[nextpage title="p1" ]
Após dez anos de crise, caracterizados por estagflação; choques de preços do petróleo; choque da taxa de juros e consequente instabilidade financeira; relativa paralisia dos fluxos de acumulação produtiva de capital e expressiva redução das taxas de incremento da produtividade - entre 1973 e 1983 -, as principais economias industriais reencontraram a senda do crescimento econômico. E em consequência desta decisiva inflexão em sua trajetória, oito anos consecutivos de expansão sustentada, com estabilidade de preços, marcaram a evolução da economia mundial capitalista, entre 1983 e 1990.
Contudo, se as taxas médias de crescimento, nesta fase recente, não foram tão espetaculares, quanto às obtidas na "idade de ouro" do pós-guerra é, contudo, relevante destacar:
A vitória da estabilidade e da capacidade de sustentação do crescimento, sobre os recorrentes surtos de forte especulação cambial, causados pelo gigantesco e continuado desequilíbrio comercial dos EUA contra o Japão e a Alemanha. E, ainda, sobre dois verdadeiros terremotos especulativos ocorridos nos mercados mundiais de capitais, em outubro de 1987 e em janeiro de 1990, a partir das violentas "quebras" verificadas, respectivamente, nas bolsas de valores de Nova Iorque e de Tóquio.
Salienta-se também a retomada firme dos fluxos privados de acumulação de capital (com um pico globalmente sincronizado em 1988), acompanhados por uma sensível recuperação do incremento da produtividade e, mais importante, por uma aceleração crescente da difusão de inovações econômicas (técnicas, organizacionais e financeiras), nas principais economias industriais capitalistas.
A compreensão de que estas duas dimensões foram fortemente interdependentes é intuitiva. De um lado, a capacidade política de coordenar, com credibilidade, a estabilidade macroeconômica e, de outro, a aceleração da acumulação produtiva de capital com inovação, reforçaram-se mutuamente - alimentando um círculo virtuoso de expansão com estabilidade de preços, expressivo incremento da produtividade e aumento moderado, porém contínuo, dos salários reais.
A capacidade política de coordenar a conjuntura, apagando-se incêndios potencialmente devastadores com presteza, ficou evidenciada principalmente pela atuação harmoniosa das autoridades econômicas e, em especial, pela eficácia dos condutores da política econômica norte-americana em algumas situações decisivas. Neste sentido, cabe destacar: a) a rápida e coesa reação à surpresa do default mexicano, em 1982; b) a acomodação das falências financeiras, imobiliárias, agrícolas e especulativas nos EUA, entre 1983 e 1989; c) a notavelmente bem-sucedida orquestração da desvalorização planejada do dólar, entre 1985 (Acordo do Plaza) e 1987 (Acordo do Louvre), com fixação de mecanismos cooperativos de contenção à especulação cambial entre os bancos centrais; d) a competente e rápida atuação compensatória do FED, em 1987, e do Banco do Japão, em 1990, visando neutralizar a propagação dos impactos financeiros das "quebras" de suas bolsas de valores; e) o tratamento coordenado, duro e objetivo dispensado aos países devedores, evitando a ocorrência de defaults simultâneos e a formação de uma efetiva aliança entre aquelas Nações; t) a administração, ao mesmo tempo ágil, fria e calculada, com relação ao financiamento do déficit do balanço de pagamentos dos EUA - evitando-se o acúmulo de tensões críticas, com reação pronta e eficaz diante da instabilidade dos fluxos de capitais (desde a histórica remoção do IR na fonte sobre aplicadores estrangeiros, em 1984) e com sinalização compensatória das flutuações das taxas de câmbio e juros, de forma a domar expectativas instabilizadoras.
A inegável sensibilidade demonstrada pelas autoridades norte-americanas em relação às reações de seus principais parceiros nos campos financeiro e cambial (enquanto praticavam a velha política do big-stick no plano comercial) deve ser creditada, em grande parte, à fragilidade do balanço de pagamentos dos EUA. Deve-se creditá-la, também, à delicadeza necessária às intervenções sinalizadoras sobre os mercados internacionais voluntários de câmbio, capitais e aplicações financeiras. Com efeito, a sucessão de bem-sucedidos encontros de cúpula entre as lideranças da OECD, caracterizando uma fase de intensa coordenação política e de política cambial e financeira entre os Estados capitalistas, parece ter finalmente resgatado a tese kautskiana do "superimperialismo", isto é, de uma tendência à coalização deliberada dos Estados capitalistas, frente às crises econômicas e políticas.
