Os graves problemas enfrentados pelo mundo do trabalho são ainda mais profundos
Os graves problemas enfrentados pelo mundo do trabalho são ainda mais profundos
A partir dos anos 80, ao mesmo tempo em que se ampliou o processo de internacionalização (agora não apenas de empresas e mercados, mas também financeira), verificou-se um crescimento da produção e da produtividade marcadamente desiguais segundo diferentes regiões do globo, países, empresas e indivíduos. A ampliação da concorrência internacional, a maior competitividade e a distribuição desequilibrada dos benefícios do progresso técnico terminariam por romper as relações econômicas e sociais do padrão de desenvolvimento anterior, gerando a atual (des)ordem econômica internacional e trazendo em seu bojo uma verdadeira desestruturação do mundo do trabalho que, embora em movimentos contraditórios, coloca novas e graves questões às sociedades capitalistas no limiar do século XXI.1
O capital reestruturou-se em nome da maior competitividade e globalização internacional, movendo-se crescentemente contra o trabalho organizado, questionando o anterior compromisso social e sua relação salarial. Tratou-se de um esforço concentrado de questionamento de direitos ou conquistas dos trabalhadores e das sociedades democráticas contemporâneas, obtidos no ambiente internacional do pós-guerra, com bipolaridade, Estado de Bem-Estar, políticas econômicas voltadas ao pleno emprego e crescimento estável.
Embora esta reestruturação do capitalismo tivesse apontado para a constituição de um novo trabalhador, mais escolarizado, participativo e polivalente, podendo inclusive ser portador de uma revalorização da ética e da utopia do trabalho, estes reduziram crescentemente sua participação relativa no emprego total e encontraram-se em meio a um processo de rupturas da antiga relação salarial e do próprio mundo do trabalho.
O surgimento daquele "novo" trabalhador teve como contrapartida, portanto, uma crescente massa de trabalhadores que, perdendo seus antigos direitos e não se inserindo de forma competitiva, ainda que funcional, no novo paradigma-tecnológico, tornou-se desempregada, marginalizada ou empregada sob "novas" formas de trabalho e qualificação, em relações muitas vezes precárias e "não-padronizadas". Com a maior fragmentação e heterogeneidade do mundo do trabalho romperam-se diferentes formas de defesas ou seguranças do trabalho constituídas no pós-guerra e reverteu-se o longo período de realinhamento da relação capital/trabalho, favorecendo uma crescente insegurança e desestruturação do mundo do trabalho.
A ampliação da insegurança do trabalho deu-se sob diferentes prismas:2
- Ampliação do desemprego e de sua desigualdade (maior desemprego de jovens, de idosos ou menos qualificados e de duração superior a um ano). Em 1989-90, portanto antes do agravamento resultante da recente retração das atividades produtivas, as taxas de desemprego dos principais países avançados eram no mínimo duas vezes maiores do que aquelas observadas na década de 70, demonstrando que a retomada da atividade econômica de 1983-90 foi incapaz de recriar os empregos necessários à maior redução do desemprego.3
- Redução de empregos estáveis ou permanentes nas empresas e maior subcontratação de trabalhadores temporários, em tempo determinado, eventuais, em tempo parcial, trabalho a domicílio ou independente, aprendizes e estagiários. Embora muito diferenciados entre si, a maioria dos trabalhadores sujeitos a estas novas, atípicas ou contingenciais formas de trabalho fazem-no involuntariamente, sem garantias (aposentadoria, saúde etc.) e mal são pagos.
- Ruptura da relação salário/produtividade, favorecendo o menor crescimento dos salários em meio à retomada do crescimento da produtividade e, conseqüentemente, traduzindo-se na queda dos custos reais unitários da mão-de-obra. Depois de um longo período de aumento da participação dos salários no PIB, na maioria dos países avançados esta taxa já apresentava queda em 1985, em relação a 1979.
- Movimento da negociação e regulação do trabalho em direção a formas mais individualistas e promocionais, e da ampliação das formas de contrato em tempo determinado, tempo parcial, e até mesmo relações de trabalho sem contrato. Este movimento, ao valorizar a ação unilateral dos empresários e o menor compromisso com os trabalhadores, tendeu a reduzir o papel solidário de definição de padrões socialmente aceitáveis de condições, de organização e de relações de trabalho, que uma negociação centralizada, ainda que articulada com novas formas descentralizadas, poderia continuar exercendo na preservação e ampliação de melhores condições de vida e trabalho.
- A acentuada redução dos níveis de sindicalização, o deslocamento da participação das organizações de trabalhadores nos eventos sociais e o enfraquecimento de suas práticas de conflito e negociação.
