Nacional

Realizada nove anos atrás, a primeira Caravana da Cidadania reproduzia a emblemática rota de migração da família de Lula entre Garanhuns, em Pernambuco, e o litoral paulista, no "Sul Maravilha". Como tantas vezes na história do PT, a trajetória de Lula foi o esteio para a consolidação de uma forma completamente nova de fazer política. No ano passado, outras caravanas revelaram novos retratos da realidade brasileira

Em 2001, temas tão diversos como a agricultura familiar, a crise energética e o combate à fome foram o mote de três viagens, que levaram Lula, a equipe do Instituto Cidadania, sindicalistas, políticos, técnicos e jornalistas a cerca de cinqüenta municípios em oito estados. Pelo caminho, encontraram gente ansiosa por reclamar atenção, compartilhar experiências e, para ser redundante, exercer sua cidadania.

Furnas

A Caravana em Defesa de Furnas partiu no dia 3 de julho. Seu objetivo inicial estava conectado à emergência da crise energética, poucas semanas antes. O governo na época não se acertara nem quanto às providências a tomar, nem quanto às explicações devidas à sociedade brasileira - a declarada "surpresa" de FHC com o desastre ainda ressoava na opinião pública. E já a insistência na tese de falta de chuvas como justificativa se firmava como desculpa esfarrapada.

A viagem serviria para analisar in loco a situação de uma hidrelétrica emblemática - Furnas, a primeira grande usina brasileira -, chamando a atenção para a necessidade de rever imediatamente os graves equívocos da privatização do setor. Acompanharam-na os deputados federais da bancada petista mineira Maria do Carmo Lara, Nilmário Miranda, Paulo Delgado, Tilden Santiago e Vírgilio Guimarães.

Antes de chegar aos municípios do Sul mineiro, propriamente à margem da represa de Furnas - são 34, conhecidos como lindeiros -, a caravana passou seu primeiro dia por Ibiraci, Cássia, Pratápolis, Itaú de Minas e Passos.

Mal começaríamos, e a realidade, sem os filtros da mídia, já se mostrava desconcertante. Nas primeiras conversas públicas, com autoridades e a população, deparamo-nos com faixas, discursos e documentos chamando a atenção para mais uma das tantas crises brasileiras, esta quase imperceptível para a maior parte do país, a do café, produto que, graças aos seus tradicionais bons preços no mercado internacional, foi pilar da exuberância econômica da região (juntamente com o baixo nível de concentração fundiária).

Para se ter uma idéia, a saca do café já esteve cotada a mais de US$ 150 e atualmente está abaixo de US$ 50. Segundo o agrônomo José Graziano da Silva, professor da Unicamp e membro da equipe do Instituto Cidadania, há consenso quanto à causa do problema. Para variar, foi uma medida governamental, o chamado plano de retenção, que deixou os cafeicultores em maus lençóis, ao impedi-los no ano passado de exportar 20% da sua produção, ou 23 milhões de sacas, a partir de um acordo internacional não cumprido. A produção mundial cresceu, houve superoferta e, em vez de os preços serem preservados, eles despencaram. O Brasil deixou de faturar pelo menos US$ 400 milhões e abriu espaço para os concorrentes, como o Vietnã. Segundo Graziano, o produto nacional enfrenta ainda o problema da falta de investimento em qualidade e de intervenção pública na abertura de mercados.

À tarde, tivemos o primeiro contato com o rio Grande, ainda fora da área do lago, alguns quilômetros abaixo da barragem, em Passos. Ali, a seca se dá conforme o ciclo habitual da natureza. E o que mais preocupa é a degradação ambiental decorrente do despejo do esgoto de quase 3 milhões de habitantes de 141 municípios. À noite, em audiência com mais de quinhentas pessoas, uma exposição do engenheiro Fábio Resende, funcionário aposentado de Furnas, hoje integrante da ONG Ilumina, antecipou a extensão do desastre que veríamos pela frente.

Rumamos para Capitólio, margeando o lago. Entre pontes, morros, escarpas e longas extensões de pasto onde antes havia água, pudemos vislumbrar os efeitos da "crise de energia" para cerca de 750 mil pessoas que vivem à beira de Furnas.