Sem dúvida, afigura-se impressionante a cooperação entre as potências capitalistas, nos últimos anos. Mas mesmo ela não seria suficiente para assegurar a sustentação continuada dos fluxos (decisões) privados de investimento produtivo - num clima de instabilidade global -, sem a articulação e difusão, simultâneas, de um poderoso cluster de inovações, baseado em novas tecnologias de impacto abrangente, sobre o conjunto das estruturas industriais das principais economias capitalistas.
A aplicação (ou criação) através da microeletrônica, de uma base tecnológica comum a uma constelação de produtos e serviços, agrupou um conjunto de indústrias, setores e segmentos na forma de um "complexo eletrônico", densamente articulado pela convergência intrínseca da tecnologia da informação. A formação deste poderoso cluster de inovações capazes de penetrar amplamente, por via direta ou indireta, em todos os setores da economia, configura a criação de um novo paradigma tecnológico, no mais puro sentido neo-schumpeteriano.
As condições fundamentais para tal parecem ter sido preenchidas, a saber: amplo espectro de aplicação em bens e serviços; oferta crescente e suficiente para suprir a demanda na fase de difusão acelerada; rápida queda dos preços relativos dos produtos portadores das inovações, reduzindo de forma contínua os custos de sua adoção pelos usuários; fortes impactos conexos sobre as estruturas organizacionais, financeiras e sobre os processos de trabalho; efeitos redutores generalizados sob-e os custos de capital e efeitos amplificadores sobre a produtividade do trabalho.
As condições técnicas para a constituição do "complexo eletrônico" estavam estabelecidas, desde meados dos anos 70, nas economias industriais avançadas, com a aproximação das bases tecnológicas das indústrias de computadores e periféricos, telecomunicações, parte importante da eletrônica de consumo e um segmento da área de automação industrial. Mas foi ao longo dos anos oitenta, e especialmente na fase de crescimento mundial contínuo, depois de 1983, que a rápida difusão dos bens e serviços do complexo eletrônico preencheram inequivocamente as condições econômicas schumpeterianas, (já mencionadas), produzindo o que Christofer Freeman e Carlotta Perez denominaram um verdadeiro "vendaval de destruição criativa".
A força deste processo de inovações técnicas, sociais e gerenciais será, a seguir, evidenciada. Mas, de início, é preciso ressaltar que ela decorreu, em boa medida, da espantosa velocidade de redução dos preços relativos, viabilizada pela queda do custo real de processamento (bits/ US$), a partir da produção em larga escala de "chips" cada vez mais poderosos (exponencialmente), a preços cadentes. Em texto recente Paulo Tigre assim descreve: "A microeletrônica e suas aplicações têm satisfeito completamente estes requisitos. Tomando os computadores como exemplo, alguns estudos (Flamm, 1987) estimam que a redução média real dos preços dos equipamentos, em nível internacional, ajustados em termos de qualidade e performance, tem sido superior a 20% ao ano, nos últimos 20 anos. Tal redução de preços não tem paralelo na história econômica mundial".
Sete tendências
De forma sintética é possível destacar sete principais tendências de inovação que vêm emergindo no cenário mundial, nos últimos anos e que devem ganhar corpo ao longo dos anos 90, a partir da vigorosa expansão do complexo eletrônico.
• A emergência do complexo-eletrônico como principal complexo industrial e como epicentro da inovação;
• O aprofundamento da automação industrial integrada e flexível sob comando de computadores;
• A revolução correlata nos processos de trabalho, nas relações de trabalho e nos requerimentos educacionais;
• A revolução nas formas de organização e de gestão empresarial, com o avanço das redes-de-cooperação intra e inter- empresas;
• A globalização das relações financeiras e dos mercados de capitais, acompanhada de notável interpenetração patrimonial entre as grandes burguesias capitalistas;
• A emergência de novas formas de concorrência entre grupos de empresas oligopolistas, através de alianças tecnológicas;
• O aguçamento da competição mundial, através da construção deliberada de competitividade, como resultado de estratégias conjuntas entre Estado e setor privado.
