A derrocada do socialismo real determinou violenta redefinição da correlação mundial de forças. Tais acontecimentos mostram já sua real essência. Hoje o Leste é um território política, econômica e socialmente semi-arrasado. Esfumam-se as promessas de paz e progresso sob a égide do capital. Na Europa do Leste, o capital alcançou uma vitória histórica. Com a destruição do regime de economia planificada e propriedade social, o capital reconquistou espaços perdidos nos últimos setenta anos. A baixo custo, apropria-se da força de trabalho, da tecnologia, da indústria, das matérias-primas e dos mercados dos países derrotados. No Velho Continente, a construção da unidade européia dá-se segundo as necessidades do grande capital e aprofunda o desemprego, a perda de conquistas sociais, o debilitamento das organizações sindicais e políticas democráticas, operárias e de esquerda. Tal processo avança com a crescente gestão dos interesses gerais sem a participação real dos interessados (negativa de voto aos imigrados; controle dos meios de comunicação; forças armadas profissionais etc). O desmoronamento dos partidos operários reformistas e das organizações de esquerda-revolucionária alimenta os partidos direitistas e fascistas, e não a social-democracia. Por todo o mundo, espaços de resistência social, nacional e antiimperialista, duramente conquistados nas últimas décadas, que já se encontravam em difícil situação, desarticularam-se vertiginosamente com a derrocada da URSS. A inexistência de relações de trocas alternativas obriga países como Cuba, Vietnã, Coréia do Norte, a estabelecerem, através do mercado internacional, relações de crescente submissão com o grande capital. Nas atuais condições, a restauração do capitalismo em Cuba é um processo inevitável, apesar das profundas raízes da revolução no país. O socialismo não pode ser construído em uma ilha cercada e isolada. Prossegue a decadência social do Terceiro Mundo sob as políticas neoliberais. Regiões da Ásia, África, América e Oceania ingressam em situações literalmente neobarbáricas. Com a derrota das economias planificadas, a razão neocapitalista se sobrepõe à proposta de uma reorganização social baseada na solidariedade e na racionalidade humana. A capitalização, racionalização, competitividade e rentabilidade das unidades produtivas isoladas e a internacionalização da produção tornaram-se a pedra angular da reorganização mundial. A desregulamentação das relações sócio-econômicas; a retração das responsabilidades do Estado; o capital, a concorrência e o mercado, como únicas formas de harmonização social, são concepções impostas pela ditadura neoliberal que varre o mundo. O lucro do capital tornou-se a pedra de toque social neste fim de milênio. A reorganização mundial capitalista determina o abandono das idéias universalistas herdeiras da Revolução Francesa - racionalidade, socialismo, democracia, autodeterminação, igualdade etc. As únicas razões globalizantes devem ser as do capital. Como é comum em períodos de transição, a ordem emergente fecunda sua retórica, com um novo conteúdo, em idéias do passado que nega. Em uma última e cínica homenagem ao Século das Luzes, o capital luta por uma ordem mundial supranacional e supra-estatal, baseada nas necessidades da grande produção capitalista. Proletários sem Pátria A nova divisão internacional do trabalho aprofunda a diferença entre nações ricas e pobres, entre dominantes e dominadas, ou, em uma mesma nação, entre ricos e pobres, entre empregados e desempregados. A nova ordem necessita, objetivamente, para desenvolver sua potencialidade, de novas formas de organização e de dominação sociais e nacionais. O sonho de um mundo sem fronteira assume um outro conteúdo. A nova ordem tende à internacionalização radical da economia no bojo da constituição de grandes blocos econômico-financeiros - Nafta, CEE, Ásia etc. O que sugeriria a superação dos Estados e a mundialização das relações econômicas. A hegemonização dos grandes blocos por potências nacionais - EUA, Alemanha, Japão - assinala o caráter aparente da dissolução dos Estados Nacionais.
