Economia

O que está em jogo é a disputa entre dois projetos opostos para a sociedade brasileira

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Por mais que se tente rebaixar as eleições presidenciais a um mero confronto de personalidades ou a um concurso de acusações e calúnias, o que está em jogo em 1994 é a disputa entre dois projetos diametralmente opostos para a sociedade brasileira.

A consolidação da candidatura de Lula e a presença de Fernando Henrique Cardoso na segunda colocação, na reta final da campanha, tende a repetir a polarização verificada no segundo turno das eleições de 1989, entre uma proposta democrática e progressista, que agrupa as forças de esquerda e uma proposta conservadora, em torno da qual vão se alinhar as elites e os representantes do passado do país.

O passado social-democrata de Fernando Henrique transmite a falsa impressão de que se trata de uma disputa entre dois candidatos originários das mesmas forças da esquerda que, com maior ou menor empenho, dariam relevo à questão social e colocariam o Brasil nos rumos de uma sociedade mais justa. E as classes dominantes só estariam embarcando na candidatura FHC por falta de candidato próprio, condenados a engolir o personagem com mais chances de derrotar Lula, este sim o inimigo principal de seus privilégios, numa repri se de 1989.

Nada mais equivocado porque, em primeiro lugar, as elites não precisam e não costumam ter - nem aqui nem em outros países capitalistas -, o que entendemos por candidato próprio, ou seja um membro da Fiesp ou da Febraban (Federação Brasileira de Bancos), ou mesmo um político tradicionalmente vinculado a essas classes. Basta eleger alguém que represente seus interesses e seja obrigado a cumpri-los por meio de acordos políticos, constrangimentos das alianças e, naturalmente, do dinheiro. Se o escolhido tiver um verniz social-democrata, melhor ainda, porque assim poderá ganhar mais legitimidade-, ao camuflar os interesses particulares das elites, nos interesses gerais da Nação. Em segundo lugar, porque FHC defende uma proposta social-democrata pró-forma, mas esgrime justamente um projeto arcaico, com forte inspiração neoliberal, que pretende dar continuidade à modernização conservadora do governo Collor de Mello. Portanto, a aliança do PSDB com o PFL e outros partidos conservadores, longe de ser uma união tática, para derrotar o inimigo comum, é resultante de uma comunhão de idéias e propostas, que aproxima os ideólogos do partido. Daí a facilidade com que se dá a aproximação com representantes inequívocos do conservadorismo, como o ex-governador da Bahia Antônio Carlos Magalhães ou do prefeito de São Paulo, Maluf. Nem mesmo notórios membros do governo Collor foram excluídos. O economista Antonio Kandir, ex-secretário de política econômica da ministra Zélia, é candidato a deputado federal pelo PSDB. A família de PC Farias, por intermédio de seu irmão, o deputado Augusto Farias, hipotecou seu apoio à candidatura FHC. Isso não abrange todo o PSDB, no qual militam social-democratas autênticos, que se opõem a tal aliança, mas diz respeito à ala que já quis participar do governo Collor, e se agrupa em torno da candidatura FHC.

Lobo em pele de cordeiro

Deve ser por isso que a proposta preliminar de programa de governo do PSDB, divulgada na convenção nacional do partido que indicou FHC para presidente, repousa em generalidades, com boas intenções e forte conotação social, mas sem nenhuma palavra de como essas metas sociais serão alcançadas. A esta altura, já está claro que vale mais observar os meios e instrumentos de ação de um programa de governo do que as metas sociais, sempre generosas no papel, mas muitas vezes em franca contradição com a estratégia ou os meios de realizá-las. Em véspera de eleição, os lobos colocam pele de cordeiro e até o partido conservador mais empedernido vira socialista ou social-democrata. O programa preliminar do PSDB é simplista e genérico, e a sua meia dúzia de páginas são dedicadas à descrição das metas de emprego, saúde, educação e reforma agrária. A parte econômica restringe-se a um par de linhas que elegem o Plano FHC ou Real como a espinha dorsal do programa econômico de governo desse candidato e menciona, muito de passagem, uma vaga reforma fiscal, que simplifique o sistema tributário (e quem não quer simplificar o sistema tributário brasileiro?), não se sabe bem se para aumentar a carga fiscal ou diminuí-la. Fica claro, no entanto, o empenho em suprimir as barreiras constitucionais ao afluxo de capital estrangeiro na mineração e energia elétrica, o propósito de derrubar o monopólio estatal sobre as telecomunicações e afrouxar ou "flexibilizar" o do petróleo. A estabilização da economia deverá provocar "uma verdadeira avalanche de capitais que virão do exterior ou serão transferidos da especulação financeira para a produção"1Evidentemente, não é o caso de dispensar o capital estrangeiro que queira realizar investimentos produtivos, criar empregos e ajudar a elevar a taxa de investimentos, de modo a colaborar para viabilizarmos taxas maiores de crescimento do PIB. Porém, não é preciso desdobrar-se em concessões ou ajoelhar-se perante toda a sorte de exigências, que nem mesmo os países de origem desse capital concedem.

