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Muito se tem discutido e escrito sobre a crise do pacto federativo no Brasil. Na verdade, um conjunto importante de novos problemas nacionais e de questões da agenda de reformas do Estado brasileiro tem sido tratado sob esta designação genérica, na medida em que se referem diretamente a mecanismos de soldagem de interesses econômicos e políticos regionais.
Considera-se, por exemplo, que a desarticulação dos laços comerciais que viabilizavam a integração econômica do mercado nacional sob a liderança da indústria paulista vem implicando a progressiva fragmentação da federação, pois a emergência de ilhas de prosperidade econômica diretamente conectadas aos mercados externos abalariam a sistemática interna de integração produtiva e articulação comercial entre as regiões brasileiras.
Grande parte do debate sobre a crise da federação diz respeito a questões de natureza fiscal e tributária. Em primeiro lugar, as novas prerrogativas fiscais de estados e municípios, derivadas da Constituição de 1988, conferiram a estes últimos novos instrumentos para competir entre si pela instalação de empresas; estes, por sua vez, deram origem à guerra fiscal, que seria para alguns um sintoma da crise da federação. Além disto, a crise fiscal dos estados seria mais um dos calcanhares de Aquiles da federação brasileira, que apontaria para a necessidade de uma repactuação federativa da qual as reformas fiscal e tributária seriam um componente essencial. Finalmente, a crise fiscal da União representaria uma ameaça à unidade federativa, uma vez que o governo federal já não mais seria capaz, como no passado, de soldar os distintos interesses regionais por meio da redistribuição de recursos via Orçamento, fundos públicos, agências de fomento ao desenvolvimento regional etc. A fragmentação da Nação ou a impossibilidade de manutenção do pacto entre as elites regionais seriam ainda agravadas pelas políticas de orientação liberal, na medida em que a abertura comercial, a prioridade ao pagamento da dívida e a natureza dos cortes orçamentários incentivariam a desarticulação do mercado interno e minguariam ainda mais os recursos a serem distribuídos com critérios regionais de alocação.
Ainda, as regras de nosso sistema eleitoral seriam mais um elemento de fragilização da federação, na medida em que distorcem a representação dos eleitores de cada estado na Câmara Federal. Instituídas para sobre-representar os interesses das elites conservadoras e garantir no Legislativo maiorias favoráveis a executivos conservadores, as atuais regras de distribuição das cadeiras na Câmara implicam que a densidade eleitoral dos parlamentares seja absolutamente desigual entre os estados, pervertendo o princípio democrático do "one man, one vote".
Estes e outros elementos do debate sobre as perspectivas da federação brasileira dizem respeito a políticas ou processos econômicos cuja dinâmica afeta interesses dos diversos níveis de governos e interesses econômicos e políticos regionais. Estes fenômenos dizem respeito ao grau de integração do mercado interno, à solidez dos mecanismos pelos quais os interesses das elites regionais são integrados, ou ainda à capacidade de cada nível de governo "passar adiante" o ônus da crise econômica.
Mas, todos estes fenômenos, que aparecem sob a forma de ameaça à federação, são, na verdade, conseqüências institucionais de seu funcionamento. Não há um pacto entre elites regionais que esteja sendo profundamente questionado; não há unidades da federação com políticas efetivas para desmembrar-se dela; não há movimentos organizados para suprimir a autoridade política dos governos locais. Na verdade, estas questões são expressão da agenda de problemas de um país da periferia do sistema capitalista, comandado por elites conservadoras com secular capacidade de sobrevivência política, ideológica e, como temos visto, também eleitoral.
Mais que isto: em primeiro lugar, contrariamente à crise da federação, estamos presenciando um período de fortalecimento do Estado federativo no Brasil. E, em segundo lugar, este fato tem importantes conseqüências, seja para a possibilidade de realizar reformas profundas nas instituições políticas nacionais, seja ainda para a possibilidade de implementar políticas que venham efetivamente a favorecer os interesses das classes trabalhadoras e dos despossuídos em geral.
Grosso modo, estados federativos são estados em que governo central e governos locais são independentes entre si e soberanos em suas respectivas jurisdições. Em oposição aos estados unitários, em que a autoridade dos governos locais deriva de delegação de poder do governo central, em estados federativos, cada governo local - cuja jurisdição pode variar, conforme assim o definir a Constituição - está resguardado pelo princípio da soberania, o que significa que estes são atores políticos autônomos com capacidade para implementar (pelo menos, algumas de) suas próprias políticas.