O veloz crescimento do complexo-eletrônico (elenco de indústrias baseadas na microeletrônica), propulsionado pela rápida massificação de novos produtos com preços relativos fortemente cadentes, modificou a forma de articulação da dinâmica industrial e impulsionou a difusão ampla e acelerada das tecnologias de informação (genericamente aplicáveis). O peso do complexo eletrônico no valor da produção industrial da OECD ascendeu de cerca de 3% em 1975 para 11 % em 1988, superando em muitos casos a participação do complexo automobilístico, "carro-chefe" do padrão industrial dominante no século XX.
[/nextpage]
[nextpage title="p2" ]
Avanços tecnológicos
A redução dos custos de informatização, o avanço da engenharia e software de integração, os progressos nas áreas da mecânica de precisão e da robótica, vêm permitindo o aprofundamento da automação industrial avançada, flexivelmente reprogramável, gerenciada por redes de microcomputadores comandados por grandes computadores hierárquicos. Especialistas prevêem que a automação flexível completamente integrada ganhará forma ao longo da década de 90, em direção à fixação de soluções semipadronizáveis, que permitirão sua rápida difusão. Este processo promoverá o enlace orgânico entre o complexo-eletrônico e a maior parte dos setores de bens de capital, com a convergência da base industrial e tecnológica destes (mecatrônica). A integração on fine das atividades empresariais tende a tornar-se mais abrangente, incluindo o marketing (distribuição) e as compras de matérias-primas, partes e peças (suprimento), diretamente conectadas ao fluxo de produção flexivelmente automatizado. A velocidade de avanço deste processo dependerá mais do ritmo de progresso na capacidade de programação e engenharia de integração (software) do que da queda do custo relativo dos equipamentos.
O aprofundamento da automação industrial implica transformações drásticas nos processos de trabalho e nos métodos de gestão. A natureza e qualidade do trabalho fabril está sendo revolucionada: os sistemas gerados pelo Taylorismo-Fordismo tendem a ser superados por novos processos, onde o trabalho manual-repetitivo desaparece e as funções dos operários se aproximam da gestão, controle e reprogramação dos fluxos de produção. Os requisitos educacionais tornam-se críticos para o desempenho da força de trabalho: a capacidade lógico-abstrata necessária para decodificar instruções, calcular, programar, gerenciar processos requer uma sólida base de habilitação na língua materna, matemática (álgebra e geometria elementares) e em outros conhecimentos básicos. A substancial elevação do nível de qualificação da força de trabalho, o seu envolvimento direto na gestão do fluxo de produção vem modificando radicalmente as relações de trabalho: as funções de capatazia e supervisão perdem sentido, a hierarquização rígida e autoritária torna-se obsoleta. Autocontrole, cooperação, comunicação horizontal ganham espaço crescente.
No âmbito gerencial e organizacional, a estrutura das empresas está fadada à rápida transformação: descentralização e participação sem perda de comando das dimensões chave; cooperação duradoura com fornecedores, distribuidores, usuários; desdepartamentalização com comunicação horizontal sistemática entre marketing-P&D-desenho-engenharia-produção-suprimentos. A busca de qualidade total, nível zero de defeitos, minimização de perdas etc. torna -se inerente aos processos produtivos e depende diretamente da qualidade e do envolvimento dos trabalhadores. Capacitação para produzir, aperfeiçoar e, finalmente, inovar torna-se o principal ativo estratégico das empresas. Isto requer políticas estruturadas de investimento em recursos humanos e em P&D. Os enormes desafios gerenciais então envolvidos neste processo de transformação fazem da qualidade da gestão e, consequentemente, da estratégia empresarial, fator-chave para o sucesso competitivo.
