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Com uma pose de santo, seguida pela aura de vítima e pelo pedido de desculpas, o ministro conseguiu se inocentar perante a opinião pública

Flagrante delito: um ministro de Estado declara-se parte de um esquema com a Rede Globo para interferir nas eleições presidenciais (e de quebra se oferece para fazer "alguma coisa" no programa de domingo à noite). Estava posto às claras o acordo do governo com o grande empresário das telecomunicações para burlar a lei. Aquilo que só aparece em livros de memórias ou à custa de muita pesquisa foi confirmado por um protagonista central do poder. Grande escândalo. Apesar de tudo isto, a repercussão eleitoral foi quase nenhuma.

O rápido esvaziamento do caso Ricúpero deveu-se no essencial ao enorme poder da mídia e dos interesses reunidos em torno do candidato Fernando Henrique Cardoso. Mas esta constatação óbvia não é tudo. Não esgota um episódio tão significativo.

Basta ver que Gilberto Gil creditou a ele sua opção eleitoral por Fernando Henrique: "Estava em dúvida entre ele, o Lula e o Brizola, que considero e sempre considerarei. Até a saída do ministro Ricúpero, estava em dúvida. Mas ali achei que era hora de decidir, já que a coisa estava ficando meio irracional por causa desse inconsciente destrutivo que o Brasil tem" (Folha de S. Paulo, 24/9/94, E1).

José Arthur Giannotti foi na mesma linha: "O escândalo Ricúpero afetou a campanha eleitoral de modo deplorável, ao alimentar um moralismo histérico. (...) Veio embaçar o clima de racionalidade que já começava a vacilar com o desespero dos prováveis vencidos" (Folha de S. Paulo, 11/9/94, 1-3).

Que racionalidade era esta que o filósofo e o artista sentiam tão ameaçada? Obviamente não se tratava dos possíveis efeitos negativos sobre a opinião pública por conta do apoio disfarçado da Globo a FHC, claramente reconhecido por Ricúpero. Mas não há razões para supor que eles aprovem práticas desta natureza. Em outras circunstâncias, também condenariam a manipulação do eleitorado confirmada pelo ministro.

Tudo poderia se explicar por um compreensível interesse em livrar a cara do candidato preferido. Ainda assim, porque "racionalidade ameaçada"? Pela ameaça muito concreta a uma determinada racionalidade: aquela que justifica a aliança de FHC com o PFL e a Globo.

Pessoas como Gil e Giannotti apoiaram o pacto com o diabo supondo que FHC, o PSDB e sua equipe não apenas continuavam sendo muito diferentes do diabo, mas que continuariam sendo. E mais, que acabariam por dominá-lo ou enganá-lo, impedindo que ele desse o tom do acordo PSDB-PFL-Globo, acordo até então impensável e inaceitável para eles.

De repente, o angelical Ricúpero rasga a fantasia: o acerto que se queria apresentar como circunstancial, com riscos racionalmente calculados e historicamente justificados, aparece como caso de amor, com mesuras e cumplicidades. Encarada de frente, a fala de Ricúpero punha em xeque a racionalidade que justificava o pacto com o diabo. Dr. Fausto apareceu muito satisfeito, com chifres e rabo pontudo, antes mesmo de Mefisto apresentar a conta. Encarar isto de frente conduziria a questionamentos e angústias insuportáveis. Melhor negar os fatos e atacar quem queria realçá-los.

Para Luciano Martins, o ocorrido simplesmente não podia ser verdade (Folha de S. Paulo, 6/9/94, 1-3): "É difícil pensar esse episódio (...) porque ele é perfeitamente absurdo e o absurdo é a negação da razão. (...) Todo o episódio se resume a uma coisa tão simples quanto isso: quem nunca comeu melado, quando come se lambuza". Vaidade e narcisismo explicariam inclusive a "extraordinária e risível incompetência" do ministro, pois ele "não teria a menor possibilidade de 'esconder' o que quer que seja".

Luciano Martins faz afirmação tão inusitada porque resume o episódio a um delírio de Ricúpero sobre sua própria capacidade de esconder o IPC-r. Não importa que uma alta autoridade esteja afirmando que seleciona as informações "divulgáveis", e que o faz a partir de um obscuro critério de conveniência. Não vale a pena questionar se, a partir do mesmo critério, algo mais não estaria sendo escondido.

E continua o professor: "O segundo absurdo está justamente em querer 'provar', com base numa frágil fantasia paranóide, a existência de uma ação coordenada e desonesta de governo em benefício de uma candidatura". Por que rotular de fantasia paranóide a declaração de um ministro confirmando algo que parte expressiva da sociedade denuncia há tanto tempo? Nada a inquirir, nada a investigar? Um homem imaturo e desequilibrado teria alcançado a trajetória profissional que Ricúpero ostenta, tão enaltecida pelos seus defensores?