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A existência de acordos entre elites regionais e o governo central, ou ainda a existência de elites regionais com capacidade política para impor seus interesses no plano das políticas nacionais não são necessariamente expressão da existência de um pacto de tipo federativo. Os regimes de exceção brasileiros - Estado Novo e regime militar -, que "cassaram" a autonomia política dos governos locais, enfraquecendo portanto a federação, conviveram com intensa negociação com as elites dominantes no plano regional e, mais que isto, criaram mecanismos institucionalizados de representação destes mesmos interesses no plano nacional. Em suma, pactos nacionais que soldem os interesses de elites regionais não são sinônimo de pacto federativo. Eles existem em qualquer país capitalista, sob qualquer tipo de Estado em que elites dominantes sejam efetivamente dominantes.
Durante o regime militar, as relações intergovernamentais do Estado brasileiro eram na prática muito mais próximas às formas que caracterizam um Estado unitário do que àquelas que caracterizam as federações. Governadores e prefeitos das capitais e de cerca de 150 cidades de médio e grande porte foram destituídos de base própria de autonomia política: selecionados formalmente por eleições indiretas e, de fato, mediante indicação da cúpula militar, sua autoridade política não era derivada do voto popular. Além disto, todos os governadores e prefeitos detinham escassa autonomia fiscal: a centralização financeira instituída pela reforma fiscal de meados dos anos 60 concentrou os principais tributos nas mãos do governo federal e, ainda que tenha ampliado o volume da receita disponível dos municípios, uma vez realizadas as transferências, estas estavam sujeitas a estritos controles do governo federal. Finalmente, os governadores não tinham autoridade sobre suas bases militares, uma vez que as polícias militares estaduais foram colocadas sob controle do Exército. Ora, relações intergovernamentais desta natureza caracterizam os estados unitários, nos quais o poder político no plano local é uma delegação do governo central, fonte exclusiva da autoridade política.
Ao longo dos anos 80, recuperaram-se as bases do Estado federativo no Brasil. A democratização - particularmente a retomada de eleições diretas para todos os níveis de governo - e a descentralização fiscal da Constituição de 88 alteraram profundamente a natureza das relações intergovernamentais. A autoridade política de governadores e prefeitos já não deriva do governo federal, mas, ao contrário, do voto popular direto. Paralelamente, estes últimos também expandiram expressivamente sua autoridade sobre recursos fiscais - uma vez que ampliou-se a parcela dos tributos federais que é automaticamente transferida aos governos subnacionais -, assim como passaram a ter autoridade tributária sobre impostos de significativa importância. Em suma, no Brasil pós-88 a autoridade política de cada nível de governo é soberana e independente das demais. No caso brasileiro, acrescente-se o fato de que os municípios foram declarados entes federativos autônomos, o que implica que um prefeito é autoridade soberana em sua circunscrição, o que não ocorre nos Estados Unidos, por exemplo.
Durante a ditadura militar, seria impensável que se organizasse - formal e publicamente - um grupo de governadores de oposição ao governo federal, como estamos presenciando. Esta frente de oposição seria impossível não apenas porque estivéssemos sob um regime em que a liberdade de expressão estava restringida; mas também porque os governadores eram homens de confiança dos presidentes. Uma frente de governadores disposta a dificultar a implementação da política econômica do governo central também seria muitíssimo improvável em um Estado democrático de tipo unitário, porque, a depender das regras de formação dos governos locais, ali também os executivos são compostos de homens de confiança do governo central. Portanto, nas circunstâncias atuais, o funcionamento do estado federativo, ao criar mecanismos de contrapeso ao governo federal, favorece a atuação das correntes políticas contrárias à implementação de políticas de orientação liberal.
