Economia

O BC mantém o Banerj e o Banespa sob intervenção e a incerteza sobre os destinos provocam a perda de competitividade

Na véspera dos governadores do Rio e de São Paulo tomarem posse, o Banco Central interviu no Banerj e no Banespa e sob intervenção eles continuam até hoje, quase dez meses depois. Os dois bancos estaduais continuam funcionando normalmente, mas a incerteza sobre os seus destinos faz com que percam competitividade, agravando o desequilíbrio que justificou a intervenção. O governo do Rio já abriu mão do Banerj, mas o de São Paulo ainda quer o Banespa de volta, só que o Banco Central faz exigências, para levantar a intervenção, que estão além das possibilidades do Tesouro paulista. Covas conseguiu formar uma frente paulista de parlamentares estaduais e federais para reaver o Banespa, mas nem assim conseguiu. O Banco Central exige sua privatização.

Em agosto, o BC interviu no Banco Econômico, o maior da Bahia, e em mais dois outros menores, os três bancos sendo privados. Mas, desta vez, resolveu fechá-los de um dia para o outro, deixando centenas de milhares de correntistas sem acesso aos seus depósitos e muitos milhares de bancários sem os seus empregos. Várias semanas depois, o Banco Central liberou depósitos de até R$ 5 mil, o resto continua seqüestrado. A intervenção no Econômico, devido às grandes dimensões do banco, afetou duramente a economia baiana: muitos negócios, sobretudo pequenos, tiveram de fechar porque perderam suas reservas e/ou seu crédito. Além dos bancários, milhares de outros trabalhadores perderam o seu ganha-pão por causa da opção do Banco Central de fechar estes bancos em vez de mantê-los abertos, por razões que nunca foram reveladas ao público. As mesmas conseqüências teve o fechamento dos outros dois bancos, apenas para menos gente porque eram menores.

Em todos estes casos, os motivos alegados pelo Banco Central foram os mesmos. Os estabelecimentos que sofreram intervenção estavam incapacitados de funcionar sem que o BC lhes fornecesse diariamente somas crescentes de dinheiro. O Banco Econômico teria recebido cerca de R$ 3 bilhões do Banco Central, antes de ser fechado. O Banco Central teria chegado à conclusão de que estes bancos não tinham mais possibilidades de se recuperar e por isso interviu, antes de ter que "queimar" mais dinheiro público para mantê-los funcionando. Só que este argumento aparentemente não vale para o Banespa e o Banerj, que continuam abertos (felizmente) graças às injeções de liquidez (grana) que continuam recebendo do Banco Central.

Inocentes pagam pelos culpados

A responsabilidade pelo desequilíbrio no Banerj e no Banespa teria sido dos governadores, que os usaram para financiar gastos e investimentos de seus governos, deixando dívidas impossíveis de serem pagas com as receitas estaduais. Os interventores no Banespa divulgaram operações que seriam no mínimo suspeitas se não irregulares, consistindo geralmente em empréstimos concedidos sem as garantias devidas, possivelmente para favorecer apaniguados. Os interventores no Banco Econômico também apresentaram acusações contra a diretoria deposta, que teria desviado dinheiro para empresas fantasmas sediadas em paraísos fiscais. No entanto, apesar das acusações, nenhum ex-governador e nenhum ex-diretor de qualquer dos bancos em que teria havido irregularidades ou mesmo desvio de dinheiro foi ou está sendo processado.

Antes do fechamento do Banco Econômico, tentou-se vendê-lo a um grupo empresarial baiano, que investiria o suficiente para restaurar-lhe a liquidez. A tentativa falhou., Depois do fechamento, houve promessa formal do presidente Fernando Henrique à bancada da Bahia de que seria reaberto, sob a responsabilidade do governo da Bahia. Mas, em face da ameaça de renúncia da diretoria do BC, o presidente recuou, endossando exigências ao governo da Bahia, que este obviamente não poderia cumprir. Convém lembrar ainda que a grande imprensa de São Paulo tomou o lado do BC, exigindo que a reabertura do Banco Econômico fosse condicionada à devolução prévia dos bilhões que o Banco Central colocou nele... Embora, este dinheiro esteja seguramente perdido.