Estas diferentes inseguranças refletiriam sob diferentes prismas um mesmo problema: a liberação de tempo de trabalho em escala social em meio à ofensiva do capital reestruturado. Em outras palavras, refletiriam a crescente redundância do trabalho, a desigualdade na repartição do trabalho e do tempo liberado sob a exclusividade da racionalidade econômica e da lógica do mercado auto-regulável.
Embora sempre presente na dinâmica capitalista, esta crescente redundância do trabalho foi enfrentada anteriormente por meio da redução do tempo de trabalho e das políticas públicas voltadas ao pleno emprego e à constituição do Estado de Bem-Estar. Depois de quase um século de reduções sistemáticas da jornada de trabalho, durante a década de 80, verificou-se nestes mesmos países uma estabilização ou até mesmo o acréscimo das horas de trabalho4. A estagnação da redução da jornada de trabalho, a transformação do padrão produtivo e tecnológico, a elevação da produtividade, o recuo da regulação e das políticas públicas, tenderam a acentuar a exclusão e a fragmentação social, recolocaram com mais intensidade a grande questão de fundo: se a economia contemporânea potencia ainda mais sua capacidade de produzir bens e serviços com uma quantidade cada vez menor de trabalho humano frente as mudanças que, no limite, afetam a própria lógica capitalista, como as sociedades poderão redefinir este trabalho e o seu lugar na vida dos indivíduos e das sociedades, rearranjar a sua distribuição e a maneira de produzir e de consumir, reduzir e dividir sua duração, repartir a riqueza e a renda produzidas de maneira mais solidária e eqüitativa?
Desde os anos 80, a ofensiva neoliberal incentivou as sociedades a organizarem-se sob a regra exclusiva da concorrência e do mercado auto-regulável em escala internacional e, ao mesmo tempo, ampliou as inseguranças do trabalho e dificultou a resposta àquela questão, seja por meio da constituição de um novo padrão de desenvolvimento capitalista, com regras pactadas de relações de trabalho e de um novo padrão de consumo, seja através da gestação de uma alternativa capaz de gerar a emancipação crítica do trabalho social.
Este novo "moinho satânico", com a maior e generalizada insegurança, fragmentação e desestruturação do mundo do trabalho em sociedades avançadas e supostamente baseadas no trabalho, tem gerado tanto o renascimento do nacionalismo de extrema-direita e da xenofobia, quanto o apelo, ainda tímido, em direção a novos caminhos capazes de fazer frente ao dualismo, à fragmentação e à exclusão social crescentes5.
E o Brasil com isso?
No Brasil a crise do emprego assume dimensões ainda mais graves. Aqui, ao contrário dos países desenvolvidos que alcançaram maiores níveis de igualdade em um Estado de Bem-Estar, esta crise superpõe-se às nossas condições estruturais de pobreza, flexibilidade do mercado de trabalho, ausência de relações democráticas de trabalho e de organização no local de trabalho, desigualdade na distribuição da renda e à estagnação da esfera produtiva por quase uma década e meia.
Aqui, além dos segmentos já estruturalmente marginalizados do mercado de trabalho - sejam aqueles subempregados, sejam aqueles literalmente excluídos da produção, do consumo e da cidadania pelo desemprego -, enfrentamos também tanto os efeitos da estagnação e da inflação indexada e crescente com a ampliação da pobreza e da exclusão, quanto os primeiros efeitos dessa modernização destruidora.
Através de políticas unilaterais e voluntaristas, com características neoliberais e antinacionais, iniciadas no governo Collor, realizou-se uma abertura de mercado irresponsável em meio a uma recessão sem precedentes, favorecendo uma reestruturação industrial defensiva, realizada sem negociações democráticas e sem qualquer compromisso social.
Esta falsa modernidade neoliberal ainda encontra ressonância no cenário econômico e político nacional, apesar das resistências que, embora desarticuladas, impediram um processo maior de desestruturação das bases materiais da industrialização e, conseqüentemente, dos trabalhadores organizados. Não sem outra razão o atual governo busca desqualificar as câmaras setoriais enquanto formas embrionárias - embora parciais - de regulação democraticamente negociada, aceita subordinar-se ao Consenso de Washington realizando um plano de estabilização monetária antinacional cujas conotações eleitoreiras a ninguém escapa, e procura resgatar aquela falsa modernidade como alternativa para o país. No entanto, seus custos sociais raramente são lembrados: cerca de dois milhões de postos de trabalho fechados entre 1990 e 1992, aumento da concentração da renda e da pobreza, em meio a mais grave crise social já vista no país.