Estamos vivendo o fortalecimento da federação brasileira. A guerra fiscal, a prática do dumping social, a disputa por investimentos não são evidências de crise da federação: são efeitos esperados de suas regras de operação. Uma das conseqüências prováveis da descentralização da autoridade política (sobre políticas fiscais e sociais, por exemplo) é que, em condições de mobilidade dos capitais, aumenta a capacidade de pressão das empresas sobre os governos locais, na medida em que a ameaça de saída dos investimentos em direção a outras localidades pode de fato ocorrer. A utilização da política fiscal e tributária como instrumento de atração dos capitais é tradicional nas políticas de desenvolvimento econômico dos estados federados norte-americanos. Pelas mesmas razões, teme-se que a unificação européia, ao constituir uma federação de Estados independentes, com liberdade interna para o movimento dos capitais e da força-de-trabalho, tenha como resultado uma retração dos programas de proteção social, pelos quais os países do norte (França, Alemanha, Bélgica etc.) sejam forçados a aproximar-se dos patamares de proteção dos países do sul (Portugal, Espanha, Grécia)1. Finalmente, o "convite" do governo baiano para que as empresas automobilísticas transferissem suas plantas para aquele estado, em resposta à (correta e devida) revisão dos contratos que vem sendo implementada pelo governo Olívio Dutra no Rio Grande do Sul, não é um sintoma de crise da federação, mas um efeito (perverso) de seu pleno funcionamento. Criar mecanismos para evitar a guerra fiscal suporia (re)centralizar a autoridade tributária, suprimindo (ou restringindo) a autoridade fiscal dos governos locais.
A crise fiscal dos estados pode, de fato, reduzir substancialmente a capacidade dos governos locais implementarem políticas, na medida em que operam com orçamentos (quase) integralmente comprometidos. Isto implica, de fato, reduzir as margens de soberania dos governadores.
A rodada atual da crônica crise fiscal dos estados brasileiros é, de um lado, resultado das políticas implementadas pelo governo FHC - isto é, das perdas de receita causadas pela recessão, das elevadas taxas de juro, de acordos de pagamento das dívidas estaduais que evidentemente não poderiam ser cumpridos, de uma política deliberada de retenção de receitas estaduais por parte do governo federal - e, de outro, ela é também resultado da ação deliberada e independente de grande parte dos ex-governadores, cujas práticas no campo fiscal e administrativo foram, no mínimo, irresponsáveis. Em suma, para além dos efeitos da política econômica, a crise fiscal dos estados é, em parte, resultado da capacidade do governo federal transferir a estes parte de "seu próprio ônus" fiscal e, em parte, resultado da inexistência de uma regulamentação federal que proteja os governos - isto é, a coisa pública - contra os maus governantes. A instituição da Lei de Responsabilidades Fiscais pode vir a ser uma boa regra para inibir a dilapidação irresponsável dos orçamentos públicos.
Mas, a capacidade do governo federal transferir aos estados parte da "conta" de sua própria política econômica, restringindo a margem de manobra dos governadores, é apenas uma expressão da dinâmica da luta política em estados federativos. No caso brasileiro, esta luta torna-se mais acirrada por se tratar de um país da periferia do sistema capitalista, com uma base fiscal mais estreita do que outras federações.
Estados federativos e competição eleitoral engendram barganhas federativas, pelas quais cada nível de governo pretende transferir a uma outra administração a maior parte dos custos políticos e financeiros da gestão das políticas e reservar a si a maior parte dos benefícios dela derivados. Se a autoridade política é dividida, o mesmo pode ocorrer com a responsabilidade pública pelos resultados da ação dos diferentes níveis de governo. Reagan, por exemplo, foi bem-sucedido em aprovar um conjunto de medidas impopulares, ao explorar as possibilidades que a estrutura federativa norte-americana lhe oferecia para transferir aos estados a responsabilidade pelos cortes em programas sociais.
No nosso caso, os governos Sarney, Collor e Itamar Franco, por razões diversas - que vão desde a autoridade política de um presidente escolhido indiretamente diante de governadores eleitos diretamente até a capacidade de construir estáveis coalizões de apoio -, revelaram frágil capacidade de iniciativa e comando, em muitas áreas de atuação. Naquelas circunstâncias, o peso político dos governadores revelou-se mais decisivo no jogo federativo.