A crise econômica mundial, a derrota das propostas sociais universalistas, a internacionalização da economia, a atomização das relações econômicas, a formação de mercados supranacionais etc sugerem soluções territoriais para os problemas sócio-econômicos. O grande capital necessita que regiões do mundo conheçam formas reduzidas ou inexistentes de independência nacional, a fim de que a circulação livre de capitais, mercadorias, força-de-trabalho e matérias-primas se desenvolva segundo suas necessidades. A vontade separatista das regiões enriquecidas constitui um fenômeno historicamente novo. No passado, os territórios hegemônicos defenderam uma unidade nacional questionada pelas regiões periféricas exasperadas por um semicolonialismo interno. A Inglaterra vergou o independentismo irlandês, e o Norte dos EUA, o sulino; o reino piemontês conquistou o Meridião italiano; a Corte brasileira reprimiu o separatismo provincial etc. Atualmente, vivemos a inversão tendencial desta orientação. Territórios nacionais desenvolvidos procuram separar-se dos atrasados. No século XIX, a partição colonial do mundo foi exigida pelas necessidades da produção capitalista nacional européia. No século XX, a emergência dos EUA como potência mundial e a internacionalização do capital apoiaram a idéia da autodeterminação nacional relativa das colônias. A doutrina da autonomia nacional almejava quebrar o monopólio colonial que travava o capital ianque e facilitar a internacionalização da produção. A autodeterminação dos países coloniais assumiu outros conteúdos com o terceiro-mundismo e com a fusão da luta social e anticolonial. Hoje, no contexto das soluções neoseparatistas, os territórios industrializados, em geral importadores de mão-de-obra, relacionariam-se, de forma desembaraçada, com trabalhadores anteriormente portadores de direitos sociopolíticos nacionais. Com o fim da solidariedade nacional, as regiões ricas garantiriam sua prosperidade, cercadas por bolsões de pobreza. Implementaria-se territorialmente as receitas darwinistas amplamente em uso em nível social. Quanto ao Terceiro Mundo, a gênese de microestados permitiria uma exploração intensiva através, por exemplo, da separação territorial dos recursos naturais e das populações. Regiões da Europa rica conhecem fortes tendências separatistas. As ligas nortistas dominam politicamente o Meridião italiano e propõem o rompimento dos laços nacionais com o Sul atrasado, monopolizando as riquezas drenadas durante mais de um século de unitarismo. Grande parte do movimento operário nortista é formado por operários sulinos. A ex-Iugoslávia é apenas uma das regiões européias onde tais forças centrífugas neste caso, apoiadas sobretudo pelo grande capital alemão - explodiram com inusitada violência. Frágil Unidade O unitarismo nacional brasileiro é fenômeno histórico recente. Nem a descoberta, em 1500, nem a Independência, em 1822, assinalam o real nascimento do Brasil como comunidade de habitantes unidos por sólidos laços nacionais. Como sugere a América Espanhola, não podemos explicar nossa unidade apenas a partir de raízes culturais, lingüísticas e históricas comuns - portuguesas, tupi-guaranis ou africanas. Por séculos, nas capitanias ou províncias, os "brasileiros" permaneceram, lado a lado, ignorando-se, voltados para o Atlântico e para a Europa.
A unidade brasileira começou a consolidar-se a partir da segunda metade do século XIX e, sobretudo, quando o processo de industrialização que, apesar das disparidades sociais e regionais, integrou o país em uma rede de complexos e profundos laços econômico-sociais. Foi a partir da década de trinta que os brasileiros passavam a se olhar e a depender, ainda que contraditoriamente, uns dos outros. O sucesso exportador da economia brasileira, no contexto da violenta retração do mercado interno, não é estranho às questões que nos colocamos, atualmente, sobre a unidade nacional. Tal fenômeno cria bases para o desenvolvimento de forças centrífugas nas regiões produtoras voltadas para o exterior, que se interessam, naturalmente, por seus mercados, e desinteressam-se de apêndices territoriais economicamente "descartáveis". Mercados supranacionais como o Mercosul fortalecem estas tendências. O brasileiro encontra-se angustiado. Num movimento de alienação e de crescente desânimo na política tradicional, sentimento impulsionado por furiosa campanha da imprensa, parte da cidadania identifica como causa das dificuldades nacionais o Estado federal e, sobretudo, Brasília, sede de uma Roma devassa onde senadores imperiais se concedem somas, para polir os dentes, que a maioria da população não recebe, após anos de trabalho, para sustentar a família. Tal sentimento é sobremaneira forte no Sul, crescentemente à margem - política e economicamente -dos centros nacionais de decisão. Apesar dos grandes desníveis sociais, a região Sul é a parcela da federação que possui os níveis mais harmônicos de distribuição de riquezas. Nela resiste uma importantíssima classe média que se desespera com a real possibilidade de perder posições conquistadas nas décadas anteriores: acesso à educação básica e universitária, à saúde, à moradia, ao lazer, ao trabalho etc. Devido às suas especificidades,uma parcela da população gaúcha começa a acreditar numa mítica redenção através da simples ruptura dos laços com o centro da perdição Brasília. A esta idéia associa-se a ilusão egoísta de manter o relativo bem-estar sulino com a secessão com o Nordeste miserável. Defende-se que o separatismo favoreceria as regiões brasileiras ricas. Sugere-se como exemplo a potencialidade de um micro-Estado que abarcasse o vale do rio dos Sinos, no Rio Grande do Sul, ou ó ABC, em São Paulo. A sua capacidade exportadora garantiria a importação de tudo aquilo que não produzisse. As matérias-primas e a mão-de-obra seriam obtidas, nas melhores condições, nas regiões vizinhas menos desenvolvidas. O secessionismo de regiões despovoadas e ricas em recursos naturais, como a Amazônia, garantiria uma alta renda per capita aos seus habitantes. O sentimento neo-separatista sulino é ensejado pelas determinações mundiais mais amplas já esboçadas. Entretanto, ele constitui um movimento historicamente determinado, e possui suas raízes na sociedade gaúcha. Tal dualidade permite que grupos sociais conquistados pelas ilusões neo-separatistas acreditem estar dando continuidade ao separatismo farroupilha.
