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O governo Lula vem desenvolvendo uma política ousada em relação à utilização de software livre* na administração pública, a partir de uma visão estratégica e seguindo iniciativa do governo petista do Rio Grande do Sul.

Não é necessário ser leitor assíduo de publicações científicas para perceber que os chamados softwares livres vêm ganhando importante destaque no debate público em todo o mundo e no Brasil de forma especial.

As questões que se colocam são muitas: o que são os softwares livres? Qual o interesse teórico e prático deste tema para o debate contemporâneo da esquerda? Qual é a estratégia do Partido dos Trabalhadores no que diz respeito à formulação de um programa e de um “modo petista de governar” nesta área?

Em primeiro lugar, é importante compreender como se dá a influência da tecnologia da informação na sociedade atual – influência que está no centro das transformações ocorridas no capitalismo nas últimas décadas. Com o que Laymert dos Santos chama de aliança da tecno­ciência com o capitalismo – cuja expressão concreta é a internalização dos departamentos de pesquisa e desenvolvimento pelas grandes corporações –, a informação passou a ter valor no sentido econômico, a ser vista como um bem, e a ter centralidade no processo econômico1.

Nesse processo, a tecnologia da informação, em especial a indústria de software, configura um exemplo ideal do que Fernando Haddad chama de superindústria2em que a quantidade de trabalho socialmente necessário para reproduzir o programa tende a zero. Isso porque, como explica Marcos Dantas, o rendimento da informação (ao contrário do padrão de rendimento de outras mercadorias) é crescente e suas propriedades não se encontram nos suportes materiais que a contêm, mas na ação que proporciona3.

Percebemos então que a promessa do desenvolvimento tecnológico como progresso para a humanidade, embora ainda presente na indústria da mídia, revela-se um mito. Ao invés de diminuir, ampliou a distância entre os países, no processo que Laymert dos Santos chama de “acirramento da competição pelos recursos, pelo desenvolvimento tecnológico, pelos postos de trabalho, que a reestruturação produtiva foi tornando cada vez mais escassos”, na lógica competitiva e excludente do “ou eu ou você”, na qual quem sobrevive é quem se antecipa. O vertiginoso ritmo dos avanços tecnológicos provoca a “aceleração da aceleração” do tempo e faz com que, no limite, o que é atual já esteja obsoleto.

Coloca-se então para o capital a questão jurídica da apropriação da informação, cuja resposta é a constituição dos direitos de propriedade intelectual. No caso do software, ou programa de computador, o enquadramento jurídico se dá no ramo do chamado direito autoral, como a produção literária ou musical, por exemplo. Ele é considerado uma obra do intelecto humano, portanto de propriedade intelectual de quem o desenvolveu (um “direito do autor”). Por isso, quando “compramos” um software, estamos na realidade adquirindo o direito (uma licença) de utilizar aquela cópia do programa. Esta licença é – no caso do software proprietário – extremamente restritiva, pois impede a realização e distribuição de cópias, bem como a modificação do programa, que tem o código-fonte (espécie de DNA) fechado, secreto.

Esse modelo, que se consolidou nos anos 1990 e teve como pioneira e líder incontrastável a gigante norte-americana Microsoft, tem uma função clara no atual padrão hegemônico de desenvolvimento tecnológico, em que o lucro é obtido por meio da venda de licenças de uso do software ao usuário. Seu argumento central é de que o segredo sobre a tecnologia e a lucrativa cobrança pela licença de propriedade intelectual do produto são condições fundamentais para a inovação tecnológica.

Se de um lado a pirataria de softwares proprietários (cópia e distribuição não- autorizadas) constitui um crime, de outro teve um papel fundamental na expansão do mercado consumidor dos monopólios. Isso porque, se tivessem de pagar o preço oficial da licença, jamais tantas pessoas teriam condições econômicas de utilizar seus programas. Mas, agora que o mercado está perfeitamente dominado, a tolerância acabou. A repressão à pirataria tornou-se intensa e está pautando como nunca as relações internacionais entre os países.

Um modelo alternativo

Surpreendentemente, porém, foi justo na área da tecnologia da informação, vitrine da “globalização”, que se criou um modelo alternativo de desenvolvimento tecnológico, baseado na transparência e não no segredo, no compartilhamento e não na competição, o qual mesmo assim (ou talvez por isso mesmo) alcançou um grau de qualidade técnica igual ou superior aos produzidos no modelo proprietário. É o modelo do software livre.

Richard Stalmann, o programador do MIT que iniciou o chamado projeto GNU, conta que no início não se usava o termo “software livre”, pois os programas eram livremente compartilhados pelos desenvolvedores no mundo acadêmico. Até que a lucrativa idéia de manter seus códigos em segredo se consolidou.

O que caracteriza um software como livre é no fundo seu aspecto jurídico, que comporta quatro liberdades (cessão, distribuição, utilização e alteração) e uma restrição (não proibir aquelas liberdades). Essas regras estão especificadas em uma licença de uso chamada GPL (General Public License), que constitui o modelo do “copyleft” – expressão surgida de uma bem-humorada brincadeira com a expressão “copyright”, relacionada ao “direito do autor”. No modelo de negócios do software livre, o lucro é principalmente obtido por meio do suporte técnico ao usuário, e não na comercialização da licença de uso.

