As eleições presidenciais de 1989, no Brasil, parecem ter sido um laboratório do fenômeno mundial da crescente determinação dos meios de comunicação sobre a política, com pretensões a serem os portadores "do virtual monopólio da construção da dimensão pública social"1. As eleições vencidas por Silvio Berlusconi, o mais poderoso empresário de comunicação da Itália, em 1994, foi a aplicação de algo que o Brasil, em vários aspectos, antecipou para o mundo: a utilização sistemática dos sistemas de comunicação, orientada por objetivos políticos e amparada em técnicas publicitárias e em poderosos recursos de mobilização da subjetividade.
No Brasil, a maior rede privada de TV, a Rede Globo, entrou decidida a influir nas eleições que resultaram em Collor de Mello na Presidência. Potência é o que não falta a este grupo empresarial: atinge 99% dos domicílios com TV, abrange 4.484 municípios, controla 80% do mercado e quase dois terços do conjunto do mercado publicitário, e diretamente ou por meio dos grupos regionais afiliados, hegemoniza dezenove jornais diários, 83 emissoras de televisão e outras 31 emissoras de rádio AM e 49 FM2.
A intervenção das organizações Globo no processo eleitoral, com feições partidárias, ficou muito identificada com a célebre manipulação da edição do último debate, dois dias antes no segundo turno. Mas foi muito além disso: noticiários, programas humorísticos e, sobretudo, as novelas constituíram, com requintes de campanha publicitária, um quadro psicossocial voltado para assimilação de um perfil de candidatura que foi progressivamente sendo centrado na imagem do "caçador de marajás", Fernando Collor3.
Os diversos trabalhos de pesquisa publicados sobre o assunto perderam o impacto - não a importância! - depois que o próprio dono das organizações Globo, o empresário Roberto Marinho, admitiu que suas empresas intervieram partidariamente no processo eleitoral. Essa admissão foi feita pessoalmente para o candidato derrotado em 1989, Luiz Inácio Lula da Silva, em encontro mantido em setembro de 1992. Numa espécie de patético pedido de desculpas público, Roberto Marinho disse que optou por Collor porque se sentia ameaçado por Lula e Brizola. O momento desta confissão foi oportuno e estratégico. A Globo já estava com posição assumida em relação ao impeachment de Collor, havia contribuído, inclusive, com a figura dos "caras pintadas", cevada com a minissérie Anos Rebeldes, concluída às pressas, com nítida intenção de interferir na conjuntura. O contexto era de "lua-de-mel" entre a mídia e a sociedade.
Com perfeito senso de timing político, Roberto Marinho antecipou-se às denúncias sobre a dimensão do envolvimento da Globo na construção do fenômeno Collor - restritas à área acadêmica - e à reação dos setores organizados da sociedade que, talvez, pudesse estender-se contra os "criadores" de Collor. Sem dúvida, o senso de oportunidade de Marinho arrefeceu o debate sobre a influência da mídia como um todo. No movimento pelo impeachment de Collor, o gesto de Marinho soou como a oficialização de um armistício entre a mídia e a sociedade - com os veículos de comunicação batendo no "cachorro morto" do Collor -, o que produziu uma espécie de paráfrase da declaração que imortaliza o ex-deputado Ibsen Pinheiro: o que o povo quer, a mídia também quer4.
Lei eleitoral
O problema da mídia acabou ressurgindo em 1993 e com forte ressonância no interior do próprio Estado. A legislação eleitoral de 1994 - a Lei 8.713, de 30 de setembro de 1993 - introduziu importantes novidades em relação à mídia. A começar pelas severas restrições à veiculação do programa de televisão no horário eleitoral gratuito.
Conforme a lei, "os programas destinados à veiculação no horário gratuito pela televisão devem ser realizados em estúdio, seja para transmissão ao vivo ou pré-gravados, podendo utilizar música ou jingle do partido, criados para a campanha eleitoral". A lei também especifica que, nestes programas, "é vedada a utilização de gravações externas, montagens ou trucagens".
Estas restrições estão longe de ser a melhor solução para o problema, mas o que muitos não perceberam é que, de forma inédita, o Estado colocou diante de si e da sociedade uma contundente realidade: a exacerbação do uso de recursos publicitários e de linguagem de televisão, com forte apelo emocional e intensa sensibilização sensorial tem força para distorcer o processo eleitoral. O Estado assumiu formalmente, em relação ao programa de televisão do horário eleitoral gratuito, o problema do poderio da mídia.
