Elizabeth fala sobre sua vivência no período do Golpe Militar
Elizabeth fala sobre sua vivência no período do Golpe Militar
No dia 2 de abril de 1962, quando três policiais, vestidos de vaqueiros, alvearam o líder camponês João Pedro Teixeira, o homem marcado para morrer, Elizabeth Teixeira, sua mulher, sentiu que a organização dos trabalhadores rurais não podia parar por ali, mesmo com todas as ameaças de que foi vítima. Depois de dois anos do assassinato de João Pedro, a Liga Camponesa de Sapé, interior da Paraíba, contava com o dobro de associados: 30 mil camponeses. Mas, em 1964, com o golpe militar, Elizabeth, que já havia sido detida várias vezes, teve que fugir para o Rio Grande do Norte, sob a identidade de Marta Maria da Costa. Sobreviveu como lavadeira e depois como professora na cidade de São Rafael. Só não conseguia suportar a saudade dos filhos, com os quais perdeu o contato durante o período de clandestinidade. Foi dada como morta pela repressão política, ressurgindo apenas em 1981, por uma triangulação com o cineasta Eduardo Coutinho, que registrou a história de João Pedro no filme Cabra Marcado para Morrer.
Onde e quando você nasceu e como era sua família?
Nasci no município de Sapé, Paraíba, em 13 de fevereiro de 1925, numa família de sete irmãos: Euclides, Eules, José, Beatriz, Maria das Dores, Severina, e eu. Meu pai continua morando em Sapé, tem 101 anos, é fazendeiro, proprietário de 300 ou 400 hectares de terra e também trabalha no comércio. Minha mãe já faleceu.
Como foi sua infância, qual foi sua formação?
Não tive chance de estudar porque naquela época o acesso aos colégios era muito difícil. Fiz o primeiro e o segundo ano e depois saí da escola, com 9 anos, porque meu pai, dada a distância, não deu mais consentimento para eu ir à escola. Minha mãe era uma mulher muito católica. Nossa alimentação era muito boa, porque meus pais tinham condições. Tinham empregados para todos os serviços. Morava numa casa boa, casa de fazenda. Meu pai era bom, o único problema foi o meu casamento, porque casei a contragosto dele. Tive que fugir e casar com 16 anos, porque quando João Pedro me pediu em casamento, papai não aceitou. Em primeiro lugar, dizia que ele era negro, e negro do portão dele pra lá, que não aceitava negro sentado na sua cadeira. E além disso, casar com pobre, operário? A filha dele jamais. Dizia que não concordaria com o casamento nem se houvesse uma lei que o obrigasse a isso. Minha mãe também não queria. A primeira vez que vi João Pedro foi no comércio do meu pai, na mercearia. Ele trabalhava numa pedreira nas terras de um vizinho. Depois que fugimos fiquei na casa do tio dele, que era gerente de um engenho, e no dia 26 de julho de 1942, nós nos casamos. Antes do casamento, papai mandou uma carta, pedindo para que eu voltasse, mas eu não aceitei. Quando conheci João Pedro, eu tinha 15 anos e fugimos quando eu tinha 16 anos.
Depois do casamento sua família recebeu vocês?