A maior responsável pelo sucesso e qualidade do software livre chama-se “comunidade”. Este nome, bastante genérico, é utilizado para designar os desenvolvedores e usuários que trabalham de forma colaborativa ao redor do mundo, pessoas, no dizer de Stalmann, “que amam programar e gostam de ser hábeis e engenhosas”. Este é o conceito correto de “hackers” – e não o que costumamos ouvir na mídia, pois quem utiliza seus conhecimentos de informática para prejudicar, invadir a privacidade e dar golpes pela rede viola a ética hacker: são os “crackers”.

A política do governo Lula

Teóricos como Celso Furtado, que analisaram a relação entre centro e periferia no capitalismo mundial, nos mostraram que o subdesenvolvimento não é um “estágio” para o desenvolvimento, mas uma condição estrutural determinada por diversos mecanismos de manutenção e atualização da dependência, entre elas a tecnológica.

Um país subdesenvolvido apresenta, entre outras características, a dependência do consumo de tecnologia produzida nos países desenvolvidos. Esse processo é gritante na área de software. O Brasil enviou ao exterior em 2002 mais de US$ 1,2 bilhão como pagamento por licenças de uso de programas de computador, tendo exportado US$ 100 milhões. Vale destacar que esse número se refere apenas ao gasto com softwares e é muito superior ao orçamento de boa parte dos órgãos públicos brasileiros. Não se sabe ao certo quanto desse valor corresponde à compra de licenças de uso por parte da administração pública, pois até o início de 2003 eram muito comuns as compras de hardware com o software embutido, prática que foi condenada pelo Tribunal de Contas da União.

No que diz respeito ao comportamento dos governos anteriores a Lula diante da tecnologia da informação, a idéia de que o país seguia o exemplo das grandes potências não se aplica: a Casa Branca, o FBI, a Bolsa de Valores de Nova York e a Receita Federal dos Estados Unidos (para citar alguns exemplos domésticos do país da Microsoft) utilizam softwares livres, enquanto a maioria dos órgãos públicos do Brasil paga (e caro) para rodar o Windows4. A administração de Munique, na Alemanha, decidiu recentemente utilizar softwares livres, mas no Brasil, com raras exceções, as pequenas e grandes prefeituras gastam o que não têm para rodar o Windows.

Uma das razões pelas quais esses órgãos de governo adotam o software livre é estratégica: a segurança. Os softwares livres, em virtude do código-fonte realmente aberto, permitem ao administrador ter o controle da tecnologia e auditá-la, o que é fundamental em sistemas como os da Receita Federal e de votação eletrônica. Além disso, são menos vulneráveis ao ataque dos vírus que aterrorizam o Windows.

O governo Lula vem desenvolvendo uma política extremamente ousada e acertada no que diz respeito à utilização de software livre na administração pública, a partir de uma visão estratégica de país e seguindo a linha iniciada pelo governo petista do Rio Grande do Sul. O Executivo já deixou claro que não está defendendo um produto, mas um modelo, que abrange a independência dos fornecedores e o compartilhamento de conhecimento por parte da administração pública. A mudança começou com a criação do Comitê Técnico de Implementação do Software Livre (um dos que compõem o Governo Eletrônico), coordenado pelo Instituto Nacional de Tecnologia da Informação, ligado à Casa Civil da Presidência da República.

A imprensa já percebeu e vem dando destaque às medidas do governo. Uma delas se baseou na idéia (aparentemente simples) de que a administração pública não tem o direito de exigir que o cidadão utilize este ou aquele sistema operacional para se relacionar com ela. Um exemplo é que, para declarar o Imposto de Renda pela internet, o cidadão era obrigado a utilizar o Windows, da Microsoft. Este ano, a declaração foi entregue em um sistema compatível com as várias plataformas operacionais.

A política industrial apresentada pelo governo Lula centra-se no oferecimento de estímulos a quatro setores: softwares (incluindo política para o software livre), bens de capital, semicondutores e fármacos – segmentos com papel central no processo de inovação e na difusão do progresso técnico. Como noticiou recentemente o jornal Financial Times, ao menos cinco ministérios, além do Serpro (empresa de processamento de dados ligada ao Ministério da Fazenda), migrarão para o software livre. O objetivo também é informatizar milhares de escolas públicas brasileiras com esse sistema, e a Finep e o CNPq lançaram editais destinando ao todo R$ 6 milhões para o fomento a pesquisa e desenvolvimento em software livre. Além disso, como capacitação tecnológica não se faz sem treinamento, ocorreu na última semana de abril uma das maiores atividades de capacitação técnica já realizadas por um órgão público, com a participação de mais de 2 mil servidores públicos.