Esta constatação torna mais legítimo do que nunca o questionamento da sociedade sobre tudo que acontece fora do horário eleitoral gratuito, nas 24 horas diárias de emissão de televisão e nas quase 3h45 que, em média, os brasileiros passam na frente deste veículo. O que acontece aí, obviamente, interfere no processo eleitoral e merece ser tratado como algo que é objeto de interesse público. Aliás, não interfere apenas no processo eleitoral, mas sobre a construção da cultura, das relações políticas e econômicas.
A lei eleitoral, entretanto, vai além das restrições ao horário eleitoral gratuito. Há uma ampliação e agilização do direito de resposta e a possibilidade de diversas formas de incidência da sociedade (ver box abaixo). A Federação Nacional dos Jornalistas, desde o ano passado, vem defendendo o uso destes e de outros instrumentos pela sociedade, inclusive com a criação de um comitê ombudsman da mídia que faria, utilizando espaço no horário eleitoral gratuito, uma análise da conduta da mídia e dos problemas verificados. Estas propostas foram incorporadas pelo Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação e pelo Movimento pela Ética na Política, o mesmo que centralizou a organização da sociedade civil na luta pelo impeachment e depois impulsionou o Movimento pela Cidadania e Contra a Fome. As idéias foram traduzidas na organização da Ação pela Ética na Campanha Eleitoral.
Receptividade
As idéias desta Ação foram recebidas com simpatia pelos presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado Federal. Foram admitidas como válidas pelo presidente do Tribunal Superior Eleitoral, ministro Sepúlveda Pertence, que admitiu a viabilidade da utilização do horário eleitoral gratuito para este fim. E foram recebidas com surpreendente entusiasmo pelo procurador da República, Aristides Junqueira. Durante três horas o tema foi debatido por todos os procuradores dos estados que estiveram reunidos em Brasília, no final de maio para tratar da questão eleitoral. O que todas estas personalidades perceberam é que as instituições hoje existentes estranham o tema, no sentido e na dimensão com que este está sendo abordado.
Num irado editorial, a Folha de S. Paulo, visivelmente impressionada com a receptividade destas propostas junto ao Estado, produziu um verdadeiro "ato falho" sobre o tipo de democracia formal que projeta para o país: "O comitê proposto pelo Movimento pela Ética na Política representa um precedente muito perigoso e que deve ser evitado porque passa ao largo dessa indispensável estrutura institucional de fiscalização e cria uma instância privada, particular e potencialmente parcial de julgamento da mídia. Por mais que não tenham força legal, as opiniões pessoais dos membros desse comitê - pois é a isso que se resumirão seus boletins - vão aproveitar da aura de legitimidade do Movimento, adquirindo caráter mesmo de uma condenação espúria porque feita por órgão não competente e sem qualquer tipo de garantia de isenção"5.
A Folha de S.Paulo, e provavelmente a maior parte dos empresários de comunicação, na verdade, têm horror à pluralidade política - quando não administrada por eles -, temem a criação de qualquer via de mão dupla no processo de comunicação, querem manter com os leitores e telespectadores uma relação balizada apenas pela decisão individual da compra de um jornal numa banca ou pela utilização dos seletores de canais ou botões de liga-e-desliga. Ou seja, aceitam se relacionar com os consumidores e não com os cidadãos. E se alguém pensar que a posição dos empresários aqui está sendo estereotipada. Vale observar o final do citado editorial da Folha: "Já no que se refere ao aspecto,apenas ideológico - e não puramente jurídico - a avaliação da conduta da imprensa, esta cabe apenas aos próprios leitores. É nas mãos destes que está o juízo do comportamento e da credibilidade dos órgãos de informação, assim como o poder de rejeitar aquelas que considerar indignas da sua confiança. Um poder, aliás, mortífero".
