Política

A fim de combater certos desvios, como a corrupção moral, o acomodamento e o mandonismo, a Escola Nacional de Formação Política do Partido dos Trabalhadores terá que tratar também de questões culturais, éticas, grupais,interpessoais, sexuais e individuais

No último número de Teoria & Debate, o Carlos Eduardo falou do medo (e do gosto) de pecar. Faltou falar do medo de ganhar, que assombrou a cabeça de milhares de petistas, no primeiro e no segundo turnos.

Este medo tinha boas razões de ser. Entre elas, a estrutura de quadros do PT, mixuruca, insuficiente tanto em número quanto em capacitação, como evidenciam várias de nossas dificuldades nas administrações municipais, na construção partidária e no debate sobre socialismo.

Na falta de formação (e de informação), também a democracia partidária corre perigo. É voz corrente que "as bases não mandam mais no PT", que se torna cada vez mais difícil para um trabalhador atuar no seu próprio partido.

A militância acompanha com dificuldade o debate interno. Foram poucos, por exemplo, os que conseguiram vencer as 22 mil linhas das teses apresentadas no 7º Encontro Nacional, uma boa parte escrita numa linguagem obscura e diletante.

Razões como estas fazem o trabalho de formação política ganhar dimensão estratégica para o PT. Sem igualdade de acesso à formação e à informação, a democracia interna vira uma fábula. E sem quadros e militantes capacitados, nossa pretensão de disputar a hegemonia vira pura ficção.

Apesar de toda a grita que se faz por formação, a verdade é que a maioria dos dirigentes partidários ainda não se convenceu da necessidade do estudo, da reflexão, da sistematização de sua experiência, da teoria. Os poucos que se esforçam por reservar um tempo de sua militância para uma autoformação sistemática são cobrados por isto, quando não terminam engolidos pela dinâmica partidária.

Sem contar aqueles que não participam de atividades formativas, por acharem que isso não "acrescentará nada a sua prática", ou simplesmente por terem receio de sua própria fragilidade.

A formação sempre foi bastante negligenciada e posta em segundo plano. Quem não se lembra do orgulho com que muitos militantes diziam que o Lula "lê apenas as primeiras páginas de um livro"? Hoje, apesar desse ativismo cego continuar forte entre nós, a situação mudou, em parte devido ao surgimento de uma nova leva de quadros dirigentes, com outra postura frente à teoria.

E ainda que a direção nacional não tenha discutido nossa política de formação, ela vem sendo construída desde 1985. Segundo os documentos da Secretaria Nacional de Formação (SNFP), data desta época a constituição de um grupo de trabalho mais efetivo. Este grupo foi responsável, em 1985 e 1986, pela realização de diversos tipos de cursos. Seminários, palestras e reuniões, seja na área de São Paulo, seja em outros estados, visando levantar as necessidades reais do PT em termos de formação. Um marco inicial nesse processo foi a 1º Plenária Nacional de Formação Política, com a presença de companheiros de dezesseis estados, em março de 1986.

Outro marco foi a criação, em julho daquele ano, do Instituto Cajamar. Embora seja uma instituição autônoma, a participação da SNFP em seu processo de construção permitiu intensificar a formação política geral dos petistas, esclarecendo os principais elementos que devem compor nossa política geral de formação. O Inca também contribuiu para a consolidação da política de formação da CUT.

O Instituto Cajamar realizou sua primeira atividade - um seminário sobre participação popular na Constituinte - em dezembro de 1986. A partir de janeiro de 1987, iniciaram-se os cursos de capacitação de quadros intermediários, voltados para dirigentes sindicais, lideranças populares, militantes partidários e monitores de formação política, que atingiram cerca de 2.700 militantes, entre os quais aproximadamente 1.100 enviados diretamente pelo PT. A partir de 1989, passamos também a realizar cursos de formação de formadores, sob a coordenação de Paulo Carvalho. Além de uma infinidade de seminários e debates realizados ao longo de todos estes anos.

A criação da Escola Nacional

A situação atual da formação política está longe de ser satisfatória, dada a falta de recursos e (ainda) de prioridades. Mas demos largada a um processo quase irreversível, o qual levou à criação da Escola Eder Sader - no Rio Grande do Sul - e da Escola do Diretório Municipal de São Paulo: e que se consolidou no 7º Encontro, com a decisão de preparar a criação de uma Escola Nacional de Formação.

Esta decisão é importante não apenas pela preocupação que revela, mas também porque indica que o PT deseja, ele mesmo, formar seus quadros. Durante muito tempo nossa formação ficou a cargo de entidades sem vínculo orgânico com o partido. À medida que o PT desenvolveu instâncias próprias de formação, o que existia passou a não ser suficiente nem necessariamente positivo.