Não. A obrigação das pessoas católicas naquela época era pedir bênção aos pais no casamento e eu fui até a casa deles, mas assim que me viram, todos saíram correndo, inclusive a empregada. Alguns meses depois minha irmã, que tinha 12 anos, adoeceu e disse que queria me ver. Quando cheguei, ela me abraçou, me beijou, mas já não falava mais. Morreu naquela madrugada. Papai pediu novamente para eu ficar, mas eu disse que iria voltar para a companhia do negro, como ele o tratava. Assim, continuei com João Pedro Teixeira no engenho Maçangana. Lá nasceu a nossa primeira filha, Marluce Teixeira. Depois João Pedro foi para Recife e eu fiquei em Sapé por uns meses. Aí, ele alugou uma casinha em Recife e me levou. Já estava grávida do segundo filho, o Abrahão Teixeira. Moramos 9 anos em Recife e João Pedro foi ser crente da Igreja Evangélica Presbiteriana. Nessa época, começou a participar da luta da classe trabalhadora, fundando o sindicato da classe dele, trabalhava na construção civil. As primeiras reuniões foram em casa, no começo dos anos 50. Logo depois, os empresários, donos das construções, não queriam mais dar trabalho a ele e a situação foi ficando muito difícil. Meu irmão mais velho, que levava as exportações da fazenda do meu pai, o amendoim, o inhame, para Pernambuco procurou a minha casa. Quando chegou, viu meus filhos e perguntou se eu não queria morar na fazenda que meu pai havia comprado de meu padrinho. Diante daquela situação, eu acabei concordando e quando João Pedro chegou eu falei: "Não podemos ver os nossos filhos passando fome", ele ficou um pouco tenso, mas também concordou. Isto dentro de mim tem uma dor e vou morrer com ela... Porque fui eu que fiz João Pedro voltar para a Paraíba. Quando chegamos lá, em 54, no meio de maio, papai mandou um grupo de trabalhadores nos ajudar no plantio. João Pedro também foi. Na hora da comida, eles tinham apenas farinha seca, ou quiabo assado, outros só farinha com rapadura. Aí, João Pedro disse: "Seu pai não dá almoço para aqueles trabalhadores? Estão passando necessidade." Papai só mandou duas vacas de leite para os meus filhos. A partir desse momento, João Pedro começou a entrar no campo, tomando conhecimento, de engenho em engenho dos trabalhadores, como era a sobrevivência deles na terra. Foi tomando conhecimento e começou aquela organização.
Nessa época, seu pai tinha se reconciliado com a senhora?
Tinha. Reconciliou-se comigo no momento que tomou conhecimento que João Pedro ingressou na luta. João Pedro fez uma primeira reunião na nossa casa com a presença de 30 companheiros do campo. Mas, no dia seguinte chegou a polícia. A primeira pessoa que chegou às 5 horas da manhã foi meu pai. João Pedro teve que fugir da repressão, e foi para o Rio de Janeiro. Passou 8 meses lá e eu passei 8 meses no campo sozinha. Nesse período, já era o homem do campo que vinha na minha casa diariamente procurar por ele. Traziam batata, cargas de inhame... Tudo que os companheiros plantavam. E não me faltava nada. Quando João Pedro voltou, fundou a Liga Camponesa em Sapé, em 1958. Não podia dar o nome de sindicato rural naquela época.
Quando João Pedro voltou do Rio a polícia o procurou?
Era procurado diariamente. Era preso, mas tínhamos advogados que tomavam conhecimento e o liberavam. Assim, a organização dos trabalhadores foi crescendo na região. Tanto que começou a "capangagem" em volta de casa, para ver se João Pedro tinha medo, para ver se ficava intimidado. Às vezes era preso e levado para Recife. Chegando lá, no Quartel de Bombeiros, ofereciam uma grande fazenda para ele abandonar a luta, diziam que teria carro e que os filhos poderiam estudar. Se ele quisesse uma casa de comércio, teria. Muitos companheiros sabem disso. Quando tomaram conhecimento que ele não abandonaria a luta, papai vendeu a fazenda que eu e João morávamos para um empresário de Sapé. O juiz e o escrivão chegaram com um mandato de despejo em 24 horas, acompanhado dos policiais. Com 11 filhos, onde eu ia parar? Despejados da fazenda. Aí, João Pedro decidiu que iríamos para João Pessoa, protestar contra o despejo. Tínhamos muita plantação, que foi mantida pelos companheiros do campo. Quando aconteceu o golpe, a minha casa era uma fartura, depósito de inhame, sacas de farinha, eu tinha de tudo em casa para manter meus filhos. Além disso, os companheiros do campo vigiavam minha casa. O assassinato de João Pedro aconteceu no dia 2 de abril, às 5:40 horas da tarde, numa segunda-feira. Eu tomei conhecimento só no dia seguinte, na parte da manhã. A gente já dormia assombrado. Quando ele saía me abraçava e dizia: "Eu vou, minha filha, vou meus filhos", beijava um por um. Ele sabia o que ia acontecer, porque mandaram avisar. Ele chamou o fotógrafo, tirou fotografia ao meu lado com as crianças. Quando olhei aquela fotografia, disse: "Vamos nos retirar para o sul do país... Para o Paraná... Você tem um amigo lá." Ele olhou para mim e disse: "Eu não vou, eu continuo a luta aqui. Não me acovardo, de jeito nenhum, sei que eles vão tirar a minha vida, pelas costas, covardemente, mas não abandono a luta." Aí ele perguntava para mim: "Você dá continuidade?" Eu tinha resposta para dar a esse homem? Ele levou três tiros, pelas costas. Um no coração, estraçalhou toda a parte do peito. Os outros dois no intestino. Quando foi feita a autópsia, descobriu-se que as balas eram de fuzil. No momento que eu o vi, estraçalhado à bala, disse: "João Pedro, isso não se faz com um pai de família, com o pai de 11 filhos, um pai tão amoroso com os filhos, um homem que nunca sequer me deu um desgosto, eu vou dar continuidade a sua luta." No hospital, onde ficou após ser assassinado, foi preciso pular as armas dos policiais, porque eles não deram consentimento para eu entrar, só com ordem do diretor do hospital, que se encontrava no Rio. Eu voltei acompanhada do meu filho mais velho, o Abrahão, e disse: "Vou pular as armas, der o que der, porque agora tanto faz." Pulei, mandei meu filho pular e entrei.