O reservatório atinge a cota máxima com 768 metros acima do nível do mar. À época da nossa visita, estava a perigosos 4 metros dos 750 que são o mínimo para a usina operar. Correspondia a apenas 15% da capacidade total do lago. Uma situação anormal, nunca vista nos quase 40 anos de operação da usina, resultado da superexploração do lago. Furnas esteve operando até suas oito turbinas ao mesmo tempo. Nos meses seguintes, a água chegaria à cota de 751 metros, interrompendo parcialmente o funcionamento das máquinas. Hoje, depois das chuvas de verão, está subindo até 0,2 metros por dia, e deve chegar a 763 até março. A sociedade civil da região propõe que o limite mínimo de esvaziamento seja a 762 metros.

O ressurgimento das terras submersas aparece como um requinte de crueldade para uma população que, uma geração atrás, entre 1959 e 1964, viu as águas do lago cobrir as terras mais férteis do vale, onde se concentravam milhares de pequenas propriedades. Alguns municípios tiveram quase metade de sua área engolida - incluindo parte das cidades de Fama e Guapé.

No plano econômico, a região só superaria plenamente esta situação dramática com a retomada do crescimento a partir do turismo, quase duas décadas depois. Furnas se tornou o "Mar de Minas", e surgiram centenas de empreendimento nos cerca de 3500 km de praias do lago. Até uma consultoria contratada pelo governo incentivou os investimentos.

Após a recepção em Capitólio, fomos conhecer o mais caro empreendimento de toda a região, as "Escarpas do Lago": setecentas casas do condomínio de luxo que empregava mil dos 8 mil habitantes da cidade e na época, em plenas férias de julho, estava quase deserto.

De lancha, uma parte dos integrantes da caravana pôde observar mais de perto as conseqüencias do esvaziamento, e de todos nos encontramos na barragem, onde o gerente da usina, Joaquim Mateus de Sene, apresentou os equipamentos de Furnas e contou um pouco da sua história.

Furnas foi construída no governo Kubitschek.Primeira das megausinas que constituiriam no Brasil o maior parque hidrelétrico do mundo, foi também o ponto de partida para a criação da Furnas Centrais Elétricas S/A, que hoje, em onze unidades (sendo duas termelétricas), gera 43% de toda a energia consumida no país. Como disse recentemente um dos dirigentes da estatal, é "a Petrobrás elétrica."

Contrariando os esteriótipos que a propaganda oficial fixou nos últimos anos, Furnas é lucrativa, tem reconhecida competência tecnológica (solapada pela incompetência dos recentes gestores públicos, diga-se de passagem), saúde financeira invejável e preços extremamente competitivos - até R$ 10 o MWh, a metade do que consegue Itaipu, por exemplo.

Continuando o périplo por Formiga e Alpinópolis, com uma passagem de tom turístico pelo Monte das Oliveiras, réplica dos cenários dos Evangelhos que é orgulho e esperança da população local de reerguer a economia da região em aliança com a celebração de sua fé, atraindo os romeiros. Estivemos também em Carmo do Rio Claro, município que tem a maior área alagada por Furnas (212 km2) e, devido à topografia mais amena, viu com o esvaziamento as águas se afastarem até mais de 10 km.

Passamos em Alterosa e no dia seguinte voltamos à temática do café em Varginha, do prefeito petista Mauro Tadeu Teixeira, que cirou até um órgão municipal só para o produto, a Secretaria do Café. O turismo ali aposta na notoriedade do ET local, que já virou souvenir e símbolo da cidade.

Depois da pequena Fama (3 mil habitantes), cujo nome, descobrimos se justifica pela glória do Carnaval local - antes do esvaziamento a festa atraía até 20 mil pessoas anualmente - , chegamos a Alfenas, onde se deu o mais importante debate da caravana, com a presença de organizações da sociedade civil da região. O Sindicato dos Produtores Rurais sediou o encontro, que contou ainda com a participação de ONGs e de prefeitos da Associação de Municípios do Lago de Furnas, a Alago, bem como militantes partidários e sindicalistas locais.

Vozes tão diversas tinham um tom de perplexidade a uni-las. "Vivíamos na prosperidade. Nunca sentimos necessidade de nos organizarmos, até que, em 1998, as águas do lago começaram a desaparecer. Hoje, nem sabemos se elas vão voltar", disse Eduardo Engel, representante dos Usuários do Lago de Furnas, lembrando que, em consultas à Agência Nacional de Águas, em Brasília, os representantes da região foram informados que há interesse  de setores do agrobusiness em até mesmo esvaziar o lago completamente para viabilizar o transporte de grãos e cana em barcaças na hidrovia do Tietê.