Em primeiro lugar, porque precisamos de uma formação nitidamente petista, organicamente comprometida. Em segundo lugar, porque é necessário evitar a dispersão de nossos recursos materiais e humanos. Em terceiro lugar, porque muitas entidades foram aparelhadas por tendências do partido, e desenvolvem uma formação mesquinha, voltada para a luta interna.

Pouco a pouco a SNFP passou a discutir a nossa política de formação com aquelas entidades, inclusive firmando convênios em que o partido se compromete a enviar filiados, ao mesmo tempo que participa do planejamento das atividades.

Desta maneira, a secretaria vem buscando consolidar um sistema nacional de formação, que integre o trabalho de nossas instâncias com a atividade desenvolvida por aquelas entidades, estabelecendo uma divisão do trabalho, discutindo qual o público prioritário, a temática preferencial e a abrangência regional desejável, do ponto de vista partidário, para cada instância.

A constituição desse sistema se completa com a criação de uma escola de formação do próprio PT, que além de formar nossos quadros, deve também ser um centro permanente de reflexão e elaboração teórica. Tarefas que não podem ser delegadas a ninguém.

Foi a partir desta constatação que a 4º Plenária Nacional de Formação, realizada no início de 1990, escolheu uma comissão cuja responsabilidade é coordenar toda a discussão em torno da implementação da escola.

Enquanto a escola não se estrutura, a comissão integrada por Luís Sérgio, Paulo Paraguaio, Pedro Pontual e Valter Pomar - tem também a incumbência de acompanhar os convênios com o Instituto Cajamar, com a Fundação Nativo da Natividade e com as demais conveniadas.
Até outubro, a comissão deverá contatar cada uma das escolas e centros, analisando sua proposta metodológica global e seu funcionamento. Em novembro esperamos realizar um seminário, para rediscutir o documento A política de formação do PT, discutir um projeto detalhado rumo à unificação dos currículos de formação e também para iniciar um trabalho de compatibilização dos calendários das instâncias partidárias e de todas as entidades conveniadas.

Desta maneira, a escola irá se constituindo na mesma medida em que formos articulando o sistema nacional de formação. Este processo deve levar em conta a necessidade de regionalizar o trabalho formativo e de construir uma política de acompanhamento aos participantes.

Uma das questões a serem debatidas é o papel da escola nacional e sua relação com as instâncias partidárias e com os centros autônomos. Acredito que a escola não substitui as secretarias de formação municipais e estaduais: ou as escolas Eder Sader e do Diretório Municipal de SP, que devem continuar formando os filiados, militantes de base e quadros intermediários locais e regionais.

A escola também não substitui os centros e institutos autônomos, com quem o partido deve manter convênios, a partir de um plano nacional de tarefas e prioridades.

Caberá à escola formar parte de nossos quadros intermediários de nível nacional. Mas seu público prioritário são os quadros dirigentes, na linha do Projeto de formação de quadros desenvolvido atualmente pela SNFP, sob a coordenação de Benedito Tadeu César, Carlos Eduardo de Carvalho, César Benjamim, Emir Sader e Wladimir Pomar.

Para isso, é preciso estudar as experiências de educação partidária em outros países, até para evitar certos modelos que combinam doutrinarismo teórico (disfarçado de marxismo) com escolástica, para quem formação é transmissão de conceitos, onde as classes sociais são discutidas a partir do Manifesto Comunista; onde o socialismo brota da sucessão de modos de produção; e onde o fundamental é saber que influência Kautsky, Mehring e Plekhanov tiveram sobre os bolcheviques russos ou no que Moreno atualizou Trotsky...

Caberá à escola deixar claro que sua formação se faz a partir do programa partidário. De maneira crítica, polêmica, mas tomando as posições do PT como referências do processo formativo.

O papel dos dirigentes

No processo de construção da escola é preciso convencer os dirigentes partidários de duas coisas: primeiro, de que se não estudarem deixarão de ser dirigentes. Segundo, de que os dirigentes partidários são os principais agentes de formação dos quadros intermediários. É incorreto delegar esta tarefa a assessores. Este trabalho cabe fundamentalmente aos próprios dirigentes, mesmo porque, em nossa concepção, formação não é igual a curso. Os discursos do Lula, os encontros partidários, as lutas sociais, as disputas eleitorais também são momentos formativos.

Há outra razão pela qual devemos fazer com que os dirigentes se incorporem aos processos formativos. Trata-se da necessidade de elaborar e reelaborar permanentemente a teoria de transformação da sociedade brasileira. Num partido de massas como o PT quer ser, este processo tem que envolver o conjunto de nossos quadros e militantes. E nisso a formação (especialmente a escola) é crucial.