Quantos anos você tinha quando ele morreu?
Tinha 36 anos. Foi assassinado por pistoleiros que estavam de emboscada. Eram dois policiais, um cabo e um soldado da polícia, e o vaqueiro Aguinaldo Veloso Borges. O cabo da polícia chamava-se Francisco Pedro, apelido de Chiquinho, o soldado, Antonio Alexandre. O vaqueiro estava na estrada, esperando João Pedro para dar o aviso aos pistoleiros, que estavam em emboscada. Uma senhora que morava perto do local disse que depois de ter levado os três tiros, João Pedro dizia, levantando a mão e ainda em pé: "Tentaram, tentaram até que tiraram a minha vida. Sei que não reencontro mais a minha mulher e meus filhos", deu alguns gemidos e já estava no chão. O primeiro que o encontrou foi o companheiro Antonio José Dantas, que estava na estrada com o prefeito de Santa Rita, cidade da Paraíba. João Pedro saltava do carro que ligava João Pessoa a Campina Grande, e caminhava para chegar até em casa. Segundo as informações, não foi somente uma emboscada, foram três naquele dia, porque se ele passasse pela primeira, teria outra no rio, que ele tinha que atravessar. E a terceira era na nossa própria casa. Naquele dia não tinha como escapar.
Foi montado um processo sobre isso?
Uma camponesa, de nome de Joana, encontrou com os dois policiais a cavalo, trajados de vaqueiros. Ela perguntou: "Oi rapaz, tu estás hoje trajado de vaqueiro?", perguntou para o cabo, que era seu conhecido. Ele respondeu: "Estou procurando uma novilha que fugiu do rebanho do meu patrão." Então, no dia seguinte, todo mundo já sabia que tinha sido a polícia, porque policiais trajados de vaqueiros, dizendo que estavam procurando uma novilha, só podia ser uma conversa suspeita. A notícia correu, pegaram a Joana e levaram-na para João Pessoa. Quando ela viu o cabo Chiquinho, disse: "Foi você, cabo Chiquinho, que estava trajado de vaqueiro." A mesma coisa aconteceu quando ela viu o soldado Antonio Alexandre. Então não havia mais dúvida. Mas, Aguinaldo Veloso Borges, o usineiro mandante do assassinato, era 6º suplente na Assembléia Legislativa e acabou assumindo a cadeira com o licenciamento do deputado e de mais cinco suplentes.
Com imunidade...
É uma decepção para um país como o nosso. Não existe justiça... É triste.
E os policiais e o vaqueiro chegaram a ser presos?
Foram presos e depois do golpe foram liberados.
O golpe deu essa liberdade?
Deu essa liberdade para todo mundo... Deu liberdade (risos).
Como era a família de João Pedro?
Ele nasceu em Pilãozinho, município de Guarabera. Tinha o mesmo nome do pai, e a mãe dele se chamava Maria da Conceição. Conheci muito sua mãe, uma senhora muito boa, tínhamos muito respeito uma pela outra. Já com o pai dele houve um desentendimento. Ele casou-se e pagava foro de uma área de terra. O proprietário quis tomar uma parte, porque disse que ele estava com muita terra. Ele não cedeu e o proprietário mandou dois filhos, com capangas, numa noite de São João, tirar a vida de João Pedro pai. No entanto, ele matou dois capangas e desapareceu. João Pedro nunca conheceu o pai. Quando tinha 12 anos, teve informação, por pessoas que vieram de Manaus, de que ele trabalhava no porto de Manaus, no embarque. A mãe dele morreu em 85. Era uma ótima pessoa, dava todo apoio ao filho, mas já estava doente, com mais de 80 anos.
