Muitos são os equívocos e grande é a manipulação em torno do tema reforma da previdência, que vem opondo os servidores públicos aos trabalhadores formais do regime geral de previdência e apresentando como antagônicos os direitos individuais e os direitos coletivos e universais da seguridade social. Pretende-se aqui contribuir para a diluição dos falsos conflitos, dirigindo o leitor para o tema central que é o desafio de promover o avanço social e a redistribuição virtuosa no interior da maior fronteira de política social brasileira, estabelecendo rotas de convergência para interesses tão diversos.
Previdência e seguridade social
A previdência social brasileira centra-se no regime geral (RGPS), programa diretamente contributivo por parte de empregados e empregadores, voltado à proteção social ao segmento formal do mercado de trabalho. A incidência sobre a folha de salários permite reproduzir na inatividade a hierarquia salarial dos trabalhadores em sua vida ativa, cobrindo os riscos essenciais de doença, invalidez, velhice e morte. Com a crescente importância dos rendimentos do trabalho sem assalariamento formal, a representatividade da folha como expressão do mundo do trabalho tornou-se decrescente, mantendo-se, entretanto, como referência no RGPS para a gradação das aposentadorias e pensões.
A previdência rural também faz parte do RGPS, garantindo aposentadorias e pensões no valor do salário mínimo aos trabalhadores rurais informais, com contribuição indireta baseada na primeira comercialização da produção rural. Também são contabilizados no RGPS os benefícios de renda mensal vitalícia a idosos que tenham contribuído para a previdência social, sem completar os requisitos de acesso ao programa pleno de benefícios.
A Constituição de 1988 ampliou o conceito de previdência para seguridade social, combinando os direitos dos contribuintes do RGPS aos direitos de cidadania, garantindo benefícios em dinheiro e acesso a serviços de natureza universal e/ou redistributiva, nos campos de previdência, assistência e saúde.
A diversificação de fontes de financiamento associada à ampliação da proteção social trouxe novas contribuições sociais para materializar tais benefícios como a renda mínima aos idosos, as ações e serviços de saúde, de forma independente de contribuição individual à previdência. O destaque dos recursos e ações da seguridade em orçamento separado do Orçamento Geral da União expressava sua precedência em relação às demais rubricas orçamentárias.
Na concepção da Constituição de 1988 os direitos dos contribuintes e os direitos dos cidadãos foram integrados, visando a redistribuição de renda e de serviços para o segmento populacional de inclusão social mais precária, sem prejuízo das aposentadorias e demais benefícios que representam os direitos dos trabalhadores em atividade.
Por obra da política econômica dos anos 90, que sistematicamente se apropriou de parte de seus recursos, o Orçamento da Seguridade Social (OSS) nunca se consolidou de modo a garantir a integralidade das ações pretendidas nas vertentes contributiva e redistributiva da proteção, nos campos da saúde, da previdência e da assistência social.
Excetuando-se a contribuição sobre a folha de salários, diretamente coletada pelo órgão arrecadador da previdência, as demais contribuições são administradas pela Secretaria da Receita Federal. Gera-se assim, pela duplicidade de comando sobre a administração da arrecadação da seguridade, uma falsa noção de insuficiência de recursos, dado que grande parte das necessidades de financiamento do OSS é coberta por "transferências" do OGU ao OSS, interpretadas erradamente como déficits da seguridade. A confusão aumenta com a crescente perda de contorno entre os dois orçamentos. Hoje, o OGU chama-se orçamento fiscal e da seguridade, assinalando tendência de "integração" e de diluição da destinação original dos recursos.
Recursos e déficit
Se considerarmos a soma dos recursos alocados ao OSS não há déficit corrente da seguridade ou mesmo da previdência. Ao contrário, por meio de sucessivos mecanismos de contingenciamento da receita do OSS, consagrou-se a prática de represamento dos recursos da seguridade. Na execução orçamentária de 2002, por exemplo, houve superávit de cerca de R$ 22 bilhões. Ao longo dos últimos anos, a receita da seguridade tem sido mais que suficiente para financiar os gastos do regime geral de previdência, os de assistência social, os pagamentos dos inativos da União (Executivo, Legislativo e Judiciário), o orçamento do Ministério da Saúde e ainda gerar a metade do superávit primário do governo federal.