Essa ênfase na abertura ao capital estrangeiro e o acordo de renegociação da dívida externa são fortes indicadores da inclinação o Plano FHC para o o consenso de Washington. Ao que tudo indica, o Plano FHC foi previamente discutido e articulado com membros destacados dos organismos internacionais, como o FMI e o Banco Mundial. Por consenso de Washington entenda-se um conjunto de regras e princípios de organização econômica impostos por esses organismos, que são os guardiões do grande capital financeiro internacional, aos países devedores da chamada periferia do mundo capitalista. Os princípios norteadores do consenso de Washington são, em primeiro lugar, a concepção de um Estado fraco e incapacitado, tanto para promover e coordenar o desenvolvimento econômico, quanto para mediar e administrar o conflito distributivo. Trata-se de desregulamentar a economia, devolvendo ao mercado o destino dos preços e dos investimentos, não importando o quanto ele seja controlado pelos oligopólios. Em segundo lugar, implica uma abertura comercial e financeira que permita o livre fluxo de mercadorias e capitais, que não está subordinada a nenhum projeto de desenvolvimento, e, portanto, não discrimina cotas ou áreas de importação e tampouco fixa regras e limites para a entrada de recursos financeiros. Em terceiro lugar, adota-se uma política monetária austera, com pouco crédito e juros altos, e, na sua versão mais recente, com possíveis formas de atrelamento da moeda às moedas fortes internacionais, como no caso da dolarização.

A tradução desses princípios em medidas de política econômica, aplicáveis sobretudo em programas de estabilização, é: ajuste fiscal rigoroso, com corte de gastos sociais, recomposição das tarifas públicas, privatização indiscriminada, encolhimento do Estado, abertura comercial e financeira, liberação plena para o capital estrangeiro e política monetária austera, com pouco crédito e juros altos. Na década de 80, essa orientação impôs a redução de salários e a desvalorização do câmbio para a fabricação de superávits comerciais que propiciassem os vultosos pagamentos do serviço da dívida. Nos anos 90, substituiu-se a desvalorização do câmbio pela âncora cambial e atrelamento das moedas locais às moedas fortes, nas chamadas dolarizações. Nisso consiste a artilharia neoliberal, baseada nos princípios de desregulamentação dos mercados, abertura comercial e financeira, encolhimento do Estado e bom comportamento na renegociação da dívida externa.

Do consenso de Washington ao plano FHC

É fácil identificar a marca do consenso de Washington no Plano FHC, descontadas as limitações impostas pelas circunstâncias de um governo fraco, com pouca legitimidade e em final de mandato. O ex-ministro da Fazenda começou agradando os credores internacionais, apressando a assinatura do acordo de renegociação da dívida externa, em condições desfavoráveis seja do ponto de vista da desvalorização do principal, que resultou numa redução de apenas US$ 4 bilhões, dos US$ 32,5 bilhões em renegociação com o setor privado, seja do ponto de vista da forma de contratação das garantias de US$ 3,8 bilhões.

A fase 1 do Plano FHC consistiu num ajuste fiscal clássico, dentro da cartilha ortodoxa, que implicou a redução de gastos sociais, principalmente em saúde e educação, custeio e investimento de vários ministérios e a criação de um Fundo Social de Emergência, um cheque de US$ 15 bilhões que o Ministério da Fazenda poderá utilizar para reforçar despesas ou tapar buracos do orçamento. Num quadro de deterioração dos serviços sociais e de empobrecimento generalizado, o corte adicional de recursos para a área social e de infra-estrutura, agrava ainda mais o quadro de miserabilidade a que foi condenada a população brasileira.