O presidente da ONG Grito das Águas, Leonardo Morelli, apontou que só em 2000 estiveram na região para examinar o caso dois ministros: Carlos Melles, de Esportes e Turismo, e José Sarney Filho, do Meio Ambiente. "Eles sabiam da gravidade do caso e nada fizeram. São cúmplices". "Acreditamos na lei, e esse governo está aí para comprovar que era tudo mentira", completou.

No sábado, passamos por Serrania, e depois Machado, onde fomos recebidos pelos grupos de congada. De lá, seguimos para as três últimas cidades da viagem, já nos afastando do lago de Furnas, mas não do nosso tema. Entre Pouso Alegre e Poços de Caldas enfrentamos a BR-459, estrada arruinada pelo descaso federal.

Chegamos então à cidade administrada por Paulo Tadeu, do PT. A caravana terminaria apenas em Andradas, do também petista Wilkye Veronezi, mas em Poços de Caldas, o trabalho do Departamento Municipal de Eletricidade (DME) foi o fecho de ouro a nosso itinerário de reflexão em torno da questão energética.

Com quatro usinas de pequeno porte, o DME gera atualmente 60% da energia consumida no município - em dois anos, com investimentos em fase final, serão 100%. O modelo dá tão certo que o DME hoje é sócio de empresas privadas na construção de usinas hidrelétricas até em outros estados. A outra única cidade brasileira com uma experiência semelhante, Ijuí (RS),teve assessoria de Poços de Caldas no projeto.

Visitamos duas hidrelétricas do município: Antas I, a mais antiga, com cerca de 80 anos de funcionamento, e Antas II, a mais recente. Esta foi construída de forma a gerar o mínimo impacto ambiental, outra vantagem das pequenas usinas. Segundo o engenheiro Moares, atualmente, só em Minas Gerais há cerca de setecentas hidrelétricas como essas desativadas.

Hoje a matriz energética nacional está consolidada. Mais de 90% de nossa eletricidade são produzidos pelas grandes usinas. Mas, segundo Fábio Resende, do Ilumina, que acompanhou toda a viagem, "a busca por alternativas com menor impacto ambiental ou destinadas a localidades mais remotas, que não desfrutam das redes de distribuição, ainda podem contar com exemplos como o de Poços".

Agricultura familiar

A Caravana da Agricultura Familiar iniciou-se ainda no mês de julho, dia 25 - data em que se comemora no Sul o Dia do Colono -, e foi até 3 de agosto. Desta vez, embora novamente seguíssemos pelo caminho o rastro de reclamações em relação à atuação do governo federal, nossa motivação era, primordialmente, conhecer as boas experiências de um setor da economia rural emergente enquanto categoria sindical: a agricultura familiar. Convidados pela recém-fundada Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar da Região Sul, a Fetraf-Sul, percorremos 22 cidades em nove dias, cada um deles dedicado a um tema específico do setor.

Além de divulgar as iniciativas das administrações populares e das organizações sociais ligadas à agricultura familiar, o objetivo era incentivar a organização dos agricultores em cooperativas, associações e sindicatos, fortalecendo os movimentos sociais na região. Fomos conhecer mais uma das tantas "crises" brasileiras, esta ao contrário da energética, uma agonia lenta e silenciosa. Em dez anos, só na região Sul foram abandonadas 400 mil propriedades rurais, segundo dados reunidos pelo Departamento de Estudos Socioeconômicos Rurais, ONG vinculada às organizações de trabalhadores rurais da região. O motivo? Sobretudo a brutal queda da renda média dos agricultores, resultado da abertura indiscriminada para importações agrícolas desde o início do governo FHC.

A viagem começou em Blumenau, onde parte da equipe, que só se completaria na segunda cidade do roteiro, Santa Maria, conheceu os programas de colaboração entre a agricultura familiar e a prefeitura local, comandada pelo petista Décio Lima.  Para coordenar iniciativas como o Prove - Programa Municipal de Verticalização da Agricultura Familiar -, que facilita a comercialização dos produtos do setor no município, ou a associação com cooperativas locais no fornecimento de merenda escolar, a prefeitura criou a Superintendência de Desenvolvimento Rural. Os projetos têm apenas dois anos, mas a cidade já é apontada como um laboratório para essa integração entre meios urbano e rural, constituindo o chamado rurbano, que aparece como uma tendência brasileira - vide a reportagem de capa da revista Globo Rural de outubro, "Parceiros do Futuro", em que o jornalista Claudio Cerri traça um rico mapa dessas associações com destaque para o exemplo blumenauense.