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O governo FHC, por sua vez, em seu primeiro mandato contou com condições muito favoráveis para aprovar suas iniciativas: excepcional apoio na mídia; os governadores dos principais estados eram seus aliados; os partidos da coalizão de apoio ao presidente formavam folgada maioria na Câmara e no Senado; estabilidade e insulamento da burocracia especializada e, paralelamente, a oposição, embora tenha se revelado capaz de fazer um ótimo uso dos recursos institucionais disponíveis para multiplicar as dificuldades do governo para aprovar suas iniciativas, tem se revelado frágil para propor e sustentar politicamente um programa de reformas alternativo. O fato de o governo federal ter assumido compromissos com o FMI - referentes à aprovação da CPMF ou à privatização de empresas estaduais, por exemplo -, independentemente da constitucional autorização do Congresso e dos governadores, é expressão da confiança de que seria possível cumprir tais compromissos, conquistando a posteriori a adesão do Congresso e dos governadores; mas, funciona simultaneamente como mecanismo de pressão sobre as decisões destes mesmos atores políticos, que passariam, uma vez obtido o empréstimo com o FMI, a ser responsabilizados politicamente por qualquer revés na estabilidade da moeda. Mais que isto, ao aceitar apenas renegociações "caso a caso" das dívidas estaduais, o governo federal amplia a sua margem de manobra sobre os governadores, buscando dividir sua frente e podendo liberar recursos casuisticamente. Embora esta operação tenha como resultado a redução da margem de manobra dos governadores numa área evidentemente crucial, ela é apenas expressão da capacidade de iniciativa do governo federal em pleno exercício da disputa federativa.
Neste segundo mandato presidencial, há evidências de que pelo menos algumas destas condições não venham a se repetir, na medida em que parte dos governadores dos principais estados pertence a partidos que fazem oposição ao governo federal e a mídia já não entoa o mesmo canto. Mas, não são irrelevantes os recursos institucionais que favorecem o governo federal na barganha federativa.
No que diz respeito à questão da representação dos estados no Legislativo federal, é preciso também distinguir o que é próprio ao federalismo e o que diz respeito ao sucesso das estratégias eleitorais das elites dominantes. O princípio da representação (des)proporcional dos estados na Câmara Federal foi introduzido no Brasil no Código Eleitoral de 1932 como forma de compensar politicamente a fragilidade econômica de determinados estados. Este é um princípio presente - embora com fórmulas diferentes - em todas os Estados federativos. A sobre-representação das unidades menores - em termos econômicos, étnicos, populacionais etc. - visa forçar o governo federal e o Congresso a incorporarem, na agenda política, os problemas derivados das desigualdades. Suponhamos que governos de esquerda ganhassem as eleições nos estados economicamente menos desenvolvidos. Não seria desejável que estes governadores tivessem recursos mais do que proporcionais à sua capacidade de tributação para poder implementar políticas redistributivas? Não seria justo que estes estados tivessem uma representação mais do que proporcional no Congresso Nacional para compensar sua fragilidade econômica?
Ocorre que, posteriormente à sua instalação, particularmente a partir da desestabilização política do regime militar, o princípio da representação (des)proporcional dos estados na Câmara Federal foi sucessivamente reformulado - juntamente com a criação de novos estados - para formar maiorias conservadoras. Neste caso, portanto, o desafio consiste em formular regras eleitorais que, simultaneamente, respeitem o princípio federativo da compensação das desigualdades sem sobre-representar eleitorados cativos das forças conservadoras.
Finalmente, a emergência de ilhas de prosperidade econômica conectadas diretamente com o exterior não são um fenômeno de fragmentação da federação. São, em grande parte, o resultado da abertura comercial, adotada a partir dos anos 90, associada à recessão. E ela constitui, de fato, uma transformação profunda na integração do mercado interno brasileiro, a qual era garantida por políticas protecionistas vigentes até o início dos anos 90. Mas, ela expressa antes um fenômeno de natureza econômica, a redução dos graus de integração do mercado interno brasileiro, que um fenômeno de natureza política, a desintegração da federação.
Estado unitário ou federativo?
Bem, se estamos presenciando as conseqüências políticas da (re)construção do Estado federativo no Brasil, não é irrelevante para os diversos interesses societais se o tipo de Estado é unitário ou federativo.
Em princípio, em Estados unitários haveria menos "pontos de veto" para a aprovação e implementação das políticas desejadas pelo executivo central, porque o número de opositores potenciais com peso político para barrá-las seria, por definição, menor. Nos estados federativos, ao contrário, a possibilidade de veto às iniciativas do Executivo federal é maior, porque o número de opositores potenciais é maior. E estas conseqüências institucionais são válidas para estes diferentes tipos de Estado, independentemente da orientação política de seus governos.
