"E o PT, a que veio?" Esta é uma pergunta não apenas de militantes mas também, e talvez principalmente, dos simpatizantes do partido
"E o PT, a que veio?" Esta é uma pergunta não apenas de militantes mas também, e talvez principalmente, dos simpatizantes do partido
"E o PT, a que veio?" Esta é uma pergunta não apenas de militantes mas também, e talvez principalmente, dos simpatizantes do partido. Inquieta também as demais forças políticas, nossos eventuais aliados e, por certo, nossos adversários. E uma indagação que surge tanto da história particular do PT quanto do quadro mais amplo da crise econômica e da transição conservadora.
"E o PT, a que veio?" Esta é uma pergunta não apenas de militantes mas também, e talvez principalmente, dos simpatizantes do partido. Inquieta também as demais forças políticas, nossos eventuais aliados e, por certo, nossos adversários. E uma indagação que surge tanto da história particular do PT quanto do quadro mais amplo da crise econômica e da transição conservadora.
As definições do 5º Encontro Nacional, de modo mais claro que as dos Encontros anteriores, ligam a concepção do PT como partido de massas às tarefas democráticas e populares do momento atual. Isso nos permite perspectivas de políticas de aliança e, portanto, de crescimento da luta democrática e popular junto com outras forças políticas, como momento de afirmação (não de perda) da identidade política e social do nosso partido. Isso já é algo como definição do perfil do PT. Mas seria ingênuo imaginar que definições de nível de direção possam ser mais do que indicações e diretrizes gerais. Elas valem como ponto de partida de um processo de definição que, porém, só se realiza de modo pleno no debate partidário e só se completa nas lutas que o partido desenvolve junto às massas dos trabalhadores, em favor das propostas que têm a apresentar para a solução dos problemas econômicos e políticos do país.
Que fique claro, portanto, desde logo, que o perfil político e ideológico de um partido político, por mais nítido que seja, não pode ser definido com a precisão do alfaiate recortando o tecido, na risca do figurino. Enganam-se os que abusam das metáforas militares para falar das lutas políticas. Com as possíveis exceções dos partidos fascistas, cujos perfis dependem quase que exclusivamente da palavra do duce (do führer), ou dos partidos stalinistas, caracterizados pela submissão a direções habituadas a um centralismo sem democracia, o perfil político e ideológico de um partido é sempre geral. Linhas políticas, próprias de partidos democráticos, são coisas muito diferentes das diretrizes militares (ou quase), próprias de partidos fascistas e stalinistas. Toda determinação militar é estrita e imperativa, toda linha política é geral e sempre dependente da persuasão. Por muito definida que possa (e deva) ser, uma linha política está sempre carregada de proposições que são apenas aproximações à realidade. Se é difícil definir um arco de alianças políticas e sociais para um período histórico determinado - e esta foi uma das principais tarefas do 5ºEncontro - mais difícil ainda é definir o perfil ideológico (ou organizatório) de um partido que, como é o caso do PT, tem que se esforçar por estabelecer perspectivas históricas que vão muito além do período atual.
Algumas polêmicas fora de foco
Se o caráter de massas do PT não fosse desejável, seria em todo caso inelutável. Os partidos de massa são os que melhor se adequam às necessidades da representação e da participação dos trabalhadores na política das sociedades modernas. Mas é mais do que isso: ou o PT se torna um partido de massas, aberto e democrático, no espírito da sua proposta original de 1979/1980 (que o 5ºEncontro em boa hora reafirma), ou não chegará a ser partido. Se negar a sua intenção inicial de partido de massas, acabará negando a sua própria razão de ser. E, portanto, desmobilizará os seus próprios criadores.
As idéias que estão em nossa origem como partido são as que temos a retomar, agora, para dar um novo passo adiante. É preciso, portanto, passar rápido sobre certas polêmicas que proliferam no interior do nosso partido. Entre estas menciono uma: partido de massas versus partido de quadros. Esta polêmica trazia embutida uma outra, também igualmente equivocada, a de partido de massas versus partido de lutas. E, recentemente, surgiu do mesmo bouquet uma nova flor diante da necessidade de definir melhor o perfil ideológico do PT, surgem por aí os que querem que ele se defina como um partido marxista-leninista. Como se vê, sempre existem os que insistem nos mesmos erros, embora com novas palavras.