Em geral, no passado, as nossas elites regionais e nacionais souberam manter sob controle as classes subalternas, que intervieram apenas de forma subterrânea e não explícita nas grandes questões políticas e sociais. Tal fenômeno determinou que a história nacional conhecesse uma série de paradoxos aparentes. Na França, a oposição entre monarquia e república assumiu e assume conteúdos políticos e ideológicos. A esquerda popular é republicana e a direita conservadora, antijacobina ou monarquista. No Brasil, historiadores e políticos louvam a monarquia dos Braganças e a república de Deodoro, sem verem nisso incoerência. A Revolução Farroupilha é mito fundador da ideologia sulina. Revolta das elites para a defesa dos interesses pastoris, ela nunca assumiu caráter democrático e popular. Os farrapos jamais se propuseram a abolir a escravidão ou repartir as terras. Cada ano, sem contradições aparentes, o movimento independentista é rememorado como festa máxima do povo gaúcho, ao lado da Independência e da República unitarista. Os gaúchos festejam a separação e saúdam a união. Isto porque as elites gaúchas, em épocas distintas, desejaram e participaram dos três movimentos. O separatismo farroupilha, parte da confusa cultura histórica sulina, é importante ponto de apoio para operações ideológicas conservadoras. A gênese de sentimentos separatistas encontra também apoio em especificidades geográficas, econômicas e étnicas sulinas. O Rio Grande do Sul é o único estado histórico que faz fronteiras com duas nações estrangeiras Argentinas e Uruguai - e com apenas um estado nacional - Santa Catarina. De certa forma, os gaúchos encontram-se no fim do Brasil. Parte crescente da produção primária, secundária e terciária gaúcha destina-se ao mercado internacional. O estado possui bolsões quase homogêneos de população descendente de imigrantes europeus não-lusitanos. Num sentido meramente étnico, o gaúcho pouco tem a ver com o paraense, o amazonense ou o baiano. Sobretudo a população gaúcha de origem italiana pode tornar-se de cultivo de movimentos separatistas e xenofóbicos. Setores médios ítalo-gaúchos, golpeados pela crise, sonham com a obtenção da dupla nacionalidade e um retorno à mítica pátria dos bisavós, tida como terra da promissão. Algumas vezes, este estado de espírito associa-se à glorificação das origens étnicas itálicas -- sobretudo nortistas - e a uma desvalorização das raízes nacionais. Desde os últimos meses, com o apoio político e financeiro externo, organizam-se no Rio Grande associações culturais e células políticas das ligas neofascistas e neo-separatistas italianas. Desemprego, inflação, insegurança etc levaram multidões de alemães a optaram por soluções que, hoje, nos parecem, no mínimo, exóticas. Há dois anos, um político ou cientista social que defendesse o separatismo seria visto como personagem folclórico. Compreende-se por que o líder máximo separatista do Rio Grande do Sul seja um homem como Irton Marx, produto de uma época em que a idéia galvanizava iluminados, esotéricos e caçadores de Ovni. O sentimento separatista sulino é ainda um movimento superficial e desorganizado. Entretanto, começa a se mostrar terreno fértil para operações demagógicas. Há poucos meses, o governador Alceu Collares alcançou grande apoio regional suprapartidário agitando a bandeira da luta contra a exploração do Rio Grande do Sul rico pelo Nordeste miserável. Medidas federais repressivas contra os grupos separatistas organizados contribuirão para fortalecer sentimentos antinacionais. Ainda mais porque elas atentam contra o direito de expressão política da cidadania. Atentados racistas antinordestinos sugerem que tais sentimentos antinacionais poderão desenvolver-se, também, em São Paulo, coração do Brasil industrializado. A grande maioria da população sulina ainda acredita na política como caminho para a superação das suas dificuldades. O grande fenômeno político sulino não é o separatismo mas o recuo do populismo brizolista e o avanço do Partido dos Trabalhadores. Pela primeira vez, em sua história, Porto Alegre apostou na continuidade administrativa. O prosseguimento da crise nacional ou um eventual avanço das forças populares, possivelmente, impulsionará o sentimento separatista, ou como reflexo do desespero social, ou como arma política contra a organização popular. Nos dois casos, certamente aparecerão líderes independentistas mais "confiáveis" do que um Irton Marx. Não existem ainda indícios de que importantes interesses exteriores apóiem firmemente o separatismo gaúcho. No Brasil e no exterior, o separatismo das regiões ricas constitui uma miragem. As novas nações liliputianas, ilusoriamente ricas, seriam e são obrigadas a vergarem-se, despudoradamente, diante dos grandes Estados, no relativo ao desenvolvimento tecnológico, às relações diplomáticas, às trocas internacionais, à independência nacional etc. A Eslovênia já constitui um quase protetorado da Alemanha, que promoveu e apoiou a balcanização da Iugoslávia. O recurso ao ideário separatista e xenofóbico é excelente caminho para a divisão e enfraquecimento das forças populares. Sobretudo grandes nações como o Brasil, debilitadas por graves problemas e possuidoras de regiões desenvolvidas e de espaços atrasados, conhecerão fortes movimentos autonomistas nos próximos tempos, caso não encontrem soluções nacionais e sociais para suas dificuldades. Mário Maestri é doutor de História (UCI, Bélgica) e professor da UFRGS