Nos anos 80, enquanto se difundiam essas inovação técnicas e organizacionais (nos planos da produção, mercados e gestão), outras transformações muito significativas se operavam na dimensão financeira. De um lado, a propagação dos meios eletrônicos de comunicação e processamento (telemática) oferecia a base material para interligação ampla, instantânea e capilarizada dos mercados financeiros e de capitais. De outro, a liquidez mundial foi sendo alimentada pelo elevado e persistente déficit de balanço de pagamentos dos Estados Unidos: mais de 1 trilhão de dólares foram (cumulativamente) emitidos pelo desajuste americano na década de 80. Do outro lado, Japão e Alemanha concentraram enormes superávits comerciais, que por seu turno foram sendo investidos no exterior, principalmente na América do Norte, sob diversas formas. Em meados da década o valor dos ativos de propriedade estrangeira nos Estados Unidos já ultrapassava o valor dos investimentos norte-americanos no exterior, configurando significativo movimento de interpenetração patrimonial entre as principais burguesias capitalistas. Mais impressionante, ainda, foi a verdadeira explosão do volume das operações financeiras, cambiais e de capitais em escala global. A preferência por aplicações de curto prazo, em face das incertezas cambiais e de taxas de juros, juntamente com a proliferação de mecanismos de hedge, instrumentos financeiros flexíveis, títulos securitizados, ajudam a entender como esta formidável massa de riqueza mobiliária veio sendo girada, ajustando-se ao sabor de circunstâncias reconhecidamente instáveis (especialmente na fase de desvalorização do dólar entre 1985-1987). De outro lado, a intervenção orquestrada dos bancos centrais impunha limites às flutuações especulativas (cambiais, principalmente) dos mercados financeiros e evitava a propagação de crises de crédito. Apesar das turbulências, o valor global da riqueza mobiliária capitalista multiplicou-se por três ao longo da década, ascendendo de pouco menos de 7 trilhões de dólares no início da década para cerca de 21,5 trilhões em 1989 (metade sob forma de títulos, metade sob forma de ações).
Mais importante, contudo, é chamar a atenção para a "financeirização" generalizada, particularmente no campo das formas de retenção (e valorização) da riqueza mobiliária O cálculo financeiro, tendo como referência a taxa internacional de juros, engloba e se sobrepõe às diferentes dimensões do cálculo econômico capitalista (formas, grau de liquidez, riscos, temporalidades, segmentos).
Enquanto a "financeirização" se aprofundava, condicionando todas as decisões capitalistas, o peso das estratégias tecnológicas ganhava força no plano da concorrência industrial. De um lado, cresceram os custos e riscos das atividades de P&D; de outro, as rendas monopolísticas derivadas do pioneirismo de mercado, induziram à proliferação de alianças tecnológicas entre oligopolistas, em torno de projetos cooperativos, com o objetivo de ultrapassar os concorrentes. Perfis complementares de capacitação e de linhas de produtos facilitaram a concretização destas alianças, em escala crescente, inclusive entre empresas de distintas origens nacionais (a maior parte das alianças tem sido, contudo, de caráter nacional ou regional). As alianças constituem uma nova forma de concorrência oligopolista, especialmente nos setores onde o rápido ciclo-de-produto propicia atraentes lucros extraordinários às empresas pioneiras.
A exacerbação da concorrência industrial mundial, notadamente no plano da inovação tecnológica, vem aguçando visivelmente as tensões no plano das relações comerciais, dos investimentos diretos e no campo da propriedade industrial e intelectual. A percepção da natureza dos riscos inerentes às atividades de P&D, ou até mesmo dos riscos envolvidos na adoção e difusão de inovações radicais, induziu os Estados Nacionais ao exercício, cada vez mais agressivo, de políticas ativas de fomento e de absorção dos riscos tecnológicos privados. Uma verdadeira "corrida" tecnológica, com estímulos e dispêndios crescentes (como percentagem dos respectivos PIB) em programas de pesquisa, cobrindo desde a base científica até a aplicação comercial, vem caracterizando a atuação dos Estados Nacionais nas economias industriais avançadas. A clara consciência quanto à relevância da capacitação tecnológica e da iniciativa inovacional da empresa privada conduziu à crescente intervenção governamental de fomento, incentivo, proteção às atividades de P&D, mesmo nos países onde prevaleciam doutrinas econômicas neoliberais. Cooperação público-privada, programas setoriais de reestruturação industrial e tecnológica, estímulo à aproximação entre empresas e instituições de pesquisa, projetos cooperativos induzidos, mecanismos financeiros de compartilhamento dos riscos, atenção crescente à base educacional e à qualificação dos recursos humanos etc. vêm configurando políticas governamentais mais ou menos explícitas de articulação de "sistemas nacionais de inovação" nos países desenvolvidos.