A Folha de S.Paulo bem que poderia ser mais coerente com seu proselitismo de marketing em defesa do papel da sociedade civil, neste país. Não pode negar o direito dos setores organizados de se expressarem sobre a atuação dos meios de comunicação que, pela sua crescente capacidade de determinação da cultura, da economia e da política, tornam-se objeto de interesse público. Qualquer ramo da economia que se relaciona com "consumidores organizados" teria uma atitude mais positiva do que a Folha e provavelmente saudaria a iniciativa de organização dos "consumidores" como fator de cobrança de qualidade da atuação empresarial. O que está em jogo, entretanto, não são apenas relações comerciais, é a própria estruturação do status quo, são as bases do poder real neste país.
Estes problemas, que começam a se explicitar com clareza e contundência no Brasil, antecipam aqui respostas a tendências em curso na maior parte dos países desenvolvidos, especialmente na Europa, com a progressiva privatização dos sistemas de comunicação, acelerada a partir da década de 80. Vivemos, sem dúvida, um problema contemporâneo.
Espontaneidade destrutiva
Desviando da análise da conjuntura brasileira, podemos constatar que os principais problemas envolvendo os sistemas de comunicação na contemporaneidade apresentam traços universais. O desenvolvimento destes meios foi acelerado a partir da década de 50, com a ampla disseminação da televisão, depois atingindo ritmo vertiginoso com o surgimento da microeletrônica e suas inúmeras aplicações. Tratam-se de meios com uma impressionante capacidade de exceder as finalidades particulares para as quais foram concebidas. A cultura, a política e a economia sofrem suas determinações de forma cada vez mais intensa e radical. Com os meios de comunicação de massa criam-se novas formas de socialização e intensifica-se o seu papel estruturador do cotidiano e de geração de efeitos sobre os indivíduos. São instrumentos de potência que se autonomizam, crescentemente, escapando ao controle da sociedade.
Na operação destes meios, um dos traços universais, constatado através da história, é a crônica incapacidade do Estado de atender adequadamente a totalidade das demandas da sociedade e dos indivíduos, especialmente o que se refere a entretenimento. Em contrapartida, o setor privado atua forçando cada vez mais os limites aceitáveis, explora as fragilidades humanas, evoca perversões e mesquinharias, opera a partir do fascínio pela violência, ativando reações primitivas e apóia-se no apelo à morbidez e nos traços esquizoparanóides dos indivíduos. Especialmente os meios eletrônicos, adotando linguagens sequer compreendidas pela maioria do público - fundadas num timing, num ritmo vertiginoso, na fugacidade, na superficialidade, na sedução e na exacerbação dos apelos emocionais e sensoriais - operam assustadores processos de desumanização.
Os meios de comunicação de massa têm imensas potencialidades, mas não estão sob controle democrático da sociedade. Não são orientados por opções conscientes. É como se tivessem sendo manipulados - sem se saber exatamente para que servem e quais seus efeitos - materiais com forte poder de contaminação. Além da eventual má-fé e deliberado uso perverso, há uma destrutiva espontaneidade na forma com que os meios de comunicação de massa são operados. Os setores organizados da sociedade ainda não têm uma compreensão estratégica sobre seu papel. Sentem o incômodo,dos seus efeitos, mas não têm um projeto para o seu controle e orientação.
Com significativas diferenças, verificadas de país para país, pode-se assegurar que estas características perniciosas dos sistemas de comunicação na contemporaneidade são universais. " Não há, no mundo, um modelo acabado no qual o Brasil possa se espelhar. Temos que compartilhar estas dificuldades da humanidade e debruçar-nos sobre as peculiaridades dos meios de comunicação de massa do país. Aqui, sob contro le predominantemente privado, gerou-se uma espécie de "experimento" sobre os efeitos positivos e degradantes que podem ser produzidos por meios com tanto impacto sobre a constituição das relações sociais. Somos uma vitrine mundial - a um só tempo e num aparente paradoxo - do que há de mais avançado e de mais nocivo no uso privado e particularista levado ao extremo.