Se há muitas dúvidas sobre a responsabilidade pela situação dos bancos sob intervenção - há quem sustente que ela é sobretudo do Banco Central, que tem por função fiscalizar os bancos e impedir que quebrem - uma coisa é certa: ninguém duvida que os correntistas, bancários e acionistas são perfeitamente inocentes, mas são os únicos que estão pagando a conta. Por que isso é assim? Por que não avisam as pessoas que determinados bancos apresentam riscos, para que possam eventualmente procurar outros mais seguros? Para que serve a fiscalização do Banco Central se não consegue evitar que alguns bancos fiquem ilíquidos (com falta de dinheiro para honrar seus compromissos vencidos)? E para que servem as injeções de dinheiro do Banco Central nos bancos que ficam ilíquidos, se no fim acaba por fechá-los? Todas estas perguntas ficaram sem resposta durante a crise bancária de agosto e que gerou grandes polêmicas na imprensa. Vamos tentar respondê-las, para esboçar as reformas que o sistema financeiro precisa sofrer para que os inocentes não continuem pagando pelos culpados.

Confiança e risco ou paradoxos do negócio bancário

Bancos são intermediários financeiros: aceitam depósitos limites e reemprestam o dinheiro depositado, uma parte compulsoriamente ao Banco Central, o restante a clientes. Quando o banco aceita depósitos, se compromete a devolvê-los com juros no prazo contratado ou no momento em que o depositante o solicitar, no caso dos depósitos à vista. Acontece que o banco reempresta o dinheiro aos clientes por prazos maiores do que os que contratou com os depositantes. Portanto, se todos os depositantes resolverem buscar seu dinheiro, o banco não poderá honrar seus compromissos. Assim, qualquer banco, a qualquer momento corre o risco de ficar ilíquido. É bobagem dizer que somente bancos mal-geridos ou que sofrem de abusos políticos têm problemas de liquidez. Se os depositantes suspeitarem que o banco não lhes devolverá seus depósitos à vista ou no vencimento, tentarão retirá-los com a maior urgência. É o que se chama de corrida bancária. Isso tem ocorrido algumas vezes e os bancos vitimados só não fecham se forem socorridos por outros bancos ou pelo Banco Central.

Esta é a resposta de porque os depositantes não podem ser avisados do risco que cortem. Pois o aviso desencadearia a corrida que transformaria a ameaça em desastre. O fato fundamental é que enquanto os depositantes confiarem no banco, este sempre estará recebendo um fluxo de novos depósitos equivalente ou maior do que,o fluxo de saques.

O banco não tem como controlar os saques, que em sua maioria se originam de pagamentos que seus depositantes fazem a clientes de outros bancos. Pedro paga o aluguel a Maria com um cheque de mil reais, que o deposita em sua conta. No fim do dia, o banco de Pedro tem de pagar mil reais ao banco de Maria. Como muitos milhares de cheques são emitidos todos os dias, cada banco literalmente não tem como controlar o fluxo de dinheiro que entra - constituído principalmente por recebimentos de seus depositantes - e o fluxo de dinheiro que sai - constituído principalmente por pagamentos feitos por seus depositantes de outros bancos (pagamentos e recebimentos entre depositantes do mesmo banco se anulam, do ponto de vista do banco).

Mas o banco não é inteiramente passivo, pois sabe os saldos diários que são a diferença entre entradas e saídas. Se os saldos são positivos, o banco aumenta os empréstimos que faz, sendo normal que ele receba mais solicitações de empréstimos do que atende, de modo que sempre pode expandi-los. Os empréstimos são dados aos que apresentam melhores garantias (cuja avaliação é uma arte, sujeita a falhas). Quando o caixa do banco está alto e ele resolve emprestar mais, ele o faz a clientes menos garantidos, ou seja, que apresentam mais risco e que possivelmente serão obrigados a pagar juros maiores. Se os saldos são negativos, o caixa do banco diminui e ele então reduz o fluxo de empréstimos que concede, possivelmente não renovando créditos dos clientes com menos garantias. Com isso o banco pode tornar os saldos positivos, recuperando sua reserva de dinheiro.