No segundo dia, em Santa Maria, já no Rio Grande do Sul, o tema era a assistência técnica, a pesquisa e a extensão aplicadas à agricultura familiar. Tomamos café nesse dia com o casal Inês e Moacir Aozani, na comunidade de Arroio Grande. Eles passaram quinze anos plantando fumo na pequena propriedade herdada dos pais. Trabalhavam num regime até hoje comum na região, embora em decadência: uma grande indústria - a Souza Cruz - fornecia uma espécie de kit de plantio, que incluía desde as mudas até a assistência técnica e os defensivos - são até oito aplicações de inseticidas, fungicidas e herbicidas numa safra apenas. No final, a própria empresa comprava toda a produção. O resultado é um agricultor que se torna simples fornecedor de matéria prima e ainda tem que arcar com qualquer ônus decorrente de uma quebra de safra ou uma intoxicação pelos defensivos recomendados, ocorrência freqüente na região, aliás.

Para o casal mudar de vida, o apoio do poder público foi fundamental. Depois que participaram de cursos técnicos promovidos pela Secretaria da Agricultura do estado, eles abandonaram o fumo e passar a se dedicar à produção de hortifrutigranjeiros e produtos caseiros como pães, bolos, queijos e embutidos.

Para a comercialização, contaram com o auxílio da prefeitura, do também petista Valdeci de Oliveira. A administração municipal apóia uma feira semana na cidade, onde os agricultores negociam o que produzem. Sem intermediários e senhores de seu trabalho, o casal passou a ter uma renda líquida mensal de R$ 280, só com a feira. Levando-se em conta que moram em casa própria e se alimentam em grande parte de produtos gerados em casa, conseguem uma boa qualidade de vida.

Segundo o secretário de Agricultura do Rio Grande do Sul,  José Hermeto Hoffmann, que acompanhou todo o trecho da caravana em solo gaúcho, em parte acompanhado pelo governador Olívio Dutra, o fato de no estado cerca de 80% da produção de alimentos terem origem nas propriedades familiares mais do que justifica a posição "estratégica" que o governo confere ao setor.

Numa situação inédita hoje no Brasil, os agricultores familiares gaúchos desfrutam não só de microcrédito facilitado como também de um seguro agrícola estadual subsidiado - graças ao fato de o Banrisul ter escapado à privatização. Além disso, eles recebem apoio para a comercialização a partir de inovações como a nota fiscal do produtor, que dispensa a abertura de empresa, as centrais de embalagens e o selo "Sabor gaúcho", que, além de garantir lugar para os produtos familiares nos supermercados, graças ao apoio na distribuição, substitui as exigências federais de vigilância sanitária por instâncias estaduais com legislação simplificada, sem perder segurança e qualidade.

Os resultados dessa política são vísiveis na economia gaúcha: o Rio Grande do Sul colheu em 2001 sua maior safra de verão de todos os tempos - 18,6 milhões de toneladas - e passou à 2ª posição no ranking dos estados que mais exportam, atrás apenas de São Paulo.

Seguimos viagem até a região das Missões, onde o relevo suave favoreceu a instalação da monocultura extensiva, em meio às ruínas da utopia ilustrada dos jesuítas e seus "bons selvagens" guaranis. Mesmo ali, onde se poderia esperar encontrar apenas grandes latifundiários, esperavam-nos mais novidades. Em Três de Maio, visitamos a Contrimaio, cooperativa que exporta soja "orgânica" para a França recebendo o dobro do preço da soja transgênica dos EUA no mercado internacional.

Não é só a necessidade de uma aliança com o Mercosul com a União Européia como anteparo ao guloso projeto da Alca o que pautou a reflexão ali. Para quem já se habituou aos argumentos padrão das multinacionais que defendem os transgênicos pode surpreender esse exemplo vivo de que a produção agroecológica não é apenas correta em termos políticos ou ambientais, mas também uma alternativa economicamente viável.

A defesa apaixonada dos produtos orgânicos – termo que para os colonos do Sul pode se aplicar tanto a uma alface cultivada sem o uso de agrotóxicos ou fertilizantes químicos como a um porco alimentado apenas com milho e ração caseira – foi outra constante na viagem. Conhecemos iniciativas como a rede Ecovida, da qual participam hoje 1500 famílias de agricultores, auxiliados por 20 entidades de assessoria e mais de cem organizações sindicais e associativas.