José Augusto Guilhon Albuquerque saiu em defesa de Ricúpero (Folha de S. Paulo, 8/9/94, 1-3): o incidente "reside mais no que o ex-ministro disse do que no que fez.( ... ) Uma autoridade monetária que tenha 'escrúpulos' em divulgar expectativas reais de inflação baixa, porque antes não divulgou expectativas duvidosas de inflação alta, não tem condições morais de exercer o poder". Curioso conceito de moral. Onde fica o controle democrático da sociedade sobre a ação do Estado? Quais os critérios para classificar as expectativas como reais ou duvidosas e para decidir o que deve ser divulgado ou escondido?

A defesa do ministro teve também momentos engraçados. Apesar de seus pares terem sido classificados como bandidos, o grande líder empresarial Antonio Ermírio de Moraes desculpou Ricúpero (Folha de S. Paulo, 11/9/94, 1-2): "Acho impróprio tripudiar sobre uma pessoa só porque ela, querendo relaxar um pouco, depois de tanto cansaço, tomou para si um momento para liberar idéias, dizendo o que não sentia, não queria e não podia dizer". Sem comentários.

No mesmo estilo e com a mesma seriedade escreveu Marcelo Coelho, articulista da Folha de S. Paulo (7/9/94, 5-3): "Como todo mundo, eu gostava de Ricúpero. Sua beatitude o punha acima de qualquer suspeita. O sotaque simples, os olhos azuis, o cabelinho branco, o perfil magro, a fé: tínhamos um santo no Ministério. (...) o choque foi enorme. Sob as vestes de beato, entreviu-se o cínico, o duende, o sujo, o pagão. Mas será que não estamos exagerando um pouco? Quero entender Ricúpero, estou decidido a desculpá-lo. Desconfio que ele se perdeu pela pureza da própria alma. (...) Falou o que não devia. Mas (...) ele não estava encantado pelo poder. Estava, o que é normal, preservando com Monforte a própria inteligência, antes de uma entrevista oficialesca".

Aparece aí o lance que inocentou Ricúpero perante muita gente: a pose de santo, seguida pela aura de vítima e pelo pedido de desculpas. Sem ter elementos para avaliar a gravidade das afirmações do ministro (a palavra escrúpulo é mal conhecida, dizem algumas pesquisas) e do conluio com a Globo (pouco sabe o povão sobre qual deve ser o ordenamento jurídico e político das relações entre imprensa e governo e sobre suas implicações), boa parte da opinião pública literalmente não compreendeu o que estava se passando. E mesmo alguns que tinham elementos para compreender, a exemplo de Marcelo Coelho, encantaram-se com o ar sofrido de Ricúpero.

Pego em flagrante, sem ter como escapar das evidências, o ministro preferiu continuar representando seu papel: desculpou-se e apareceu como homem de gestos nobres ("Percebendo o erro, com sua habitual grandeza, (...) se desculpou perante a Nação, dizendo-se envergonhado do que fez", acrescentou Antonio Ermírio).

Era apenas jogo de cena, farsa? Não dá para saber ao certo. Como todo beato santarrão, Ricúpero ocultava debaixo da sotaina seu lado sujo e sacana, como se ele não existisse. Maltratado e mal assumido, este pedaço de Ricúpero o traiu: pouco acostumado a sair do esconderijo, apareceu quando não devia; maldoso, mas sem a malícia necessária, não pressentiu o perigo no estúdio de gravação. Estragou a festa. Inexperiência ou excesso de vaidade? Fica a dúvida.

Certo é que ele se recuperou logo. A carta apresentada já no dia seguinte é magistral. Milimétrica, calculada, trata de desviar a atenção daquilo que era de fato importante. Ao contrário da impressão que ficou, Ricúpero não reconhece ali qualquer erro substancial. Atribui tudo a vaidade e soberba. Os fatos antes postos a nu são cuidadosamente negados. Obra de profissional. Preservou todo o esquema a que ele servia. Se não salvou sua carreira política, salvou sua imagem de "grandeza e honestidade".

Erraram gravemente os que não quiseram esclarecer tamanho escândalo, esforçando-se por ocultar aquilo que veio à luz de forma tão inusitada. Talvez paguem caro no futuro por equívoco tão grave.

O que fica para nós? O mais fácil é acusar os aqui citados e muitos outros, apontar as barbaridades que escreveram, as concessões que fizeram para defender sua opção política; maldizer o poder da mídia e culpá-la por tudo; lamentar a ignorância dos brasileiros e até enveredar por argumentos perigosos, na linha de que o povão gosta mesmo de ser enganado e coisas do gênero.

Não é por aí. Os significados do episódio são bem mais amplos.

A aceitação pura e simples da verdade não é coisa simples, até porque a verdade não é uma só. É contraditória, é mais que uma. As representações da verdade procuram esconder estas sutilezas, estas fraturas. Não é fácil ir contra as representações. Elas reduzem as incertezas, delimitam os riscos, tomam compreensível uma realidade muito diferenciada e confusa, ajudam a esvaziar e diminuir o impacto de fatos incômodos e desafiadores.

Não é fácil aceitar certos fatos em toda a sua crueza e com todas as suas implicações. Ainda mais se eles contrariam ou destroem as representações em que se acredita e que sustentam valores e opções muito sensíveis. Quem for inocente atire a primeira pedra...

Carlos Eduardo Carvalho é economista e membro do Conselho de Redação de T&D.