O caráter social e cumulativo da capacitação científica, técnica, empresarial e da força de trabalho; a dependência cada vez mais intensa e abrangente da habilitação para produzir eficientemente (competir) com relação ao grau de capacitação acumulado nos recursos humanos das empresas, condicionam decisivamente a competitividade. Esta tornou-se, cada vez mais, um resultado de estratégias públicas e privadas, deliberadamente construídas.
Relações de Trabalho
Antes de retomar as considerações macroeconômicas é oportuno sublinhar o impacto que a revolução tecnológica terá sobre as relações de trabalho e extrair daí algumas implicações. Não resta dúvida que os processos de trabalho típicos da indústria do século XX estão em vias de serem revolucionados.
O avanço da automação integrada e flexível tende a homogeneizar os processos de trabalho, aproximando os processos tayloristas-fordistas típicos (linhas de montagem) e os processos de manufatura sob encomenda dos processos integrados de automação (discreta).
Correlatamente, perdem expressão as formas de trabalho manual-parcelizado (repetitivo e desqualificado) assim como as formas clássicas de trabalho artesanal-manufatureiro (qualificado).
Os novos equipamentos computadorizados privilegiam o trabalho de gestão direta da produção através da supervisão, programação, reprogramação e ajustamento dos sistemas de automação flexível.
O nível de escolaridade e de capacitação educacional (incluindo a treinabilidade, polivalência e adaptabilidade) da força de trabalho, necessário ao desempenho proficiente destas novas formas de trabalho é incomparavelmente superior aos atuais. A força de trabalho terá que conhecer os parâmetros técnicos de tolerância, precisão e qualidade dos processos industriais e, até mesmo, necessitará compreender (ainda que superficialmente) as bases físico-químicas dos mesmos processos. Necessitará lidar com a programação/ reprogramação dos fluxos de produção e habilitar-se para resolver problemas imprevistos na gestão desses fluxos. Os requerimentos cognitivos e de participação ativa, necessários ao desempenho das novas formas de trabalho, exigem a concretização de um salto qualitativo na educação dos trabalhadores.
O impacto destas mudanças sobre as relações de trabalho no interior das fábricas é revolucionário.
O avanço da automação integrada sob computadores exige uma tremenda ascensão intelectual dos trabalhadores.
A redução das diferenças educacionais, com expressivo aumento do nível médio de educação da força de trabalho significará uma notável redução das disparidades salariais intrafábrica, o que pode contribuir para a redução das desigualdades sociais.
Finalmente as formas de participação direta da força de trabalho fabril na gestão e na programação dos fluxos de produção significa que o autocontrole (do ritmo, qualidade e produtividade dos processos) torna-se essencial, dispensando as funções de capatazia e grande parte das funções de supervisão técnica. Esta tendência é muito significativa na medida que, na grande maioria dos processos industriais de baixo nível de automação, uma parcela expressiva (entre 15% e 25%) da força de trabalho encontra-se "imobilizada" em funções coercitivas de supervisão do trabalho fabril direto dos demais operários.