Aparentemente, cada banco pode controlar o tamanho de caixa, ou seja, sua liquidez, de modo a nunca arriscar a confiança de seus depositantes. O que parece ser a tese do Banco Central: banco que precisa de socorro de liquidez de outros bancos ou do Banco Central é suspeito de imprudência e se persiste em necessitar de injeções de dinheiro, o melhor é que seja fechado de uma vez. Mas, nem sempre é assim. Quando o Banco Central passa a exigir depósitos compulsórios muito maiores dos bancos (como ele fez desde outubro do ano passado), estes são obrigados a reduzir os empréstimos a seus clientes. Como a demanda por empréstimos se mantém, o preço dos mesmos, isto é, a taxa de juros, sobe brutalmente. Isso literalmente quebra os consumidores que emitiram cheques pré-datados e que não têm saldo para honrá-los, os pequenos comerciantes que venderam a prazo e não estão recebendo de parte de seus fregueses, os agricultores que não conseguem preços compensadores por seus produtos para honrar seus débitos nos bancos. O corte de crédito gera quebradeira e esta deságua inevitavelmente na intermediação financeira. Era esta a situação brasileira desde abril e que foi se agravando mês a mês, até se tornar muito ameaçadora em agosto.

Nunca saberemos quantos bancos estavam então dependendo de socorro de liquidez do Banco Central, mas é quase certo que eram muito mais do que os três ou quatro que foram fechados. O sigilo sobre a situação dos bancos é essencial, mas nada impede que a boataria corra solta. O fato é que a possibilidade de corridas aos bancos era grande e o Banco Central resolveu reduzir o tamanho dos depósitos compulsórios, aliviando a situação de todos eles. Estes puderam repassar liquidez aos clientes mais ameaçados, evitando que quebrassem e que os empréstimos que lhes fizeram se transformassem em prejuízo.

Este é um dos paradoxos do negócio bancário. O banco privado é juridicamente um negócio como qualquer outro, a procura do lucro máximo. Mas, na medida em que representa uma parcela significativa do capital social, o banco controla o destino de numerosos outros negócios, que ele pode fazer prosperar ou arruinar. A grande maioria dos negócios é operada com capital próprio e capital emprestado por bancos. Se o banco amplia o empréstimo, o negócio pode crescer, tornar-se mais lucrativo, vencer e absorver competidores. Se o banco não renova o empréstimo, o negócio terá que diminuir e eventualmente fechar, sobretudo se o operador não conseguir vender o seu ativo para honrar o débito. Ao banco interessa fomentar os negócios que têm potencial para se expandir e encerrar os que não têm. Mas, aí o sigilo comercial atrapalha: todos aparentam potencial de crescimento, os podres são ocultados. E o banco pode ser enganado, apostar na empresa errada e ter prejuízo. No fundo, há sempre um fator casual - a sorte - que pesa, ao lado da competência, do hino, da experiência e o que mais se queira.

A mesma situação existe entre o Banco Central e os outros bancos. Quando há um aperto de liquidez, como ocorreu no primeiro semestre, a grande maioria dos bancos provavelmente necessita de socorro de liquidez do Banco Central e cabe a este decidir que bancos merecem ser ajudados e que bancos devem ser liquidados. Apesar da fiscalização que o Banco Central exerce, é improvável que esta decisão esteja fundamentada em pleno conhecimento do valor da carteira de créditos de cada banco (isto é da probabilidade de cada região ser pago no vencimento) e seja isenta de considerações políticas e sociais. O sigilo que cobre as operações de mercado, bancárias e não-bancárias, destina-se a manter a confiança em cada operador, seja ela merecida ou não. Um banco que mantiver a confiança dos depositantes pode sobreviver mesmo que sua carteira esteja repleta de créditos podres, ao passo que outro banco, com carteira muito melhor, pode ser quebrado pelas retiradas de seus depositantes, que deixaram de confiar nele. O mesmo acontece com as empresas que conseguem manter a confiança dos banqueiros e com as que não conseguem. O sigilo torna o risco real desconhecido e a confiança, subjetiva e aleatória.