Esta constatação não invalida a necessidade de minimizar o desequilíbrio projetado para o RGPS, ou de fundar uma base de financiamento mais sólida para o regime próprio dos servidores públicos. Mas certamente o desempenho da seguridade social não contribui para agravar a apregoada fragilidade da economia brasileira ou aumentar o "risco Brasil".
Ao contrário, a necessidade de recursos para a geração do superávit fiscal tem se apoiado no contingenciamento do OSS e na ampliação das alíquotas das contribuições sociais, para compor as metas acordadas com os credores internacionais. A elevação da carga tributária brasileira ao longo da década de 90 para cerca de 34,6% do PIB em 2002 deveu-se ao aumento destas contribuições sociais, criadas e ampliadas em nome da seguridade social, e apenas parcialmente destinadas às finalidades de gasto deste orçamento.
RGPS
No RGPS, a crescente insuficiência da folha de salário como base de financiamento da previdência deve-se principalmente ao crescimento da informalização do trabalho, às baixas taxas de crescimento econômico e ao agravamento do desemprego. O desequilíbrio demográfico/atuarial do RGPS foi em parte resolvido com a Emenda Constitucional nº 20, de 1998, que substituiu o tempo de serviço pelo tempo de contribuição, extinguiu as aposentadorias proporcionais, introduziu a exigência de idade mínima e alterou as regras de correção de benefícios. A posterior implantação do fator previdenciário buscou estabelecer uma correlação entre contribuição e benefício, na determinação dos valores pagos. Os salários de referência foram defasados em relação ao salário mínimo, diminuindo ainda mais o teto de benefícios.
Assim, o regime geral foi "saneado", por meio do endurecimento das condições de acesso aos benefícios e da imposição de maiores sacrifícios aos trabalhadores ativos. Houve também um reforço do direito individual relativamente ao direito coletivo, pela substituição do tempo de serviço pelo tempo de contribuição, esgarçando ainda mais a solidariedade social, tão necessária como difícil neste Brasil das desigualdades.
No diagnóstico atual, os "déficits" operacionais de 1,2% do PIB na previdência social são explicados pela crescente taxa de informalização da economia, que altera a relação entre os contribuintes e beneficiários do sistema, pela renúncia fiscal, pelo desemprego e pelas baixas taxas de crescimento. O hiato de recursos, dito déficit da previdência, entretanto, só se sustenta por uma visão não integrada das fontes de financiamento da seguridade social, da qual a previdência relutantemente faz parte.
A decomposição dos benefícios pagos pela previdência revela as fontes do desequilíbrio em suas contas. Os pagamentos à clientela urbana (benefícios de prestação continuada e acidentes de trabalho) acumulam um superávit de quase R$ 3,3 bilhões, que complementa o financiamento do regime rural, significativamente deficitário. Entretanto, existem, no caso dos rurais, vazios de arrecadação a serem explorados, nos empreendimentos agrícolas de alta produtividade, sem contar que os recursos da seguridade são amplamente suficientes para cobrir esta lacuna.
Esta é também a situação dos benefícios de assistência social administrados pela previdência, que obviamente requerem fontes de financiamento de origem tributária, dada sua natureza universal e redistributiva, e que nada têm com o regime previdenciário no seu sentido estrito. A despesa com assistência, da ordem de R$ 4,4 bilhões, é coberta com recursos administrados pela Receita Federal, mas que pertencem à seguridade social.
De fato, o OSS financiou em 2002 gastos assistenciais e complementou a necessidade de recursos do Prorural com transferências de R$ 17 bilhões. As considerações anteriores permitem discriminar entre tais transferências, inerentes a um regime que combina direitos individuais e coletivos, financiados por impostos e contribuições, e déficits, na verdade, inexistentes.
Quanto ao mérito e impacto da previdência social, os dados são auto-explicativos. Em 1999, 34% dos brasileiros viviam abaixo da linha de pobreza. Se não fosse a previdência, este percentual seria de 45,3%, ou seja, a previdência foi responsável por uma redução de 11,3 % no nível de pobreza, o que significa que 18,1 milhões de pessoas deixaram de ser pobres. O grau de pobreza entre os idosos é substancialmente inferior ao da população mais jovem. Caso não houvesse as transferências previdenciárias, a pobreza entre os idosos triplicaria.