Ninguém nega que um ajuste fiscal é uma das condições básicas para se implantar um plano de estabilização bem-sucedido no país. Porém, pode-se fazê-lo sem sacrificar mais uma vez os assalariados, mas maximizando a receita pela intensificação do combate à sonegação, equipando melhor a Secretaria da Receita Federal e aprovando leis que inflijam punições severas aos infratores. Num segundo momento, a receita pode crescer em virtude do reaquecimento da economia, que é o melhor remédio para melhorar as contas públicas. Do lado da despesa, deve-se racionalizar todos os gastos, começando com a redução das despesas com o pagamento de juros sobre a dívida, que hoje tendem a absorver cerca de 25% de toda a receita fiscal. Em segundo lugar, reduzindo os custos das obras e serviços contratados pelo governo, eliminando a caixinha política, que onera essas despesas entre 10% e 30%, e estabelecendo o pagamento em dia para fornecedores e empreiteiros, de modo a que eles estornem os juros e taxas de risco embutidos nesses preços. Em terceiro lugar, abrindo as concorrências públicas para pequenas e médias empresas, de modo a abaixar os preços pelo aumento da concorrência. Em quarto lugar, redirecionando as transferências voluntárias para estados e municípios. E em quinto lugar, revendo os subsídios e incentivos fiscais, que ainda representam cerca de 2% do PIB. Note-se que tudo isso pode ser feito ainda antes de se fazer uma reforma fiscal, esta sim um passo decisivo para o estabelecimento de um equilíbrio adequado e permanente das contas públicas.

Na fase 2, o Plano FHC objetivava derrubar a inflação inercial promovendo a superindexação da economia pela introdução de um índice diário de inflação, a URV, que ao se transformar em moeda, deixou todos os ativos sem indexação. Trata-se de um mecanismo engenhoso porque derruba a inflação instantaneamente sem a necessidade de um congelamento formal, mediante um simples jogo de introdução e supressão de regras de indexação. Numa primeira etapa, todos os valores em URV, e em seguida em real. Só que nessa conversão foi dado o pulo do gato. Os salários foram obrigados a passar para URV pela média de novembro a fevereiro, enquanto os preços foram se traduzindo nesse índice pelo pico. Essa liberdade de conversão concedida aos preços tinha o intuito de acomodar o conflito de preços relativos que se estabelece nesse tipo de processo (conflito entre atacado e varejo, indústria e comércio etc), antes da entrada em vigor do real, e ainda produzir uma corrosão preventiva dos salários, neutralizando um inevitável aumento que viria com a queda brusca da inflação e da supressão do imposto inflacionário. Na verdade, não foram somente os salários que sofreram essa discriminação. Entraram na dança também os contratos comerciais, as tarifas, assim como as mensalidades escolares, e talvez os planos de saúde e os aluguéis, cujas regras ainda não estavam definidas, por ocasião do término deste artigo. Ao serem privados da indexação, estes ativos ficaram na prática congelados por um ano, sendo facultado aos salários a possibilidade de negociar aumentos. Naturalmente será muito mais fácil aumentar os preços, o que requer apenas acionar as maquininhas de remarcação, do que aumentar salários, que implica empreender toda uma luta política ou negociação.

Um neoliberalismo envergonhado

Podemos supor que os idealizadores do Plano FHC não têm a pretensão de terem esvaziado o conflito distributivo por meio desse mecanismo de desindexação. Porém, trataram de aplacá-lo, garantindo aos preços uma série de custos fixos por um tempo, provavelmente até as eleições, ao impedir aumentos dos itens mencionados. De resto, caberá à reforma monetária segurar o ímpeto dos preços por meio de uma política de emissão rígida e de altas taxas de juros, reduzindo o crédito, o investimento e os estoques.

Nesse contexto, os preços deixa riam de subir por falta de demanda, pela ação da concorrência dos produtos importados e pela esperteza do consumidor, instigado a procurar preços mais baixos. Isso indica que vários anos de políticas ortodoxas recessivas, com contenção de demanda e juros altos, não foram suficientes para demonstrar que, numa economia altamente oligopolizada como a brasileira, as leis de mercado não funcionam para conter preços.

Somente com uma administração do conflito distributivo, por meio de sindicatos, entidades empresariais, e sociedade civil em geral, as regras de conversão na nova moeda mecanismos de arbitragem e negociação coletiva, como no caso das câmaras setoriais, combinados com enérgica fiscalização e controle de aumentos abusivos de preços, com sanções severas para os infratores, pode-se alcançar um horizonte estável de preços2O governo poderia ter utilizado esse mecanismo de combate à inflação inercial de modo mais eficiente e duradouro se tivesse, em primeiro lugar, discutido com os sindicatos, entidades empresariais, e sociedade civil em geral, as regras de conversão na nova moeda, buscando uma regra de consenso para a conversão, a ser respeitada por todos e fiscalizadas por instâncias de negociação de conflitos, em que trabalhadores, empresários e governo estariam deliberan do sobre aumentos e realinhamentos corretivos, de modo a estabelecer o controle social da inflação, contando com o comprometimento político de todos os segmentos da sociedade. O descumprimento dos acordos, seria punido com severas penas, impostas por uma legislação antiabusos de poder econômico realmente eficaz e sumária, e com todas as sanções que o Estado pode praticar, contra os recalcitrantes, tais como o fechamento das portas das instituições oficiais de crédito, a fiscalização mais intensa de todas as atividades das empresas, riscar os infratores da lista de fornecedores e prestadores de serviços para o governo, e assim por diante.