É por isso que, num momento em que o país se defronta com um cenário internacional adverso, sem aliados naturais, e sendo dotado de potencialidades que despertam temores e cobiça nas grandes potências, os problemas referentes à comunicação de massa tornam-se efetivamente estratégicos na construção da democracia, da cidadania, da autonomia estratégica e do exercício da soberania. Inúmeros analistas apontam o Brasil como o principal país emergente, como aquele que reúne as melhores condições para alçar-se à condição de grande potência internacional, apesar de todas as nossas graves mazelas. Mas para isso, o Brasil tem que se encontrar e passar a arbitrar seus rumos. E para isso necessita da contribuição dos meios de comunicação de massa. Ou a sociedade controla estes meios que exercem decisivas determinações sobre a cultura, a política e a economia, ou o Brasil será ferido - talvez destroçado - por interesses externos, ou submetido ao arbítrio de interesses particulares cristalizados, ou desnorteado por uma espontaneidade que jogará pelo ralo nossas melhores possibilidades.
Para se constituir como uma nação substantivamente democrática, para caminhar no sentido da humanização, o Brasil deve deflagrar um processo civilizatório a partir do controle público dos meios de comunicação de massa. Esta é uma tarefa para agora. Não há protelações aceitáveis. Não há como abdicar das tarefas inerentes à democratização da comunicação.
A reação da Folha de S.Paulo, no atual contexto, representa o estertor de uma época. É o empresariado defendendo um status quo insuportável, temeroso de algo que ainda não foi inteiramente gestado: as novas relações entre o Estado, o setor privado e a sociedade.
Estratégia do controle
O Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação está lançando a idéia do controle público como um processo eminentemente indireto e político de estabelecimento de relações multilaterais, a partir de diversas instituições como, por exemplo, o Conselho de Comunicação Social. O principal objeto do controle público será do conteúdo dos meios de comunicação, a essência do que os meios produzem e veiculam. O controle será exercido para desbloquear a política como trânsito das essências. Por exemplo: o país será prejudicado se a sua política externa opera com determinadas concepções sobre a Iugoslávia, ou sobre os países da África mas, em contrapartida, o noticiário internacional dos veículos de comunicação apresenta enfoque radicalmente distinto, talvez informado a partir dos interesses de outros países.
As iniciativas de controle público permitirão que este problema seja detectado e debatido. Hoje não há instituições capazes de fazer algo "tão estranho". Diante deste problema, prosseguindo no exemplo, o Estado poderá reconhecer que não tem atuado adequadamente para informar a sociedade e, por outro lado, a sociedade poderá constatar que não tem dado a devida importância para as decisivas questões que envolvem a política exterior do país. A disputa pela legitimidade das posições permitirá correções de rumo na conduta de uma das partes, ou de todas. No mínimo, a explicitação das divergências assim será politizada.
É graças a este sentido politizado das relações multilaterais envolvendo o controle público que se pode relativizar a natureza da propriedade dos meios de comunicação como fator de condicionamento e determinação exclusiva da sua operação e cumprimento do seu papel social. Sejam estes submetidos a formas privadas, estatais ou mistas, os meios de comunicação sempre cumprem funções que são objeto de interesse público. E o controle público deve ser um fator de configuração desta natureza pública e que, se bem-sucedido, poderá ser vertebrador do desenvolvimento consciente da cultura nacional e de uma nova esfera pública. O público, assim entendido, não é um lugar especial, como pre tendem alguns, associado mecanicamente a alguma forma de propriedade, mas é uma qualidade das relações. O controle público constitui instrumento para o enfrentamento de questões e problemas que não encontram representação e não são acolhidos pelas formas institucionais próprias da era moderna e da tradição republicana. Pretende ser, portanto, uma resposta contemporânea aos problemas da contemporaneidade, como é o caso das determinações dos meios de comunicação sobre a cultura, a política e a economia.
Voltando à conjuntura
Há novidades importantes no contexto das eleições de 1994. Há instrumentos inéditos à disposição da sociedade, há um ímpeto transformador fundamentado numa nova abordagem do problema da comunicação, de parte dos setores organizados. Mas também há uma necessidade de reciclagem e capacitação da sociedade ainda a ser alcançada, no sentido da compreensão do caráter verdadeiramente estratégico da comunicação na construção da democracia, da cidadania e da afirmação da autonomia do país. Não são apenas os empresários que devem aprender a se comportar de forma civilizada. Também a sociedade civil precisa assumir condição de maioridade política.
Daniel Herz é diretor da Fenaj, membro da coordenação do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação. Foi coordenador da Comunicação da Prefeitura de Porto Alegre (gestão Olívio Dutra).