Estudos recentes provam que as pensões e aposentadorias do Prorural estimularam o desenvolvimento da agricultura de pequena propriedade. De fato, os benefícios previdenciários criaram uma espécie de seguro agrícola para tais estabelecimentos. O que reforça o impacto dos benefícios previdenciários para toda a economia rural.
A previdência dos servidores
Os servidores públicos pertencem a um regime próprio de previdência social, incipiente antes dos anos 90, dado o pequeno número de servidores estatutários. Com a instituição do Regime Jurídico Único, os trabalhadores do setor público, em sua grande maioria celetistas, passaram a ser regidos pelo estatuto do funcionalismo.
Desde então, três fatos relevantes e totalmente independentes de decisão do funcionalismo contribuíram para desequilibrar a relação entre ativos e inativos, particularmente grave no regime de repartição simples, ao qual foi dada continuidade. O primeiro, a omissão do Estado, que contribuía com a maior parte do financiamento dos servidores no regime geral e que nada vem aportando ao financiamento do regime próprio, notadamente no âmbito federal. Em segundo, a não constituição, no governo da União, de regime de previdência complementar, administrado pelo setor público, apesar de inúmeras sugestões neste sentido. Em terceiro, a política de recursos humanos do governo federal, de não renovação de quadros e de terceirização e, mais recentemente, de aplicação das restrições da lei de responsabilidade fiscal quanto à participação da folha de pessoal na despesa do governo.
Assim se explica o desequilíbrio na relação entre ativos e inativos ou entre contribuições e benefícios no regime próprio dos servidores públicos, apesar da contribuição de 11% sobre o salário total dos servidores ativos, bastante mais elevada que a contribuição dos trabalhadores do regime geral com salários superiores ao teto. A simples realização de concursos represados devolveria ao sistema público grande parte do equilíbrio na relação entre ativos e inativos ou entre contribuições e benefícios. O reconhecimento dos aspectos conjunturais do desequilíbrio atual é importante para não precipitar o governo em opções de reforma de difícil sustentação fiscal no curto e no médio prazos e sem garantia de resultados satisfatórios, quer do ponto de vista dos beneficiários, quer do ponto de vista da sustentabilidade intertemporal do novo regime.
A Emenda Constitucional nº 20, de 1998, não tratou os servidores públicos de forma radical, mantendo o regime administrativo com ajustes para os atuais servidores ativos e inativos e facultando a instituição de um regime híbrido, administrativo e previdenciário, para os futuros servidores. Nesta linha conciliatória, algumas medidas poderiam ser tomadas para atenuar o descompasso atual entre os dois regimes1. A utilização do RGPS como regime básico pode dar maior organicidade aos dois sistemas, além de ser mais equânime. A formulação de uma previdência complementar pública ligada ao financiamento da infra-estrutura, que não jogasse a poupança dos servidores na rota da especulação, típica dos fundos de pensão da América Latina, também seria recomendável.
Seja qual for o rumo da reforma, é preciso superar as abordagens centradas no ataque a direitos (ditos privilégios), bem como a cegueira de uma visão fiscalista incoerente com as próprias projeções governamentais de restrição ao aumento de gastos. É importante levar em conta as implicações negativas dos custos adicionais de curto e médio prazos decorrentes da instituição de previdência complementar que decorrem da redução das contribuições dos servidores apropriadas pelo Tesouro e da exigência de desembolso dos governos para os fundos complementares.
Uma reforma centrada na criação de mercados para a previdência privada trará de volta a privatização dos lucros e a socialização dos prejuízos, que tantas perdas já trouxe ao país. Essencial, para um governo que tem o claro propósito de priorizar o social, é manter as condições de governabilidade no plano fiscal e não ampliar os custos de transição de forma insustentável para a gestão orçamentária de curto prazo.
Se o objetivo é a redistribuição e o estreitamento das diferenças entre os dois regimes, há que se ter claro que a sua unificação ou das regras de aposentadoria exige correções do Regime Geral, inclusive quanto ao teto. De outra parte, o fim da paridade ou da integralidade entre salários e benefícios deve pressupor previdência complementar pública para servidores e trabalhadores em geral. O que implica considerar a criação de um fundo patrimonial para investimentos públicos, de baixo risco para os trabalhadores.
A rota de mudança não é trivial. É preciso não inviabilizá-la em nome de falsas questões e velhos preconceitos.
Sulamis Dain é professora titular do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro