Cultura

Hoje, enquanto aperta os botões com uma das mãos, com a outra o anjo segura um livro.

O homem 

O homem entra no vagão. Cantarola, murmura, conversa. Em segundos se diverte e entristece. Se veste esquisito. Fala esquisito. Deve cheirar esquisito.

Ele olha pra onde tem vontade. Nós o olhamos com cuidado. Há quem nem olhe de tão amedrontado. Não: a expressão é em pânico. Uma mulher olha o homem de cima a baixo. E estranha tudo. Cada centímetro dele lhe é estranho.

O único som humano audível no vagão é a conversa do homem. Conosco? Enquanto eu não olhar não será comigo. Ele fala. Nós oramos. Nossa prece diz "não se aproxime, não se aproxime, pelo amor de Deus". Só estamos indo de um lugar pra outro. Deveria ser rápido e indolor. Temos o direito de não passar por isso.

Mais uma estação. Soa o sinal de fechar as portas. O homem salta pra fora do vagão. O trem parte. A viagem prossegue. Amém.

O lobo

Ele anda de um lado para o outro da jaula. Vai e volta por um caminho reto, paralelo às grades. Atento, as orelhas eretas; o olhar longe, mas concentrado.

As pessoas, como sempre, ficam na frente do lobo. Umas só de passagem, outras tentando chamar a atenção dele. Crianças chamam, gritam, fazem caretas. Um homem tira fotos. Ágil, o lobo procura uma brecha pra olhar. Sempre encontra. E, nos momentos em que bloqueamos a visão do lobo, o olhar dele nos atravessa. Ele não nos olha nem um segundo. Nem um instante. Nós não vencemos. Resolvo ir embora. Podendo ir pra onde quiser, não sei para onde vou. Só sei que chega de lobo. Mas ainda para e olho para trás. O lobo continua igual: em vigília, olhar estendido. Na floresta invisível.

Duas espécies

No centro do gramado circular, a presença dele é tão poderosa quanto a do monolito negro no quarto claro, neoclássico, naquela cena do 2001. Mas, ao contrário da pedra de linhas retas do filme, esta é arredondada - e se move! Os olhos viram-se para o chão onde os dedos buscam alguma coisa entre folhinhas de grama. Apanhada entre os dedos negros, a coisa é erguida para mais perto dos olhos de modo a ser melhor examinada. É uma coisinha branca, como o branco dos olhos redondos que a investigam. Se fosse uma loura seminua, ia gritar de horror e perder os sentidos. Essa coisinha branca não grita. Mas, feito no cinema, a mão enorme a segura com cuidado, delicadeza. O olhar é igualmente curioso face ao que parece ser uma novidade desconcertante. As sobrancelhas e a testa se contraem e se distendem sucessivamente, sugerindo um fluxo de perguntas dentro do crânio de pedra.

Enquanto isso, o garoto ao meu lado - de boca entreaberta, os olhos brilhando - olha o monolito vivo com a mesma surpresa com que este olha a coisinha branca. A mulher que está com o garoto lê em voz alta a palavra escrita numa plaqueta: "gorila". E emenda: "que bicho feio". O homem que está com a mulher e o garoto acrescenta: "ele gosta de pipoca".

O anjo

Um sorriso claro nos aquece e reconforta, tanto na ascensão quanto nos mergulhos aos subterrâneos.

Quando, na hora da viagem, temos a sorte de contar com esse anjo como condutor, ficamos menos aflitos e nos submetemos ao momento de passagem até com certo prazer. Como se tivéssemos ficado mais leves.

Hoje, enquanto aperta os botões com uma das mãos, com a outra o anjo segura um livro. Curioso para saber que tipo de leitura atrairia um anjo, dou um jeito de ver a capa do livro e descubro: é um livro sobre anjos!

Fico ainda mais curioso. Seria um tipo de manual de anjo? Alguma apostila celestial? Talvez o anjo estivesse estudando para uma espécie de vestibular, algum concurso para arcanjo.

Antes de poder perguntar qualquer coisa, sinto a desaceleração e o número 16 se acende: chegamos ao meu destino. A porta se abre. Eu agradeço. Tirando os olhos do livro, o anjo, como sempre, sorri suavemente. Já no hall vejo, por entre as metades da porta que se fecha, que seu olhar novamente mergulha no livro.

Sem saber se existe mesmo o tal concurso para anjo mais graduado, ou se anjo tem plano de carreira, fico torcendo para que ela passe, seja promovida, sei lá.

Estudando com empenho, talvez também crie asas. E fuja da gaiola.

Flavio Lobo é publicitário, jornalista e, de vez em quando, poeta. Carioca, vive em São Paulo.