Entre os colonos, não há nada de estranho em comer um salame e tomar cerveja (caseiros, claro), almejando um estilo de vida “saudável” e “mais próximo da natureza”. Como o agricultor Gelson Antonio Lenhart, que encontramos em São Pedro do Sul (RS), ainda no segundo dia de viagem. “Com a química não tem mais jeito. Produzia mais, mas gastava muito com os insumos. Quando lembro os banhos de veneno que tomava, até me arrepio. Hoje aprendemos até como tratar as doenças dos porcos e bois só com homeopatia e fitoterapia.”

De fato, uma das passagens mais curiosas da viagem para nós foi o 3º Seminário Brasileiro sobre Homeopatia na Agricultura Orgânica, em Campinas do Sul (RS). Mas também acompanhamos ao longo do caminho a luta por viabilizar economicamente a produção agroecológica – no caso de variedades como o tomate, que na região de Caçador (SC) necessita de até 16 aplicações de agrotóxicos numa única safra, o desafio não foi superado, e o produto “ao natural” tem preços ainda inacessíveis à maior parte da população.

Depois de Sarandi e Rondinha, o trecho gaúcho encerrou-se em Erechim, com visita à Cocel, central das cooperativas de leite da região que está reorganizando os associados para buscar competitividade no setor. A central, herdeira da extinta estatal Corlac – Companhia Riograndense de Laticínios e Correlatos, falida em 1993 –, já conta com mais de 3 mil associados. Os produtores que antes apenas vendiam seu produto para a empresa hoje participam ativamente das decisões que vão desde a captação do leite até sua comercialização.

No trecho mais frio da viagem (encaramos até –3º C), passamos a Santa Catarina, e o contraste com o zelo com que o governo gaúcho tem tratado a agricultura familiar veio no semblante preocupado de produtores endividados na região de Concórdia. Depois de recitar uma lista numerosa que mostrava o descompasso entre a evolução dos preços dos produtos agrícolas (20 a 50%) e dos insumos (até 300%, como no caso dos combustíveis) na era do Real, o agricultor Edgar Pereira de Abreu ironizou: “E ainda vêm nos dizer que não existe inflação!”

Caçador, Cará, e a caravana adentrou o Paraná. Em São Mateus do Sul visitamos a propriedade do casal Thiophilo e Tereza Cuba. Eles conciliam a manutenção da floresta de araucárias com o cultivo de erva-mate – a mudança no manejo do terreno começou há poucos anos, mas já dá frutos: seu Cuba conta com orgulho que uma nascente na propriedade estava quase extinta com o desmatamento e, após o crescimento da mata, voltou a correr, generosa. À tarde, no próprio sítio, em meio a exposições de novas e antigas técnicas da agricultura familiar – como o adubo da “independência”, que pode ser feito pelo próprio campônio, ou instrumentos “exóticos” aos nossos olhos, como a “jorna” ou o “manguá” –, aconteceu uma reunião com os agricultores da região e debatedores convidados, como o economista Ricardo Abramovai, da FEA-USP, enriqueceram a discussão.

Dormimos em Guarapuava, onde visitamos no dia seguinte a comunidade do Pinhão. Ali, cerca de 200 famílias de posseiros lutam para garantir sua terra. No sítio da dona Maria Isabel, uma das líderes da comunidade, a impressionante visão da cerca da propriedade, que separa a área de pequenos sítios cheios de pomares, hortas e jardins de um imenso campo de soja, quilômetros a fio sem uma única árvore. Uma lembrança de que a região corresponde à fronteira entre a área meridional de predomínio da agricultura familiar e o rastro devastador da expansão da monocultura do café, hoje substituído pela soja e pelo gado no interior de São Paulo e norte do Paraná.

Em Francisco Beltrão visitamos uma unidade da rede Cresol – Cooperativa de Crédito com Interação Solidária, que vem fazendo o papel de intermediária entre o Pronaf e os produtores. E com vantagem: enquanto o Banco do Brasil cobra uma taxa de serviço que chega a 40% do valor emprestado para realizar esse repasse, as Cresol conseguem realizar a mesma tarefa com apenas 1,5% do montante. Os números falam por si. A rede já possui mais de 20 mil sócios e cerca de 50 unidades em funcionamento.