Passados dez anos de sua fundação, o PT conseguiu ampliar consideravelmente a precisão de suas formulações. Mas se queremos que o petismo cumpra aqui o papel que o bolchevismo, o maoísmo e o sandinismo jogaram em seus respectivos países, então precisaremos perseverar mais e mais na sistematização crítica de nossa experiência.

Muita gente no PT continua achando que a teoria brota - por geração espontânea - da prática imediata, dispensando a reflexão, a análise e a experiência acumuladas pelo movimento socialista no Brasil e no mundo.

Mas há também os que propõem ao partido que formalize sua referência marxista, como se isso resolvesse o problema. Há os que se afogaram no niilismo idealista, e em nome da morte das certezas, dizem que caíram todas as nossas referências teóricas. Sem falar nos que advogam uma adesão entusiástica a Gramsci, tão enfaticamente quanto ontem brandiam as idéias de Che, Mao ou Lenin como solução para a realidade brasileira: num vaivém típico de quem é incapaz de fundir-se aos movimentos libertadores presentes na nossa própria realidade. partindo de nossa cultura, nossos valores, nossa literatura. Incapazes disso, acabam transformando essa ou aquela referência marxista - elaborada noutra época e realidade, geralmente distantes do Brasil ou da América Latina - em começo, meio e fim.

Esta visão distorcida sobre o que é teoria revolucionária embota a iniciativa de muitos dirigentes e formadores. Eles reclamam da direção nacional, por não lhes proporcionar formação. Mas sentem-se incapazes de desenvolver atividades formativas junto à base partidária, em sua própria região. Sentem-se incapazes porque não percebem que a tarefa de elaborar aquela teoria também é sua.

Cabe à formação incentivar a sistematização das experiências vividas pelo próprio partido e pelos movimentos, o que supõe um trabalho permanente de preservação da memória. É impressionante, por exemplo, que não exista até hoje um balanço geral das experiências de Diadema, Fortaleza e Vila Velha, prejudicando inclusive a discussão sobre a nossa participação na luta institucional. Como também impressiona o debate sobre a concepção de partido, onde pesam mais os habituais paradigmas do que a experiência viva do PT.

A tarefa de elaborar o petismo supõe o concurso de nossa intelectualidade, integrando-se à atividade partidária, colaborando em nossas instâncias de formação, quebrando com o elitismo e com a fragmentação que marcam boa parte da produção intelectual brasileira, ajudando na análise de nossa realidade, superando as tentativas de transpor modelos.

A metodologia de formação

Essa política de integrar intelectuais e dirigentes ao trabalho formativo e a ambição de elaborar permanentemente a teoria revolucionária são decorrências de nossa metodologia de formação. O documento A política de formação do PT, elaborado pela SNFP em 1988, afirma que esta metodologia tem como eixo principal o conhecimento mais profundo possível da realidade social, como condição necessária para discutir as várias interpretações e propostas que existem sobre a realidade e sua transformação.

Por isso, a escolha dos temas e assuntos que farão parte dos programas de formação deve ser feita a partir da pesquisa dos problemas práticos enfrentados pela militância no movimento social como um todo e na atividade cotidiana ou setorial.

Da mesma maneira, o tratamento daqueles temas e assuntos tem que partir do nível de conhecimento dos militantes sobre os problemas práticos e do conjunto de conceitos teóricos que empregam para explicá-los, colocando em debate a relação existente entre conceitos e prática próprios do universo dos militantes.

Desse modo, estimulamos o raciocínio crítico, de forma que a teoria seja tomada como um conjunto de conhecimentos elaborados historicamente, a partir da prática social, e não como um conjunto de dogmas a serem aplicados em qualquer situação. Nessas condições, a teoria historicamente elaborada passa a servir, fundamentalmente como instrumento de análise da realidade, da prática social.

Por fim, tomando como base a experiência histórica da elaboração do conhecimento humano, na qual o processo de comprovação das teorias é a própria prática, aquele documento defende que estimulemos a militância a voltar à prática, a utilizar a prática como teste de precisão ou imprecisão dos conceitos, como critério da verdade. Com isto, resgata-se a importância do movimento social e político e sua relação com a teoria, acentuando que esta teoria é estéril se não estiver ancorada na luta concreta.

A política de formação do PT às vezes é acusada de "empirismo", e não são poucas as experiências formativas em que a análise da realidade tem sido substituída pela exclusiva apreensão de conceitos. Isso mostra que é preciso intensificar o debate de nossa metodologia, inclusive para atendermos cada vez mais às especificações da formação de militantes partidários, especialmente dirigentes, indo além do que já é conquista da educação popular.

A sistematização das experiências formativas desenvolvidas pelo PT neste último período pode ajudar nesse sentido. Aliás, esta é uma das tarefas da Secretaria Nacional de Formação: a elaboração teórica de todos os temas de interesse partidário.