Tudo isso já deveria estar muito claro entre nós. Partidos de massas têm que contar com uma significativa contribuição de quadros. E não podem, evidentemente, deixar de ser partidos de lutas. E têm que ter horizontes ideológicos definidos o bastante para permitir alguma unidade de perspectiva, não apenas aos seus quadros, mas também aos seus militantes de base e ao conjunto dos que aderem ou simpatizam com ele.
Torna-se inevitável, entretanto, anotar algumas palavras sobre a idéia despropositada que, no momento, persegue a cabeça de alguns companheiros: a de se definir o PT como um partido marxista-leninista. Chego até a duvidar de que haja alguém que pense nisto a sério. Trata-se de uma idéia que atropela a originalidade da experiência do PT, na intenção marota (e definitivamente não-marxista) de pretender definir a ideologia por decreto. Querem se aproveitar, de modo oportunista, de uma angústia de identidade que o partido vive neste momento, como parte necessária do seu processo de formação. Ao invés de insistirem em conquistar o poder no partido por decreto (poder apenas teórico, é verdade), não seria melhor que se empenhassem em ajudar o partido, com as luzes do marxismo ou com quaisquer outras de que possam dispor, a entender melhor o processo histórico do qual nasceu e no qual lhe é dado atuar?Lenin não tem muito a ver com tais propostas, de partido marxista-leninista. Em primeiro lugar, a expressão marxismo-leninismo é coisa do período de Stalin, que foi quem codificou o que se chama por aí de princípios do leninismo. Segundo: Lenin sabia que era democracia ("ilegibilidade para todos os cargos e publicidade para todas as teses"); sua teoria do partido (que fazer?) nos moldes de um "exército de revolucionários profissionais" tinha diante de si um dos mais terríveis despotismos da história, o czarismo na velha Rússia do início deste século. Quem pretenda reproduzir esta idéia de partido no Brasil de fins do século XX deveria, antes de tudo, preocupar-se em estudar um pouco de história e também teoria.
Temos necessidade de melhor definição do partido no sentido ideológico, sim; mas isso não significa que tenhamos qualquer necessidade de definição do partido no sentido teórico ou filosófico. Não percebem estes pretensos marxistas que estão confundindo teoria (e filosofia) com ideologia? Supondo que cometêssemos esta lamentável confusão e que adotássemos a teoria (e a filosofia) marxista como pensamento oficial do partido, o que faríamos a seguir com os socialistas não-marxistas que se encontram no PT? O que faríamos por exemplo com os católicos do PT? Expulsaríamos todos ou passaríamos a dizer que o nosso marxismo acredita em Deus? O que faríamos com muitos de nossos militantes de base operária, que nem mesmo chegaram a uma convicção ideológica de tipo socialista? E os líderes operários, magníficos lutadores que ocupam posições de direção no partido sem que jamais tenha ocorrido a ninguém pedir-lhes certificados de marxismo? Demitiríamos todos de suas funções de direção até que estudassem teoria marxista, ou passaríamos a mentir, dizendo que eles são marxistas sem terem lido Marx? Substituiríamos todos eles pelos quadros que se acreditam intelectuais orgânicos do proletariado apenas porque leram meia dúzia de livros e manejam um jargão arrevezado e pretensamente científico? Felizmente, o PT conta em suas fileiras com muitos marxistas verdadeiros, que sabem distinguir entre teoria e ideologia e, portanto, sabem que é insensato pedir ao PT que se defina no sentido teórico. Como bons marxistas, aprendem com a experiência histórica e sabem que o mais difícil de tudo na política é que os partidos se encaminhem, de modo correto, no sentido prático. Como bons marxistas, sabem que o PT não nasceu de nenhuma definição teórica, mas de uma intuição prática que se revelou teoricamente correta, a respeito da condição dos trabalhadores na sociedade capitalista e a respeito da afirmação política independente dos trabalhadores como classe.
Como imaginar que um partido como esse se construa sem quadros ou sem lutas? Como imaginar que um partido como esse se construa sem um horizonte ideológico socialista? O PT é, portanto, um partido de perfil ideológico definido. Mas é um partido laico do ponto de vista teórico e filosófico. Nele cabem socialistas dos mais diversos matizes, sejam marxistas, católicos, protestantes, umbandistas, agnósticos etc. Nele cabem, enfim, todos os que estejam dispostos a lutar por uma sociedade sem explorados e exploradores, uma sociedade socialmente igualitária e politicamente livre, ou seja, uma sociedade socialista na qual, como diria Marx, "o livre desenvolvimento de cada um seja a condição para o livre desenvolvimento de todos".