O Poder Legislativo aderiu ao movimento e criou uma Frente Parlamentar Mista no Congresso Nacional, além de organizar recentemente um concorrido seminário sobre o tema. Na política externa, uma defesa firme da utilização de softwares livres foi feita pelo embaixador Samuel Pinheiro Guimarães na Cúpula Mundial sobre Sociedade da Informação, realizada em dezembro de 2003 na cidade de Genebra: nosso governo foi à Cúpula dizer que os países subdesenvolvidos não querem entrar na sociedade da informação como meros consumidores, mas como desenvolvedores de tecnologia.

Inclusão digital

Menos de 10% da população brasileira tem acesso à internet. Por isso, a inclusão digital é aspecto importante da inclusão social e deve ser encarada como política pública.

Incluir uma boa parcela da população brasileira no mundo digital, por meio da utilização da tecnologia de determinada empresa, nada mais é que ampliar o mercado consumidor futuro desta empresa e, portanto, sua margem de lucro. Do ponto de vista de projetos governamentais de inclusão digital, utilizar dinheiro público para treinar novos consumidores do maior monopólio mundial nada tem de emancipador ou de ético.

Nesse ponto, as empresas de software proprietário têm um discurso extremamente sedutor mas inconsistente: argumentam que a inclusão digital deve ser feita com o sistema que o mercado usa, pois de nada adianta alguém aprender no GNU-Linux e depois não conseguir emprego. Isso é uma falácia, rebatida pela experiência realizada pelos Telecentros na capital paulista. Ali não se aprende a mexer no Microsoft Word, mas sim o conceito de editor de texto. Não se aprende a mexer no Microsoft Excel, mas sim em vários tipos de planilha de cálculo. Não se usa o Internet Explorer, mas diversos navegadores. Esse aprendizado é muito mais eficiente e qualitativo que o adestramento da cultura do mero “copiar e colar”.

A experiência de São Paulo mostra outro dado importante. Dos 107 Telecentros implantados na periferia da cidade, se fossem utilizados softwares proprietários em suas máquinas, pelo menos trinta não seriam viabilizados por conta do custo das licenças.

Outro argumento tentador é a doação de licenças por parte dessas empresas para as redes de computador nas escolas, por exemplo. Pode parecer vantajoso aceitar essa doação, mas aqui devemos aplicar uma advertência repetida à exaustão no mundo dos negócios: “Não existe almoço de graça”. Aceitar uma doação que a qualquer momento pode não ser reiterada atende ao interesse de marketing da empresa, e não ao interesse público.

Sejamos sinceros: há motivo real para o Estado brasileiro colocar num bolsão de miséria de nosso país, em que as pessoas ainda não estão adestradas a esta ou aquela tecnologia, o sistema de um monopólio mundial de software?

Modo petista na área tecnológica

Aceitando a premissa de que vivemos na sociedade da informação, compreender o mundo em que vivemos e formular um programa para sua transformação é uma tarefa que exige da esquerda amplo debate e atuação ousada diante do papel atual da tecnologia no desenvolvimento capitalista e, principalmente, do papel que queremos que ela desempenhe na democratização de renda, poder e conhecimento.

Por isso, é fundamental que incorporemos a nossas preocupações programáticas a necessidade de “politizar as novas tecnologias”, usando mais uma vez as palavras de Laymert dos Santos. A tecnologia não é neutra nem é assunto para técnico ou para a tecnocracia apenas. É tema para o debate público, pois envolve escolhas que têm conseqüências para os recursos públicos e a capacitação tecnológica de nosso país.

O movimento pelo software livre não partiu de nenhum governo ou partido, mas da sociedade civil, mais especificamente da comunidade de seus usuários. Trata-se de um movimento baseado em princípios profundamente libertários, como o compartilhamento do conhecimento e a solidariedade praticada pela inteligência coletiva conectada na internet5. E a esquerda (seus partidos, sindicatos, organizações e movimentos sociais), exatamente por seu programa de transformação, precisa se vacinar contra a “captura” de seus governos pela lógica do software proprietário. Do contrário, irá corroborar (de uma forma high-tech) o secular patrimonialismo brasileiro, fundado na destinação dos fundos públicos para o benefício privado.

Somos um país pouco informatizado. Se é um consenso que precisamos informatizar o Brasil, acreditamos que esta é uma oportunidade única de realizar uma grande campanha nacional de inclusão digital e tornar nosso país uma referência mundial na luta pelo uso do software livre. O governo Lula está trilhando um caminho ousado e correto. Cabe agora aos governos estaduais, às assembléias legislativas, às prefeituras, às câmaras municipais, aos mandatos seguir o exemplo.

*Nota dos autores: Este artigo foi redigido em um software livre (editor de texto OpenOffice Writer, rodando sobre o Linux)

LINKS INTERESSANTES

Projeto Software Livre Brasil

Free Software Foundation
Software Livre no Governo Federal
Projeto Telecentros – Prefeitura de São Paulo

Simão Pedro Chiovetti é sociólogo, deputado estadual (PT-SP), membro da Comissão de Cultura, Ciência e Tecnologia da Alesp e coordenador da Frente Parlamentar Paulista pelo Uso de Softwares Livres na Administração Pública

Livia Oliveira Sobota é pesquisadora do Instituto de Direito ao Desenvolvimento e Políticas de Emancipação Social (Idepes) e membro do Projeto Software Livre – São Paulo