Gestão na fábrica
Estas mudanças implicam uma transformação inelutável da hierarquização piramidal, rígida e absolutamente autoritária que caracteriza o interior da fábrica. De um lado, os sistemas integrados e flexíveis de gestão, sob redes de microcomputadores comandadas por grandes computadores hierárquicos, torna redundante um grande número de níveis gerenciais intermediários, tendendo a "achatar" substancialmente as pirâmides burocráticas internas às empresas. De outro lado, a participação direta da força de trabalho operativa na programação e na supervisão da produção esvazia as funções de coerção e policiamento do ritmo, intensidade e qualidade do trabalho fabril. Não apenas reduzir-se-ão as distâncias hierárquicas, salariais, educacionais, mas tende a crescer o espaço participativo, a descentralização de responsabilidades, o grau de "coletivização" e de autocontrole da produtividade dos sistemas de produção. O avanço da automação por computadores significa, portanto, um importante passo no aprofundamento da socialização da produção moderna - o que, inevitavelmente, recolocará, sob novos ângulos, a questão de sua compatibilidade com a apropriação privada dos meios de produção.
No plano da sociedade também é possível prever mudanças relevantes. A noção liberal-burguesa dos direitos de cidadania sempre esbarrou numa limitação irrecorrível, quando defrontada às relações de trabalho na empresa. Não há dúvida quanto à consistência da noção de cidadania frente ao Estado mas esta sempre entrou em colapso no interior do sistema autoritário-absoluto, inerente aos processos fabris. Marx, cuja percepção do modo de exploração do trabalho pelo capital estava em parte apoiada na análise detalhada da evolução histórica dos processos de trabalho, denunciou com clareza esta limitação inata à constituição da democracia burguesa. Diga-se de passagem que esta limitação esteve longe de ser superada pelas formas estatal-burocráticas de socialismo, hoje sob contestação na sua própria matriz soviética.
A significativa atenuação do autoritarismo-absoluto, que tende a resultar do avanço da automação industrial, abre um espaço de participação autocontrolada dos trabalhadores, com alguma autonomia decisória, no interior da fábrica. Abre-se uma possibilidade de relativização dos direitos e iniciativas de participação, permitindo que o conceito de cidadania, mutatis mutandis, ganhe algum sentido e espaço no interior da fábrica, de onde estivera, desde sempre, banido.
Como tenderia a se refletir na sociedade este possível processo de diluição de um dos últimos redutos (e, certamente o mais relevante) de absolutismo-autoritário na organização social? Esperamos que venha a constituir o cerne de um processo de democratização radical da sociedade humana, agora nascido das entranhas dos sistemas de produção.
[/nextpage]
[nextpage title="p3" ]
Crescimento e inovação
As significativas tendências de mudança e de reorganização tecnológica, empresarial e financeira das principais economias capitalistas, na última década e a projeção do aprofundamento destas tendências nos anos 90 configuram um cenário de evidente aceleração da inovação econômica, entendida como uma onda schumpeteriana endogenamente propulsionada.
Salta aos olhos de qualquer observador que esta onda de inovação constituiu fator essencial de sustentação do dinamismo das principais economias capitalistas ao longo da virtuosa etapa de crescimento nos últimos oito anos. A notável capacidade de coordenação das políticas financeiras e cambiais, demonstrada pelas autoridades econômicas das principais economias, pode, agora, ser relativizada: ela foi instrumental para prolongar este poderoso ciclo inovacional, atenuando as instabilidades decorrentes dos grandes desequilíbrios comerciais, esfriando os movimentos especulativos, evitando a crise financeira, cuja eclosão poderia ter abreviado a expansão.
Com efeito, o vigor intrínseco à acumulação produtiva com inovação tornou muito mais robustas e resistentes as decisões privadas de investimento. A elevada rentabilidade prospectiva das novas fronteiras de acumulação de capital induzia as empresas a levarem adiante os seus planos de inversão, apesar das instabilidades macroeconômicas: novos produtos e novos mercados representavam oportunidades sólidas de investimento lucrativo, oportunidades pouco sensíveis aos efeitos de eventuais recessões. Assim, na medida em que se concretizava o efeito conjugado e encadeado de numerosas decisões privadas, a força da inovação no plano (microeconômico) da concorrência industrial suplantava as incertezas da conjuntura macroeconômica. Exemplo inconteste da robustez das decisões privadas de investimento produtivo ocorreu logo após a violenta quebra da bolsa de Nova Iorque em outubro de 1987. A brusca queda das cotações impingiu aos investidores perdas globais de capital de aproximadamente 1,5 trilhão de dólares. A pronta intervenção do FED e dos demais bancos centrais evitou a transmissão de seqüelas potencialmente devastadoras sobre os sistemas financeiros dos países desenvolvidos. Ultrapassado este momento crítico, a esmagadora maioria dos analistas, depois de avaliar a magnitude das perdas de capital, vaticinou - no mínimo - uma sensível desaceleração do crescimento econômico. Muitos (inclusive as grandes instituições internacionais) previram o desdobramento de uma recessão mundial em 1988, como resultado de uma inevitável contração das decisões de gasto dos agentes econômicos. As decisões de consumo (especialmente de bens duráveis) deveriam se contrair em conseqüência do "efeito-riqueza" adverso (o "patrimônio" mobiliário das famílias sofrera um pesado golpe). As decisões empresariais de investimento desacelerar-se-iam, em seguida, em razão da queda da demanda de consumo e em função do virtual impacto negativo sobre as expectativas privadas de lucro.