Ele teve irmãos?
Uma irmã, mas morreu logo, Severina Teixeira. Quando morreu, eu só tinha o primeiro filho. A mãe dele não casou novamente. Com 50 anos, adotou duas crianças: um menino que já foi em casa várias vezes, José de Andrade, e uma menina, que foi para o Rio. Ela criou um casalzinho adotivo. Quando adoeceu, nas últimas horas de vida, a felicidade dela foi o José de Andrade, a menina já tinha vindo para o Rio. Foi ele que deu toda a assistência, já era homem.
O João Pedro tornou-se evangélico. Ele morreu evangélico, praticava a religião?
Na luta do dia-a-dia ficou afastado da Igreja, não freqüentava, mas dizia que era evangélico. Quando foi preso pelo Exército na renúncia de Jânio Quadros, um major, na minha residência, fez várias perguntas sobre a Bíblia e ele respondeu todas. Eu sou católica e sempre vou à igreja. Ele era evangélico, mas queria que os meninos encolhessem a religião. Quando foi assassinado, os nossos filhos eram pagãos, não eram batizados.
Vocês tiveram onze filhos?
Sim. Três já morreram. A menina mais velha suicidou-se no mesmo ano em que o pai foi assassinado, por não haver justiça. João Pedro morreu no dia 2 de abril, e no dia 16 de junho acertaram um tiro no menino Paulo Teixeira. Estava arrancando macaxeira, às 5 horas da tarde, e recebeu um tiro no osso frontal a mando do latifúndio, para me intimidar, para que eu abandonasse a luta. Hoje, ele mora em Pernambuco, é um homem com problemas mentais. Os médicos que fizeram a sua cirurgia disseram que teria problemas com uns 30 anos.
Ele chegou a casar e trabalhar como caminhoneiro. Conseguimos uma aposentadoria para ele no valor de três salários. Ele mora com os filhos e a esposa, que trabalha na Prefeitura do Município de Libérulo. Quando recebeu o tiro tinha 11 anos. A menina mais velha, Marluce, estava com 18 anos e morreu dizendo que todas as noites sonhava com o pai, ouvia sua voz gemendo. Estava certa de que não haveria justiça e que eu também não ia vencer, seria morta, e antes que isso acontecesse ela queria morrer. Tomou veneno. Trouxe-a para João Pessoa, mas não teve jeito.
Com a Liga do Engenho da Galiléia foi possível conseguir algum dinheiro para comprar caixão e enterrar os mortos, porque a pobreza era tanta que as pessoas eram enterradas em redes, às vezes num lençol.. Primeiro as Ligas estavam à procura de solução para os problemas da morte... Depois para os problemas da vida... Como foram as primeiras reuniões na sua casa para a organização da Liga de Sapé? O que levou as pessoas a se organizarem?
A miséria no campo era muito grande. Muitas companheiras de 15, 16 anos morriam de parto, sem assistência. Uma criança adoecia e não tinha o mínimo de assistência no campo. Diante disso, João Pedro ia conscientizando o homem do campo para reivindicar saúde, melhores salários, acabar com aquele cativeiro do cambão. Aquele cativeiro de só ter direito a comer daquela mercearia do engenho, com alimentos já mofados. Os trabalhadores não tinham direito a salário. Recebiam um vale para ir ao barracão e ali comprar farinha, açúcar, aquele feijãozinho. As reuniões do João Pedro eram, justamente, para conscientizar o homem para acabar com toda essa miséria. A doença sem assistência, a morte sem assistência, a comida, a educação, e, em primeiro lugar, a terra para ter o direito de trabalhar nela e não deixar a lavoura para o patrão, porque tinha patrão tão ganancioso, que quando via em volta da casa do morador uma lavoura, com muita prosperidade, tomava posse. Nas reuniões, João Pedro ia conscientizando todos aqueles companheiros, para terem direito à posse da terra. A organização chegou a tal ponto que - quando João Pedro foi assassinado - a Liga Camponesa contava com 7.400 associados.
Como eram as reuniões?