Qual é o problema real?
Voltemos ao que interessa. Por que passou a ser tão importante voltar a discutir o perfil do PT e a que vem o PT na política brasileira? Isso tudo não nos parecia tão claro quando participamos da fundação do PT em 1979/1980? O que mudou que nos obriga a voltar a discutir as razões maiores da nossa existência?
Creio que há dois motivos sérios para isso. O primeiro é, digamos, de natureza subjetiva; diz respeito ao partido, não à realidade externa a ele. Embora tenhamos uma concepção própriade partido, depois das eleições de 1982, tomamos atalhos no caminho e acabamos por deixar esta questão um pouco de lado. Isso tem a ver tanto com polêmicas mal colocadas, quanto com a maneira como resolvemos tratar circunstâncias criadas pelo processo político e que nos lançaram, como aos demais partidos, em uma sucessão de lutas eleitorais e de questões de alcance estritamente institucional. O segundo motivo é, digamos, objetivo: diz respeito a realidades que se impõem a nós. A primeira e mais importante é o prolongamento dá crise econômica que, convém não esquecer, começa em 1974 junto com a política de distensão de Geisel, isto é, junto com a chamada transição conservadora. Isso significa que nascemos diretamente das lutas de resistência: resistência econômica contra os efeitos da crise e resistência política contra os efeitos da ditadura. Nascemos, portanto, de uma luta de caráter basicamente defensivo. Dois comentários a respeito. Em primeiro lugar, é importante registrar uma autocrítica que, penso, vale para todos nós: de algum momento para cá, deixamos a bola correr solta quanto a nossa concepção de partido. Foi o mal estar que veio depois das eleições de 1982? Foi o nosso modo de encarar a campanha das diretas? Ou foi o nosso modo de encarar as eleições de 1985? É uma questão a examinar. Por exemplo, quando foi que paramos as nossas campanhas de filiação? Pode-se discutir a data, mas não vejo como se possa negar o fato, aliás lamentável. Quando foi que deixamos as nossas políticas de nucleação?
Não estou pretendendo sugerir que o partido não cresceu neste período. Nem pretendo negar algumas importantes conquistas organizatórias no campo da democracia partidária; ou na área das relações do partido com a sua frente parlamentar. Sustento, porém, que se o PT cresceu como imagem junto às massas, não cresceu no mesmo ritmo nem na mesma proporção como organização. Os 1300 municípios (somando perto de 85% do eleitorado) nos quais lançaremos candidatos a prefeito em 1988 dão uma imagem do nosso crescimento como legenda. Aparecemos nas pesquisas como o segundo partido depois do PMDB, alcançando uma expectativa de votos em torno dos 15%, mais do que o dobro daquilo que agora temos. Crescemos também como imagem de luta junto à população e como influência difusa sobre os movimentos sociais. Mas continuamos, enquanto organização política, como reflexo dos movimentos sociais, em especial do movimento sindical. A CUT (Central única dos Trabalhadores), que, embora concebida desde o início como organização independente, nasceu do impulso do PT, cresce num ritmo mais rápido do que o nosso.
O segundo comentário diz respeito a algo mais importante. A continuidade da crise explica algumas das nossas dificuldades, mas pode também oferecer o terreno para uma perspectiva de saída. Nascemos como partido no quadro de uma crise que obrigava (e continua obrigando) os trabalhadores a uma política de caráter defensivo. Nada de espantoso portanto se temos encontrado dificuldades para desenvolver uma concepção política de caráter ofensivo. Assim como outras forças políticas que buscam enraizamento popular, temos encontrado dificuldade para desenvolver uma estratégia política para a época em que nos encontramos.E aí que retoma importância a questão da relação entre a construção do PT e o quadro político e econômico geral.
Seja por força de nossos erros passados, seja por imposição do quadro econômico e político, o fato é que, depois de oito anos de luta,não podemos ainda falar de um partido consolidado em plano nacional. Se do ponto de vista dos outros partidos podemos hoje ser considerados um partido feito, do nosso próprio ponto de vista somos ainda uma proposta partidária. Uma grande proposta, com enorme força social - aliás com mais força social do que força política -, mas que tem um bom pedaço de caminho a andar para alcançar a sua identidade. Nosso problema não é o de uma crise de identidade que pode, eventualmente, acometer um partido maduro. Nosso problema é tomar realidade no conjunto do país a proposta partidária. No plano nacional, o PT não é ainda um partido de massas (com a possível exceção de São Paulo, isto é, capital e alguns municípios da Grande São Paulo). Nem é também um partido de quadros. No conjunto do país, apesar do avanço já feito, o PT é ainda uma proposta de construção partidária e uma proposta de luta.