Na região também ouvimos palestra sobre o projeto Terra Solidária, parceria da Fetraf com ONGs, sindicatos e governos estaduais que vem desenvolvendo um currículo alternativo para o ensino rural, visando a recuperação dos saberes tradicionais e a reflexão sobre temas como a identidade do trabalhador rural, história local etc. Desde 1999, 50 mil alunos já foram atendidos.

De volta a Santa Catarina, a viagem se encerrou na região de Chapecó. À tarde, um debate com a presença de sindicalistas de toda a região apresentou um documento com sugestões de políticas públicas para o setor. No ato à noite, a surpresa final. Os agricultores visitados vieram dos quatro cantos da região Sul para subir ao palanque e comemorar o sucesso da Caravana. Dona Maria Isabel, de Guarapuava, deu o recado: “Não adianta lutar pela terra sem fazer política”.

Nordeste

A despeito dos descalabros que deparamos por toda parte, a ênfase das caravanas em 2001, a exemplo do trabalho dos diversos grupos de trabalho no Instituto Cidadania, foi a busca por projetos bem-sucedidos. Esse também foi o ponto central da terceira viagem, que aconteceu em setembro, a caravana "O Nordeste quer Dignidade", promovida pela CUT.

Sob a égide do Fome Zero, projeto de política de combate à fome do Instituto Cidadania que foi lançado em outubro, Lula visitou iniciativas de convivência com a seca no semi-árido nordestino, região que concentra o maior número de famintos no Brasil – 22 milhões, ou 50% do total de pessoas famintas ou vulneráveis à fome no país.

Em Petrolina, a caravana visitou o Centro de Pesquisa Agropecuária Tropical do Semi-Árido, da Embrapa, que pesquisa espécies adaptadas à seca. A comitiva também esteve em Tauá, conhecendo uma experiência de produção de algodão orgânico, e em Fortaleza, para um seminário de discussão do Fome Zero, mas foi em Afogados da Ingazeira (PE), que Lula encontrou um verdadeiro celeiro de idéias para políticas públicas adaptadas ao semi-árido. Na ocasião, visitou um projeto de montagem de cisternas – depósitos domésticos para a água da chuva.

A região abriga tantas iniciativas que em dezembro, durante o Encontro Nacional do PT, em Recife, Lula encontrou tempo para voltar a Afogados a convite do engenheiro José Artur Padilha. Em uma propriedade herdada da família, a Fazenda Caroá, ele desenvolve desde 1969 o projeto “Base Zero”. A premissa é simples: como o sol no Nordeste evapora anualmente quatro vezes a média de precipitações que ocorrem na região, não basta armazenar a água, é preciso “escondê-la” embaixo da terra. Assim, a partir de tecnologias simples, como o arco romano deitado, que permite construir sem o uso de cimento, Padilha fez uma série dessas barragens, as quais, após cerca de cinco anos, formam pequenos lençóis de água subterrâneos. A água é distribuída por gravidade a todos os pontos da propriedade. Na sede da fazenda, Padilha recebe grupos de agricultores da região para, gratuitamente, fornecer treinamento. O “Base Zero” tem empolgado tanto os especialistas na área que consta da Agenda 21 nacional.

Amapá

Mas, talvez, a visita mais emblemática que Lula empreendeu em 2001 tenha sido no Amapá, em Laranjal do Jari, por ocasião da 2ª Conferência da Amazônia, em novembro. Depois de atravessar por duas horas a imensidão de áreas de reflorestamento do megalomaníaco Projeto Jari, fomos levados pelo governador João Capiberibe (PSB) para conhecer uma cooperativa piloto que abre caminho para a alternativa sustentável e democrática de desenvolvimento. Os castanheiros, antes meros fornecedores de matéria-prima, hoje produzem biscoito que é vendido para a merenda escolar e se preparam para exportar o óleo da castanha, que alcança altos preços no mercado internacional. O dinheiro que antes ficava na mão de atravessadores hoje é administrado pela comunidade. E uma área onde se chegou a substituir a floresta equatorial até mesmo por pinheiros, para alimentar uma gigantesca fábrica de celulose bancada pelo dinheiro dos contribuintes, hoje encontra alternativas mais condizentes com o ecossistema local. Um exemplo representativo da viabilidade do projeto socialista e democrático. Afinal, comprovamos, literalmente do Chuí ao Oiapoque, que “um outro Brasil é possível”.

Spensy Pimentel é jornalista, da equipe do Instituto Cidadania