Começavam por volta das 10 horas da manhã e iam até às 4 da tarde, nunca entravam pela noite. João Pedro conversava com os companheiros numa grande mesa, que ele comprou, tomava conhecimento e fazia anotações. Engenho fulano, a maior complicação de miséria é essa. Engenho tal... Engenho tal. Tomava conhecimento dos desentendimentos entre os trabalhadores e os proprietários.
Quando João foi assassinado houve um ato em Sapé. Como foi o enterro, a liberação do corpo?
Logo que ele morreu começaram a chegar pessoas, personalidades do Rio de Janeiro, do Rio Grande do Norte, de Brasília, companheiros de vários estados. O enterro de João Pedro teve um acompanhamento muito bonito. Recebi solidariedade de todas as classes trabalhadoras, dos estudantes e muitas delegações camponesas vieram ao ato público em Sapé. Os companheiros que não eram da Liga se revoltaram e acabaram se filiando, todos os companheiros, de outros municípios, que ainda não estavam filiados, se filiaram em protesto ao assassinato de João Pedro. Foi a coisa mais linda da minha vida, a fraternidade, o amor do homem do campo para com João Pedro e para comigo e os filhos dele. Todos os companheiros da Liga se aproximavam de mim e até queriam incendiar a cidade de Sapé. A revolta foi tão grande que, em 64, dois anos depois, a Liga chegou a ter 30 mil companheiros. Fora outros que já estavam com planos de fundar sindicato, como em São Miguel de Itapu. Depois de um mês da morte de João Pedro, recebi um convite de João Goulart, presidente da República, para depor na Comissão Parlamentar de Inquérito, em Brasília. Antes, fui ao Rio de Janeiro e fiquei hospedada na casa da doutora Regina Albuquerque, em Copacabana. Ali participei de manifestações do 1º de maio, um grande movimento no qual os estudantes me receberam, todos em pé, com a faixa vermelha, simbolizando o sangue de João Pedro. Os operários também fizeram passeata, com faixas em protesto ao assassinato de João Pedro. O maior protesto aconteceu no Sindicato dos Bancários. No dia 2, cheguei em Brasília, depus na CPI e o presidente João Goulart me disse: "Elizabeth, assuma o lugar de João Pedro, em protesto ao assassinato, para a manutenção dos seus filhos. Vamos dar uma bolsa de estudo para o seu filho mais velho, o Abrahão Teixeira, que já fez a 4º série, e vou a João Pessoa ser o padrinho da sua menina mais nova, que tem três meses." Ele veio a João Pessoa mas não foi possível cumprir a promessa, porque houve um encontro de latifundiários, de usineiros e a situação ficou muito delicada. Voltando, assumi o lugar de João Pedro para o que desse e viesse. Estava disposta a morrer. Várias vezes fui presa, e aquele coronel Luis de Barros, da Polícia Militar, dizia: "Tenha vergonha, Elizabeth, vai tomar conta dos seus filhos", e eu respondia: "Olhe, eu não pedi para estar hoje nesse lugar, não. Foram vocês que me deram esse lugar quando atiraram no peito do meu marido." Ele mandava dar uma salva de tiros nos meus pés. Um dia, apareceram duas caminhonetes da polícia em casa, deram uma salva de tiros nos meus pés. Fizeram dois pelotões de polícia e mandaram eu passar no meio. Quando passei, atiraram só na terra. Mandaram eu entrar na cabine de uma camionete com três policiais: um tenente, um sargento e um soldado. Eu ainda disse para o tenente: "Deixe de ser covarde e bandido. O sr. acha que vou me sentar ali..." Mas, acabaram me levando para João Pessoa. O advogado já estava me esperando e protestando. Quando havia qualquer conflito de terras...
Iam procurar a Elizabeth...