Todos os prognósticos foram, porém, redondamente desmentidos pela realidade: 1988 revelou-se um ano magnífico de crescimento econômico, com notável expansão do fluxo de investimentos produtivos em todas as economias capitalistas avançadas. Efetivamente, as decisões de consumo se retraíram no quadrimestre subseqüente ao "choque" da bolsa, notadamente nos Estados Unidos. Mas os dispêndios privados em capital-fixo não registraram qualquer abalo perceptível e, já no primeiro trimestre de 1988, exibiam inusitado vigor. A solidez do investimento privado, cuja aceleração sincronizada terminou por configurar um verdadeiro boom em 1988, logo dissolveu as expectativas desfavoráveis. Os mercados cambiais acalmaram-se e, em poucos meses, o crash da bolsa tornou-se apenas um episódio pontual, isolado, que já se esvaia da memória dos mercados para perplexidade dos analistas econômicos.
Logo, deflagrou-se uma busca de "justificativas" ad hoc e ex post, para explicar o "não-impacto" da crise do mercado de capitais sobre o crescimento econômico. A explicação mais freqüentemente aceita apontava a redução dos juros, com significativa expansão monetária, promovida pelos bancos centrais entre outubro e dezembro de 1987 (com o fito de insular as conseqüências deletérias da "quebra" das bolsas) como principal fator contrarrestante. Tomando o ponto de vista deste artigo, o relaxamento monetário, embora tenha se revelado eficaz e bem coordenado; teria funcionado apenas como condição necessária (e não como condição suficiente) para assegurar a sustentação do crescimento em 1988. A expansão da liquidez e do crédito não teria o condão de prevenir um colapso das expectativas empresariais quanto à rentabilidade futura dos investimentos (ou seja, um colapso da eficiência marginal do capital, que poderia inclusive desembocar numa "armadilha de liquidez").
Sem desprezar o papel ativo e coordenado das autoridades monetárias na circunscrição da crise, deve-se creditar a incolumidade das decisões privadas de investimento naquela fase à pujança do processo de inovação tecnológica, de natureza schumpeteriana, em pleno desenvolvimento nas economias avançadas.
A extraordinária redução dos preços relativos dos bens e equipamentos ofertados pelo complexo-eletrônico, a prolífica capacidade de lançamento de novos produtos, a rapidíssima difusão destes, a competição acirrada, significam criação autônoma de oportunidades extremamente atraentes de inversão. A poderosa realimentação positiva, propiciada pelo enorme grau de sinergia inovacional, interna ao complexo-eletrônico, multiplicava as oportunidades de investimento. Simultaneamente, o amplo espectro de uso da linha de produtos do Complexo, aliado aos seus significativos impactos positivos sobre as produtividades dos processos industriais e das atividades de serviços, traduzia-se em expectativas de mercado quase sempre favoráveis, quando não auspiciosas, para a mencionada linha de produtos.