Uma "metodologia petista" vai ter que levar em conta a enorme demanda por formação, que exige não apenas a capacitação de quadros, mas também o desenvolvimento de uma massiva campanha de formação de base, talvez através de brigadas de formadores, utilizando intensivamente novos recursos pedagógicos.

É preciso, por exemplo, intensificar o uso do vídeo, aproveitando as possibilidades abertas por entidades como a TVT. Nossa linha de publicações tem que ser ampliada. É preciso pensar ainda na utilização do rádio, do teatro e de outros instrumentos formativos. O que, é claro, supõe dinheiro, dinheiro e dinheiro.

A formação tem que estar presente nas atividades gerais do partido. Participando na definição da metodologia de nossos encontros e do 1º Congresso, elaborando o tão falado kit de filiação partidária, tornando obrigatória a participação nos cursos para candidatos ou colaborando nas atividades eleitorais - como foi feito nas eleições presidenciais, com a publicação dos fascículos do PAG (Plano de Ação do Governo). Utilizando melhor a Teoria & Debate, que apesar de ser um instrumento essencial para a formação, tem recebido pouca colaboração da SNFR.

Além disso, é preciso que o partido assuma como sua a tarefa de formar nossos ativistas sindicais. A CUT realiza uma intensa e abrangente formação, que atinge grande parte dos sindicalistas petistas. Mas a formação desenvolvida pelas instâncias sindicais é insuficiente para militantes partidários, já que possui objetivos específicos e visa as necessidades de um público muito mais amplo. Ao passo que a falta de formação partidária para nossos sindicalistas é uma das razões pelas quais enfrentamos tantas dificuldades na implantação da Linha Sindical.

É preciso, na elaboração da metodologia, levar em conta o amplo leque de temas tratados no processo formativo. Não apenas os temas são variados, mas também o público. A diversidade começa pelas características culturais e regionais do Brasil, passa pelos diferentes níveis de militância (filiados, ativistas. quadros intermediários, dirigentes) e áreas de inserção (movimentos sociais, estrutura partidária. frente institucional); inclui os diferentes graus de compreensão da proposta petista, influenciados pela época e pelas razões que motivaram cada um a se filiar ao PT. Sem falar que temas que já são ponto pacífico numa região são absoluta novidade noutra, como é o caso da política de alianças.

Outro aspecto é a multiplicidade de referências teóricas, presentes não apenas na militância, mas também entre os formadores. Dentro e fora do guarda-chuva marxista, há um sem-número de referências políticas, teóricas, metodológicas e pessoais, percebendo-se a influência da escola clássica de formação, desenvolvida pelos comunistas; das experiências de formação sindical e da educação popular e, ainda, uma forte presença da educação tradicional.

Contrastando com toda esta pluralidade, e com a complexidade de tantos temas, há uma grande falta de estrutura: o pequeno número e o despreparo dos formadores, dispersos por várias entidades, instâncias e tarefas; a falta de recursos e a fragilidade da SNFP, atualmente reduzida a uma secretária e a um coletivo de voluntários, assoberbados por inúmeras tarefas profissionais e políticas e coordenados por um dirigente a quem a Executiva Nacional costuma confiar mil e uma missões especiais; tudo isso dificulta o trabalho.

A "Formação Ideológica"

A escola de um partido que se propõe a dirigir o processo de construção da nova sociedade terá que tratar das questões ideológicas, culturais, morais, éticas, grupais, interpessoais, sexuais e individuais. Até porque já são visíveis entre nós fenômenos como o individualismo, a corrupção moral, o acomodamento e o mandonismo.

A formação política não é o único meio de combater esses desvios, que exigem vigilância constante e uma profunda democracia - mesmo porque é nos círculos dirigentes que eles se manifestam primeiro e mais fortemente. A falta de democracia e o endeusamento das lideranças ajudaram os comunistas a abrigar, ao lado de monumentos de integridade, abnegação e heroísmo, crápulas, oportunistas e moralistas dos mais variados matizes.

Não existe uma vacina definitiva contra esses perigos. É preciso lembrar que eles brotam das condições de vida da nossa sociedade, exigindo de nossa parte um combate permanente, na sociedade e no partido. Estão aí as experiências das igrejas para mostrar que a doutrinação ideológica não é um antídoto contra a hipocrisia, a cupidez e o moralismo.

Ao desenvolver uma maneira de abordar essas questões no processo formativo, o PT terá que evitar tanto os pecados quanto as fórmulas mágicas que pretendem impor modelitos comportamentais. Aqui, como no resto, o PT não aceita modelos.

Valter Pomar é coordenador do Projeto de Formação Política Geral do instituto Cajamar.