Isto não foi só uma vez. Também me ofereciam dinheiro para eu me mudar, abandonar a luta. Enquanto passava no meio do pelotão atirando, o usineiro, Luis Ribeiro Coutinho, apertando minha mão, arroxeando minha mão, no meio dos policiais, dizia: "Muda e vamos já para o escritório, muda Elizabeth", eu disse: "Para o escritório o quê? O senhor tem terra para os homens que estão despejados?" Na minha casa tinha uns 10 ou 12 despejados. Todos com foice e enxada, se eles me matassem, morriam também. Foram embora. Eu preferiria não ter nada para comer, até o suicídio, do que receber dinheiro. Um dia após o golpe tentaram incendiar minha casa, mas não me encontraram, porque estava em Galiléia, fazendo aquele filme, Cabra Marcado. De lá, conseguimos fugir para dentro das matas e no dia seguinte, conseguimos chegar até Recife. Depois, em João Pessoa, procurei notícias dos meus filhos, mas acabei sendo presa. Passei três meses e 24 dias na prisão, no Agrupamento de Engenharia. O Major queria me enquadrar, perguntava sobre caminhonetes que supostamente chegavam em casa à meia-noite, cheias de armas que vinham de Recife. Eu dizia que aquilo era uma injustiça, porque desde a morte de meu marido eu fechava a porta e não abria mais para ninguém. Armas quem tem são eles, que mataram João Pedro. E não só ele, mas também o companheiro Alfredo Nascimento, que foi assassinado barbaramente pelo capa de aço da usina Santa Helena. Antes de João Pedro Teixeira, o companheiro Nezinho da fazenda Caruçu. Antes de João Pedro, outros companheiros já tinham sido assassinados e muitos com o golpe militar. Ele não conseguiu me enquadrar e fui liberada.
Você disse que estava fazendo o filme Cabra Marcado no momento do golpe militar, como você travou conhecimento com esse pessoal de cinema? Foi por ocasião da morte de João Pedro, nas manifestações no Rio de Janeiro?
Não, o companheiro Eduardo Coutinho, que foi o cineasta do filme, estava no Nordeste, fazendo uma pesquisa sobre o petróleo com os estudantes. Tomando conhecimento do assassinato de João Pedro, eles foram ao ato público, em protesto. Estavam em Sapé vendo aquela situação e ficaram revoltados. Ele me procurou e achou que deveria fazer um filme. Eu já estava na Presidência da Associação e tive que conversar com os outros companheiros, que concordaram com o filme. João Pedro morreu em 62 e nós começamos a filmar em janeiro de 64. Fomos fazer o filme na Galiléia, em Pernambuco, com o apoio de Miguel Arraes, porque não deixaram filmar na Paraíba.
Como é que foi o golpe no campo?
O golpe no campo foi o maior terror, porque muitas famílias foram jogadas para fora das propriedades e migraram para São Paulo, para o Rio de Janeiro e até mesmo para as cidades do Nordeste. A maior contribuição do golpe foi para a miséria do campo. Onde está o homem do campo? Na cidade, na periferia, os filhos comendo lixo, morrendo de fome, marginalizados. Temos que lutar contra isso, implantando a reforma agrária, colocando um presidente que seja do Partido dos Trabalhadores, que olhe essa classe, dos Sem-Terra, que olhe esse povo, e que implante uma reforma agrária digna, dando segurança ao homem do campo, dando fiança para que possa produzir e sobreviver, para que esse homem saia das periferias das cidades e volte ao campo. Porque, enquanto isto não acontecer, a tendência é aumentar a violência e a miséria. Temos que mudar isto, temos que tomar a terra do latifúndio e dar aos Sem-Terra para que eles possam plantar, produzir, ter barriga cheia, viver contentes com seus filhos. Na cidade já não existe emprego, quanto mais para quem vem do campo, analfabeto. No nosso país, a educação está falida. No interior, podemos dizer que a educação pública não existe. O mesmo acontece com a saúde.
Quando aconteceu o golpe, os fazendeiros do sertão da Paraíba participaram da perseguição que a polícia fez aos camponeses?
Depois do golpe, os fazendeiros, os latifundiários perseguiram os camponeses e os sócios da Liga Camponesa, muitos estão desaparecidos. Quando fui presa, chegaram dois latifundiários armados para me matar. Papai fugiu de casa, ficou a mamãe e a empregada. Eles disseram para mim: "Fale agora aí, comunista sem-vergonha, não pense que vai ficar assim não", com a arma na mão. Minha mãe tomou a frente, pediu pelo amor de Deus para não me matarem, porque um era compadre dela. Eu disse que a dor que eu sentia, ali, naquele momento, era estar desarmada, porque se eu estivesse armada... Eles perguntaram o que eu faria, e eu respondi: "Matava, já tinha matado, covarde, porque vocês são covardes. Se vocês querem me matar atirem e me matem, não vai dizer palavra mais comigo, porque isso prova que vocês são covardes, me chamando de comunista, sem-vergonha." Isso aconteceu com muitos companheiros, muitos desapareceram.