Como tornar o sistema menos inseguro

Uma economia de mercado é sempre sujeita a risco, como condição da liberdade de seus operadores. Como qualquer consumidor e qualquer produtor tem o direito de mudar de idéia e de conduta, passando a comprar ou a vender outra coisa, é impossível eliminar o risco de que qualquer empresa deixe de encontrar os insumos de que necessita ou os fregueses de que depende. Só que este risco, que no conjunto de uma economia em crescimento é bem limitado, é desnecessariamente ampliado pelo sigilo. A empresa afetada por mudança negativa tenta sobreviver ocultando o prejuízo. A simulação na luta pela vida é uma regra de mercado. Ao risco inevitável, determinado pela ausência de coordenação, soma-se o risco acarretado pela falta de informação ou pela informação falsa. Isso faz com que o raio de ação de cada falha de mercado se amplie: além das empresas diretamente atingidas, muitas outras também o são porque deram crédito às primeiras, que não dariam se estivessem corretamente informadas.

A maneira de resolver estas situações é separar as transações deliberadamente arriscadas das que não devem ser. No caso dos bancos, depósitos que visem a guarda de valores e sua movimentação para pagamentos deveriam ser completamente seguras, podendo ser cobrado do depositante o respectivo prêmio do seguro, o que na prática significaria juro menor. Depósitos que proporcionassem juros mais altos seriam sujeitos a riscos, sendo que poderia haver uma classificação de riscos crescentes com juros também crescentes. Assim, depósitos usados para financiar operações de risco ponderável, como falha de colheita ou queda de preços por excesso de oferta, lançamento de novos produtos, abertura de novos mercados no exterior etc. seriam remunerados por juros determinados por oferta e demanda de capitais para tais aplicações. Em compensação, o financiamento de operações garantidas por contrato, como a construção de prédios totalmente incorporados, a produção de bens para clientes organizados em consórcios e semelhantes, poderia ser feito com depósitos segurados.

É claro que isso exigiria a eliminação do sigilo bancário e comercial. Convém lembrar que empresas de capital aberto, com ações cotadas em bolsas, são obrigadas a divulgar dados essenciais, que as conferem alguma transparência. Bastaria estender esta regra a todas as empresas e sujeitá-las, inclusive e sobretudo bancos, a auditorias independentes, cujos resultados deveriam ser públicos. Além disso, seria importante dar aos depositantes e correntistas dos bancos algum poder e controle sobre a direção do banco, que afinal os representa perante os outros operadores. Ou se cria algum conselho de administração eleito em parte pelos acionistas e em parte pelos clientes do banco, com poderes para examinar todas as operações etc. e eventualmente confrontar a diretoria, na hipótese de suspeita de que ela esteja agindo mal, ou então se cria em cada organização bancária um auditor ou ombudsman, eleito pelos clientes para exercer estas funções, além de receber e resolver queixas, acusações etc.

Também o Banco Central deveria ser reformulado. O seu caráter inevitavelmente político deveria ser explicitado, dando-se à direção caráter colegiado e representativo. Um Conselho Monetário Nacional, formado por representantes de empresários e trabalhadores dos diferentes setores de atividades, poderia discutir e negociar as políticas de crédito, gerais e setoriais, e o Banco Central, as implementaria através de bancos públicos e, onde coubesse, também privados. As decisões dos bancos sobre quem cresce e quem perece deveriam assim deixar de ser subjetivas e aleatórias, passando a estar sujeitas a diretrizes emanadas da sociedade e fundamentadas em informações completas e comprovadas.

Paul Singer é professor da Faculdade de Economia e Administração da USP e membro do conselho de Redação de T&D.