O sucesso do Estado de Bem-Estar na Suécia, por exemplo, é por certo explicado pelo poder de mobilização da classe operária e sua capacidade de traduzir esta força em um partido com longo tempo de permanência no poder, dada também sua capacidade para fazer alianças com o centro e o fracionamento da direita em diversas correntes. Mas, entre a vitória eleitoral e a implementação efetiva de políticas estão o Estado Unitário, o parlamentarismo, a existência de maiorias estáveis no Parlamento e uma competente máquina burocrática, os quais permitiam que uma decisão tomada no Executivo dificilmente fosse rejeitada no Parlamento. Na verdade, instituições políticas criadas no século XIX para preservar interesses conservadores operaram a favor da social-democracia quando esta chegou ao poder.
No pólo oposto, nos EUA, a inexistência de um sistema nacional de proteção social abrangente e universal é explicado pela força política da histórica coalizão de veto a reformas de tipo social-democrata, composta pelo Partido Republicano, o american business e os Democratas do Sul, que é ferozmente contrária a qualquer reforma que possa reduzir os incentivos ao trabalho ou aumentar as demandas por maiores salários. Mas, historicamente, o federalismo teve uma influência muito importante no insucesso das tentativas de reforma social nos EUA. De um lado, porque a fragmentação da estrutura política norte-americana torna extremamente difícil a aprovação de medidas que não tenham um elevado grau de consenso, favorecendo, deste modo, a manutenção do status quo. Além disto, o temor de transformar-se em welfare magnets - atraindo população pobre de outros estados -, em um país com elevadas taxas de migração interna e no qual a disputa por investimentos produtivos é feroz, produz uma espécie de corrida para o essencial entre os estados, cuja conseqüência é um baixo nível de proteção social efetiva.
Assim, embora os resultados eleitorais e a forma de governo (parlamentarista ou presidencialista) tenham importância decisiva para o exercício do poder, a forma do Estado pode aumentar ou diminuir as possibilidades de um partido conseguir implementar reformas, uma vez tendo conquistado o poder do governo central. Estados federativos favorecem a existência de contrapesos ao exercício do poder pelo governo federal, porque este se defronta com a autoridade de outros governos igualmente legítimos. Para implementar políticas que suponham a colaboração dos demais níveis, o governo federal deve ser capaz de implementar bem-sucedidas estratégias para obter a adesão.
Disto decorre que a vitória eleitoral de um governo de esquerda (ou de centro-esquerda) não é condição suficiente para que seja possível implementar reformas profundas no Estado e na ordem social brasileiros. Para tal, seria condição necessária obter uma coalizão estável de apoio no Congresso e, além disto, sólida base de apoio em parte politicamente expressiva dos governos estaduais.
Por outro lado, em países com forte hegemonia política conservadora, o federalismo abre "brechas" para a implementação de políticas mais identificadas com as classes populares. Nas regiões em que o eleitorado não é cativo de forças conservadoras, é possível que governos com sensibilidade aos interesses populares e das minorias implementem políticas progressistas. Neste caso, a definição de quem implementa as políticas tem conseqüências sobre seu conteúdo. Derivado desta oportunidade institucional, o federalismo favorece a emergência e a difusão de inovações na gestão de políticas.
Tomemos a proposta do senador Suplicy de instituição de um Programa de Renda Mínima, nacional e universal, como política de combate à pobreza. Barrada pelas forças conservadoras no Congresso, a idéia foi implementada com sucesso em algumas cidades e no Distrito Federal, passando a integrar a agenda social dos governos. O sucesso destas experiências descentralizadas, por sua vez, forçou o governo federal a aprovar o seu "próprio" Programa de Renda Mínima, cujo conteúdo, contudo, é inteiramente distinto da proposta original do senador Suplicy e das experiências mais avançadas já implementadas.
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Finalmente, o sucesso político e administrativo de governos identificados com as classes populares e as minorias pode funcionar como estratégia para a vitória eleitoral no plano federal, na medida em que funciona como uma vitrine, demonstrando a inconsistência do argumento conservador de que governos identificados com os interesses populares estão necessariamente condenados à inviabilidade.
A versão original deste texto beneficiou-se dos comentários e sugestões de Alexandre Fortes, Otaviano Canuto e Vicente Rodrigues, a quem a autora agradece. No entanto, obviamente, as opiniões aqui expressas são de inteira responsabilidade da autora.
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Marta T. S. Arretche é professora de Ciência Política da Unesp, doutora pela Unicamp.
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