Uma coisa que se comenta é que muitos companheiros das Ligas, no dia seguinte ao golpe, foram jogados direto nas caldeiras, você já ouviu falar disso?
Já ouvi. Eu tenho a sorte de hoje estar aqui com vocês, conversando e de reencontrar com, todos os meus filhos, pois não tinha nenhuma esperança de que isso acontecesse. Quando fui para o Rio Grande do Norte, depois do golpe, também não tinha esperança, porque as notícias eram de que eu tinha sido assassinada na Paraíba, com o corpo carbonizado. Tanto que quando eu voltei foi a maior admiração.
Não há um número exato de quantas pessoas morreram no campo após 64. O movimento camponês tem pistas sobre isso, pessoas que deveriam ser procuradas?
É tão difícil, porque no momento que houve o golpe, eu fugi para o Rio Grande do Norte. Lá fiquei com identidade falsa, com o nome de Marta Maria da Costa. Fui viver lavando roupa na cidade de São Rafael e adoeci. Apanhei uma infecção, fiquei muito doente, e fui parar no hospital. Quando saí, fui alfabetizar crianças.
Enquanto Marta Maria da Costa estava alfabetizando crianças, você andou se metendo a organizar alguma coisa nesse período ou não? Porque você não tem cara de ficar quieta..
Logo no início da década de 70, entrei em contato com o presidente do Sindicato Rural e fui logo convidada para assumir a Presidência. Mas participei apenas das reuniões e para falar com os companheiros do campo, para que pudessem entender a luta, assumir o cargo de jeito nenhum. Porque ninguém sabia que eu era a viúva de João Pedro Teixeira. Só o companheiro presidente do sindicato, que tinha o apelido de Nenê.
Quando você saiu da clandestinidade?
Saí da clandestinidade em 81, quando o cineasta Eduardo Coutinho foi para João Pessoa, procurar por mim. Conhecia dois estudantes do Rio Grande do Norte, de São Rafael, que todos os finais de ano iam para João Pessoa. Através deles, consegui localizar meu filho Abrahão, que trabalhava já como jornalista em Patos, na Paraíba. Assim, menino que tinha fugido comigo para Rio Grande do Norte, Carlos Teixeira, foi até Patos conhecer o irmão. Então eu disse para levar o meu retrato, senão o irmão ficaria desconfiado. Quando chegou no escritório dele, Abrahão disse: "Não estou acreditando que esta mulher está viva, porque as notícias que se tem é que foi morta e carbonizada." Aí, ele mostrou o retrato. No dia seguinte, chegou Eduardo Coutinho na casa do Abrahão e os dois vieram me procurar. Foi uma emoção tão grande. Abrahão logo me convidou para morar com ele. Resolvi tudo com os pais das crianças que eu alfabetizava, e depois de uma semana já estava morando em Patos.
Quando surgiu a sua verdadeira identidade, no Rio Grande do Norte, como reagiram seus amigos?
Uma fraternidade, a maior do mundo. A estudantada, antes de eu vir morar com meu filho, chegava de ônibus, de Natal, para me parabenizar. Fui convidada para participar de vários movimentos. Até faixas fizeram. Eles diziam que da maneira como receberam a senhora Marta Maria da Costa, com mais prazer estavam recebendo agora Elizabeth Teixeira. O primeiro filho que reencontrei foi Abrahão. Na casa de minha mãe estava somente o João Pedro. A menina já tinha ido para o Rio de Janeiro, por conta da irmã mais velha, a Marta, que a levou quando tinha 12 anos. Elas moram até hoje no Rio. Procurei reencontrar todos os meus filhos. Entrei em contato o Isaac, que estava em Cuba, por telefone. Ele foi para Cuba no dia 10 de janeiro de 63, acompanhado do deputado Francisco Julião, porque quando Fidel Castro tomou conhecimento de que o líder camponês João Pedro Teixeira tinha sido assassinado em uma emboscada, paralisou todo aquele país e hasteou a bandeira em homenagem a ele. Sabendo que tinha deixado 11 filhos, mandou um telegrama diretamente para a Associação da Liga Camponesa de Sapé e convidou um dos filhos de João Pedro para estudar em Cuba. Abrahão Teixeira já estava em João Pessoa, com a bolsa oferecida por João Goulart. Então, o Isaac Teixeira foi estudar em Cuba. Retomei o contato com ele em 85, através de um menino que tinha acabado de chegar de lá e o conhecia. Em janeiro de 86, Isaac voltou para o Brasil. Tinha feito medicina em Cuba.