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Mas o Plano FHC ignora mecanismos de negociação e administração política do conflito distributivo, e prefere o mercado e a política monetária austera como guardiões dos preços, insistindo num princípio neoliberal de que o mercado tem a capacidade de regular os preços, bastando para isso abrir mais as importações e expor as empresas a maior concorrência. Em alguns casos, a abertura das importações pode rebaixar os preços das mercadorias, principalmente se o câmbio estiver sobrevalorizado. Porém pode custar empregos e causar danos irreparáveis à estrutura industrial local, implantada com muito suor e sacrifício do povo brasileiro. Uma abertura gradual e planejada, subordinada a um projeto de política industrial, pode ser salutar e aumentar a competitividade da indústria em alguns setores, sem os riscos da abertura irrestrita do consenso de Washington, que causa desindustrialização, como ocorreu na Argentina, desmantelamento da estrutura local, pode encobrir práticas de dumping social e outras conseqüências, que irão agravar o desemprego, um dos principais problemas que o país atravessa neste momento. Por insistência do presidente Itamar, a equipe econômica teve que engolir a aprovação de uma legislação contra abusos de poder econômico, que ainda é incipiente e pode ficar na gaveta, se depender da vontade dos condutores do plano.

A fase decisiva virá com a reforma monetária prevista na fase 3, iniciada em primeiro de julho de 1994, com a troca de moeda e as novas regras de emissão e lastreamento que a acompanham3. A fixação do câmbio, apesar da inflação em real, não só barateia as importações, como dará a sensação de firmeza da nova moeda, que aparentará ter o mesmo poder aquisitivo que o dólar. A equipe econômica não foi suficientemente insensata para fazer uma verdadeira dolarização como na Argentina, estabelecendo a conversibilidade e correndo o risco de perder rapidamente as reservas, na primeira onda de incertezas que viesse a ameaçar o plano. Mesmo essa dolarização meia-sola, acaba atrelando a política monetária brasileira à disponibilidade de dólares no circuito financeiro internacional e a sua disposição de virem para o Brasil. Dessa maneira, subordina-se a política de emissão, o volume de crédito e, no limite, a fixação da taxa de juros, não as reais necessidades de crédito ou financiamento do desenvolvimento, que venham a ser empreendidos pelo Estado brasileiro, mas sim às flutuações da taxa de juros no exterior, à disponibilidade de dólares e sua disposição para virem para o Brasil. Isso deixa a política monetária prisioneira ou de uma taxa de juros permanentemente e significativamente mais elevada do que a internacional, para atrair os capitais, ou de uma escassez de meios de pagamento, caso o ingresso de recursos externos for insuficiente. Ambas as coisas apontam para uma política monetária restritiva, condenada a juros elevados e escassez de créditos, bem a gosto do ideário neoliberal.

A entrada em vigor do real deverá baixar significativamente a taxa de inflação, e será acompanhada por uma bolha de consumo, a esta altura bastante minimizada pela corrosão salarial da fase 2, principalmente a de junho, parte da qual escapará do índice oficial de inflação. Será uma melhoria fugaz e momentânea para seduzir o eleitor a votar em FHC, que se dissipará tão logo as umas sejam abertas, repetindo o estelionato eleitoral do Cruzado. No entanto, será difícil esconder do cidadão mais avisado os problemas que estão sendo. ocultados debaixo do tapete, e explodirão, como uma verdadeira bomba de efeito retardado, na cara dos incautos que acreditarem no plano. Em primeiro lugar, ficará claro que o orçamento federal não está equilibrado e contém uma forte subestimação dos gastos com juros, que deverão ultrapassar as projeções oficiais em mais de US$ 10 bilhões. Em segundo lugar, a defasagem cambial e a perda do superávit comercial, deixará as contas externas vulneráveis para o novo governo que assumir em primeiro de janeiro de 1995, com baixas reservas e evasão de capitais. Em terceiro lugar, as taxas de juros altas, as incertezas e o ingresso de importações agravarão o problema do desemprego, com todas as conseqüências sociais que o acompanham. Nem mesmo a bolha de consumo será capaz de ampliar o emprego porque se realizará pela maior ocupação da capacidade instalada, queima de estoques, aumento das horas extras, importações e outros expedientes que não aumentam os custos fixos das empresas, temerosas com o futuro.

Nos próximos meses, quando os salários, aluguéis, contratos, mensalidades e outros ativos, que ficaram desprotegidos, começarem a ser corroídos pela inflação em real, desencadearão movimentos defensivos, que recolocarão o conflito distributivo e o problema da inflação com toda a gravidade.

Guido Mantega é economista e professor da Fundação Getúlio Vargas.

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