Os impactos dessas políticas, após quatorze anos de recessão e condições estruturais de atraso e exclusão social, fizeram com que aproximadamente 8 milhões de brasileiros estejam hoje em situação de desemprego6, além de cerca da metade da força de trabalho estar confinada ao setor informal7/sup>, em sua maior parte sem acesso a previdência social, saúde e aposentadoria8.
Se o tema do emprego e do desemprego continuar a ser tratado com a insensatez ainda predominante, a crise social tornará o nosso país inviável. Ao atual contingente de desempregados, deve somar-se a cada ano 1,5 milhão de novos trabalhadores, fruto do crescimento da população, que pressionarão o mercado de trabalho na justa busca por um emprego. Caso nada seja feito, a violência, a pobreza e a fome continuarão a andar juntas nas grandes cidades do país e poderemos chegar ao ano 2000 com 15 milhões de desempregados.
Ataque frontal ao desemprego
Os trabalhadores brasileiros conseguiram, em plena crise, ao contrário dos países desenvolvidos, avançar na reconquista de direitos, na criação da CUT, na elevação dos níveis de sindicalização, na ampliação dos espaços de negociação e na conquista de maior reconhecimento social. Pela primeira vez na história brasileira, os trabalhadores organizados puderam postular sua real participação em um processo de transformações, na constituição de um novo projeto nacional e em uma inusitada aliança produtivo-distributiva, capaz de levar Luiz Inácio Lula da Silva à Presidência da República.
No entanto, a demora no enfrentamento da crise brasileira, seu agravamento nos anos 90 frente às transformações produtivas, tecnológicas e organizacionais dos países capitalistas avançados, dá nova dimensão ao problema do emprego e novos desafios para seu enfrentamento. Por um lado, os trabalhadores terão que consolidar uma ampla aliança produtivo-distributiva não somente capaz de ganhar as eleições como, também, assegurar depois da posse a requerida governabilidade em meio às indispensáveis transformações estruturais. Por outro lado, se impôs o enfrentamento em "tempo real" dos problemas referentes ao nosso passado de atraso, exclusão e heterogeneidade, ao nosso presente de crise do padrão de desenvolvimento e, finalmente, ao nosso futuro de inserção soberana no novo padrão tecnológico e produtivo.
O PT aceitou estes desafios. A geração de novos empregos, a melhoria da qualidade dos empregos já existentes e o apoio à reinserção dos desempregados no mercado de trabalho são absolutamente imprescindíveis para a plena cidadania dos brasileiros, objetivo central de nosso projeto. Estas são tarefas de comprometimento democrático de um Estado renovado, de empresas competitivas, mas socialmente ativas, e de trabalhadores solidários e envolvidos na constituição de um novo projeto nacional de desenvolvimento.
Não se trata, portanto, de apenas pretender o crescimento econômico. Este é absolutamente indispensável, sem dúvida, e nosso objetivo central será a ampliação da taxa de investimento dos atuais 16% do PIB para cerca de 25%, próximo da média histórica nacional. No entanto, o simples crescimento é reconhecidamente insuficiente para assegurar benefícios a toda a sociedade, diminuir as desigualdades e pôr fim à exclusão social.
Por isso, precisamos transformar o modelo de desenvolvimento, ampliando a participação do mercado interno de massas, possibilitando maior eficiência e competitividade do sistema produtivo nacional e assegurando o crescimento e a distribuição da renda. No entanto, o descaso em que foi sistematicamente relegado o problema do emprego no Brasil exige que, além do conjunto de políticas macroeconômicas destinadas à consolidação de um novo modelo de desenvolvimento, capaz de aliar crescimento e eficiência econômica, emprego e distribuição da renda, constitua-se um inusitado Programa Nacional de Emprego, que englobe as indispensáveis mudanças institucionais e políticas específicas visando maior geração de empregos, melhoria da qualidade dos empregos e apoio aos desempregados.
Por esta razão, a Frente Brasil Popular pela Cidadania propôs à sociedade o complexo programa "Mais e melhores empregos para os brasileiros", com o objetivo de atacar estes problemas simultânea e articuladamente, definindo também as fontes dos recursos para a sua execução. Estas propostas estão aí para a discussão durante a campanha e para mostrar que é necessário e possível iniciar o enfrentamento criativo e decidido dos problemas que afligem o mercado de trabalho brasileiro (desemprego, maus empregos, baixos salários e relações antidemocráticas de trabalho) a partir do primeiro dia do governo Lula.
Jorge Eduardo Mattoso é professor do Instituto de Economia da Unicamp e membro da Comissão Coordenadora do Programa de Governo Lula. Coordenou o programa "Mais e melhores empregos para os brasileiros".