E você já foi a Cuba?
Sim, fui logo depois do Isaac, no dia 26 de julho de 63, acompanhada dos companheiros camponeses. Passamos 24 dias percorrendo todo aquele país. Fui muito bem recebida por Fidel Castro. Ele me apresentou uma casa, dizendo que se eu quisesse voltar com meus filhos, teria toda a assistência. Mas, eu disse para Fidel que tinha um compromisso com a luta do Brasil, não só pelo assassinato do meu marido, mas de muitos outros companheiros, amigos que tombaram na luta. Quando veio o golpe, naquele momento difícil, eu pensava, às vezes, no convite de Fidel.
Você se filiou ao PSB e foi candidata, é isso?
Sim, no ano que assassinaram João Pedro, para poder protestar, para ter mais oportunidade de subir no palanque e protestar contra a perseguição que estava acontecendo no campo. Eu aceitei ser candidata e não era filiada a nenhum partido. Os companheiros de João Pedro insistiram para que eu me filiasse ao PSB - Partido Socialista Brasileiro e para eu sair candidata a deputada estadual. Fiquei na primeira suplência. Aceitei a candidatura porque tinha mais oportunidade de esclarecer ao público a violência do latifúndio contra o homem do campo.
Em 1985, você esteve presente no Congresso de fundação do Movimento dos Sem-Terra, em Curitiba?
Estive, foi lá que conheci a companheira Ana de Santo Dias, viúva daquele operário metalúrgico que foi assassinado. Ela me fez o convite para ir a São Paulo, visitar as comunidades, participar das atividades do Dia Internacional da Mulher, no dia 8 de março. Também participei de reuniões com a estudantada de Fortaleza, do movimento da Universidade, com mulheres de Fortaleza. Na Bahia passei 8 dias participando de um encontro de mulheres de todo o país, discutindo a situação de miséria do nosso país. Não sei como a gente vai conseguir mudar essa situação. Quando Collor foi eleito, em 89, recebi um convite de jornalistas para ir a Suíça, acompanhada da secretária do Centro de Defesa dos Direitos Humanos. Chegando lá ficamos num hotel luxuoso e recebemos convite de grupos de empresas para conversar. Nesses encontros, levávamos um mapa, dizíamos que éramos do Nordeste e falávamos da miséria dessa região, que nas grandes cidades as crianças ficavam jogadas nas calçadas, com fome. Menores vivendo como prostitutas para sobreviver. Milhões de velhos mendigando, o homem do campo miserável, sem-terra e sobre os salário dos trabalhadores. Eles perguntavam como num país desse elegemos um candidato como Collor de Melo, e eu disse: "O que leva a esta miséria é o analfabetismo, temos milhões de analfabetos e, por isso, não têm uma consciência política para votar num candidato que lute por eles, no candidato que seja do partido deles. Isso é o que faz do nosso o povão votar no candidato burguês, no usineiro, no burguês como Collor. Um povo muito faminto, que vota em troca de um prato de comida, uma feira, uma sacola, um par de chinelos." Agora, se eu voltasse à Suíça, o que eles iam perguntar? Depois do Fernando I, votaram no II. Votaram no mesmo Fernandinho...
Quando o PT fez 15 anos, você nos deu de presente sua filiação ao partido. Como foi isso?
Para mim foi o maior prazer. Só fui filiada ao PSB no ano em que assassinaram o meu marido. Já é bastante para mim a satisfação do nome, Partido dos Trabalhadores, que é a classe que mais amo, a classe trabalhadora, a classe que produz e que constrói. Não é latifundiário, não é o empresário, é o trabalhador que constrói. Foi o maior prazer da minha vida receber o convite de Lula, porque voto nos companheiros do PT. Pelo meu passado de luta, pelo meu sofrimento, não tenho outra opção a não ser o Partido dos Trabalhadores.
Alípio Freire é editor de T&D.
Hamilton Pereira é dirigente nacional do PT.