Este processo endógeno e autopropulsionado de criação de oportunidades de investimento vinha ganhando densidade e momentum nas economias industriais avançadas desde 1984, ano em que a economia mundial recuperou globalmente o crescimento. As inovações gerenciais, financeiras, dos processos de trabalho, descritas anteriormente, enveredavam em fases de difusão acelerada. Ganhos de produtividade espraiavam-se de forma cada vez mais abrangente dentro dos sistemas industriais, adquirindo em muitos setores um caráter cumulativo. A estabilidade da inflação, a ausência de pressões de custo (queda dos preços do petróleo e das matérias-primas, salários em ascensão moderada) compunham um quadro global positivo que suplantava (precariamente, decerto) as tremendas instabilidades e riscos manifestos nas esferas cambial e financeira. Ao longo de 1985 a acumulação produtiva se reativa em todas as economias avançadas e ganha aceleração adicional em 1986. Paralelamente, o processo competentemente orquestrado de desvalorização gradativa do dólar, após o Acordo do Plaza, logra efetuar o delicado movimento de sojt landing da paridade relativa da moeda americana (frente ao marco alemão e frente ao iene) sem provocar disrupção nos mercados financeiros privados, que sustentaram o fluxo de financiamento voluntário dos dois déficits americanos (interno e externo).
Estabilização cambial
Em 1987, a persistência do déficit em conta-corrente dos Estados Unidos em níveis elevados começou a causar crescente ansiedade. Irromperam surtos de volatilidade cambial com explosiva debilidade do dólar e com uma alarmante retração do volume de aplicações privadas estrangeiras em ativos financeiros norte-americanos. O Acordo do Louvre estabeleceu limites para as oscilações do dólar (e, conseqüentemente, para a apreciação relativa do marco e do iene) levando os bancos centrais a ampliar substancialmente o volume e a frequência das operações de estabilização cambial. De outro lado, providenciou-se à cobertura do "gap" de financiamento dos dois déficits americanos através da aquisição de títulos públicos de longo prazo do Tesouro dos EUA, pelos bancos centrais dos parceiros superavitários. É relevante assinalar que, apesar do recrudescimento da incerteza e da desaceleração do nível de crescimento mundial em 1987, com elevação das taxas de juros em vários países, os fluxos de acumulação produtiva não esmoreceram nas principais economias avançadas.
No segundo semestre de 1987, os mercados cambiais mal começavam a se acalmar quando sobreveio, em outubro, o inesperado "crash" da bolsa novaiorquina. Após três anos consecutivos de crescimento com significativa ampliação dos fluxos de investimento-fixo era, pois, lícito e plausível prever-se uma considerável desaceleração do ritmo de crescimento, acompanhada de uma sensível contração cíclica das inversões privadas.
Não obstante, apesar das fragilidades financeiras ampliadas, da quase unanimidade dos prognósticos recessionistas e das incertezas agudizadas a respeito do cenário macroeconômico global, as decisões privadas de investimento sequer recuaram. Ao contrário, os dispêndios correntes em formação de capital-fixo mantiveram-se firmes, os cronogramas de execução decididos no ano anterior foram mantidos e, mais importante, as decisões relativas a novos investimentos não sofreram solução de continuidade. Com efeito, as estatísticas registram uma excepcional aceleração dos investimentos-fixos já no primeiro semestre de 1988. Por conseguinte, a robustez do processo de acumulação produtiva de capitais só se torna inteligível quando se leva em conta a força da onda schumpeteriana de inovação econômica posta em marcha nas economias desenvolvidas.
A breve descrição aqui efetuada da conjuntura mundial entre 1984 e 1988 ajuda a compreender e qualificar a interação "virtuosa" entre o complexo processo de coordenação das políticas econômicas, sob a liderança dos EUA, e relativa autonomia do processo de inversão produtiva com inovação. As análises econômicas convencionais que creditam a sustentação do crescimento com estabilidade, por período tão longo, à eficaz coordenação das políticas econômicas dos países avançados, não ignoram apenas o impacto da revolução tecnológica em curso. Estas análises resvalam num campo escorregadio e inconsistente com as teorias econômicas dos seus próprios formuladores - ao atribuir poderes regulatórios absolutos aos Estados Nacionais, não apenas sobre os seus próprios domínios mas, também, sobre o conjunto da economia mundial.
Luciano Coutinho é professor de Economia da Unicamp.
[/nextpage]