito ao fato de que a grande maioria da população que vive na barranca do rio é analfabeta ou tem baixa escolaridade. Estamos fazendo convênios com o governo para levar programas de informação, cursos, e também um programa do Brasil Alfabetizado. Um terceiro ponto é levar energia elétrica às famílias que moram ao lado dos lagos, das barragens.

Outro ponto que faz parte dessa pauta de discussões é a necessidade de termos programas de desenvolvimento para a região atingida ou ameaçada por barragens. Precisamos de projetos de desenvolvimento de outra lógica. Não pode ser da lógica que venha de intelectuais, universidades. É preciso pensar com os próprios agricultores, diante dos problemas que eles vivenciam, e capacitá-los a buscar as soluções. O governo lançou o Programa de Desenvolvimento das Barrancas de Rio, o Prodesca, para informar e capacitar os agricultores, trabalhar junto com eles para que sejam sujeitos de um projeto de desenvolvimento. A execução desse projeto envolverá prefeitura, governos do estado e federal, BNDES, mas os sujeitos serão os próprios agricultores.

E, por último, como a grande maioria do nosso público é ligada à agricultura, precisamos de políticas públicas para desenvolver a pequena agricultura, que é característica das barrancas de rio e região. A principal política pública é um crédito para produção de alimentos, realização de benfeitorias na propriedade...

Vocês conseguiram a inclusão desse público alvo no Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar, o Pronaf?
Em parte. Nas últimas mobilizações conseguimos que os reassentamentos - famílias que foram atingidas por barragem e são reassentadas em áreas coletivas - passem a ter acesso à linha do Pronaf. Foi uma grande vitória.

O MAB tem uma leitura crítica a respeito da matriz energética e do modelo que o país utiliza hoje. Gostaria que nos falasse sobre o novo modelo energético proposto pelo governo Lula.
Estamos vivendo um momento em que o governo volta a falar em apagão, em ameaça de crise de energia, em novo modelo energético. O governo se movimenta para liberar a construção de barragens, o Congresso Nacional está discutindo a Parceria Público-Privada. A energia está na pauta do governo e da sociedade.

O novo modelo energético traz alguns pontos positivos, sendo o principal deles o fato de o governo assumir a responsabilidade por vários aspectos que cabiam à Aneel. Essa é a intervenção do Estado que cobramos. Mas ainda há limites. O primeiro é não mexer com a privatização da água e da energia. Na Parceria Público-Privada permanecem os grandes grupos econômicos construindo barragens, controlando a água e transformando a energia em mercadoria. Segundo, o novo modelo traz um grande incentivo para a hidreletricidade. É preciso intervir, no sentido de ter fontes diversificadas. O BNDES continua financiando projetos de barragens - mais incentivo aos grandes projetos de barragem. Terceira, o novo modelo energético praticamente não trata das questões sociais ambientais. A hidreletricidade é considerada barata, mas achamos que não estão incorporados os custos sociais e ambientais.

A quarta questão que nos preocupa é que, antes, ganhava a licitação da construção de uma obra a empresa que pagava mais. O novo modelo prevê que vai ganhar a licitação quem oferecer o menor preço de energia elétrica. É pouco provável que, para oferecer menor preço de energia elétrica, sejam diminuídos os custos, por exemplo, com cimento, ferro, engenharia, ou que os grandes grupos econômicos aceitem diminuir seu lucro. A tendência é diminuir nos custos sociais e ambientais.

Se a energia elétrica é tida como barata, há uma grande contradição, pois temos a quinta maior tarifa energética do mundo. O governo tinha de intervir, para baixar o preço da energia elétrica para aqueles que mais precisam e acabar com os subsídios das grandes empresas.

O governo propõe construir a Empresa de Pesquisa Energética, a EPE, que deverá assumir o estudo de impacto ambiental. É interessante, mas fica a pergunta: quem é o quadro de funcionários da EPE que vai fazer um estudo sério e acabar com essa fábrica de estudo e relatório de impacto ambiental que há hoje no Brasil? Em princípio não temos notícia desse quadro funcional. Provavelmente a EPE, terá de contratar as mesmas empresas que hoje fazem estudos ligados aos grupos construtores de barragens. O que teoricamente é um avanço precisará se concretizar na prática.

Hamilton Pereira é presidente da Fundação Perseu Abramo