É esta perspectiva de construção partidária e de luta que oferece o ponto de partida de que necessitamos para melhor definirmos nossa estratégia política. Como dizíamos em 1980 e 1982, queremos um partido de massas não apenas para as eleições, para o parlamento, para a administração do Executivo. Um partido de massas deve ter existência permanente nas lutas sociais dos trabalhadores, nos movimentos populares, nos debates culturais, na defesa dos direitos das minorias etc. etc. Deve ter presença nas escolas, nas universidades, nos sindicatos, nas sociedades de amigos de bairro, nos movimentos culturais etc. Temos que voltar não apenas a dizer isso, mas a tomarisso a sério. Temos que levar de novo estas idéias à prática.
A nossa concepção de partido de massas é essencialmente correta. Na realidade, é bem mais do que apenas uma concepção de partido. Ela se acha de tal modo enraizada nas necessidades reais das lutas dos trabalhadores no país que pode vir a se converter no eixo que nos permitirá articular, na prática, a nossa plataforma de lutas na atual etapa histórica. A sociedade moderna, no capitalismo e, mais ainda, no socialismo, cria demandas de participação que vão além dos mecanismos clássicos da democracia representativa (parlamentar), exigindo a criação de novas instituições políticas, inspiradas nos princípios da democracia direta. Foi precisamente por isso que sempre acreditamos que o partido deveria se organizar de baixo para cima, contra as concepções elitistas prevalecentes na sociedade brasileira, e que o PT deveria ser construído a partir dos núcleos de base, entendidos não como aparelhos de militantes mas organismos abertos para a participação da sociedade. Foi precisamente por isso que evoluímos para uma concepção de conselhos populares e para uma concepção do poder como algo que não apenas se toma (no Estado), mas também se cria (na sociedade). Nossa visão do partido é o ponto de partida de uma visão nova do Estado e da sociedade.
Estou de acordo com a crítica que muitos fizeram, nos primeiros anos, a nossa estreiteza e ao nosso internismo. Creio que, com freqüência, substituímos a falta de uma visão mais clara do processo econômico e político por uma plataforma que era, no essencial, a de construir o PT. Mas não creio que se deva levar esta crítica muito longe. Apesar dos nossos erros, tínhamos naqueles anos uma intuição basicamentecorreta, não apenas sobre o PT mas sobre o conjunto da situação política e econômica do país. Nosso único erro foi o de não termos percebido com toda clareza que o nosso processo de construção como partidonão se esgotava em si próprio mas se ligava a todo processo geral da luta pela democracia e por uma nova política econômica. Ou seja, ao invés de nos puxar para dentro, o processo de construção partidária deveria nos empurrar para fora. Isto porque temos que conceber o processo de construção como abertura.
E acredito também que era (e continua sendo) essencialmente correto afirmar que organizar os trabalhadores em um partido independente (bem como nos sindicatos e nos movimentos populares) é o nosso modo, e o modo mais conseqüente, de lutar pela democracia e por uma política econômica que atenda aos interesses dos trabalhadores e do conjunto do povo brasileiro.
Depois das experiências dos últimos anos, esta perspectiva se torna muito mais concreta. Organizar o partido pela base junto aos trabalhadorese construir a democracia pela base da sociedadenão são proposições sinônimas, mas estão muito próximas. E quem se coloca estes dois temas está muito perto de se propor também o tema do socialismo. No fundamento da nossa concepção de partido está uma concepção democrática radical sobre a sociedade e a política em geral: "A emancipação dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores". Quem entenda o que isso significa deve entender também que a emancipação dos trabalhadores é a raiz da emancipação social em geral. Ou seja, a organização autônoma dos trabalhadores é ocaminho não apenas da construção da democracia política mas também o da transformação da sociedade.
É neste rumo que vejo as indicações gerais do 5º Encontro. Consolidar o processo da construção do PT no conjunto do país, ligado ao processo de luta pela democracia e por uma política econômica que atenda aos interesses dos trabalhadores. A pergunta "A que veio o PT?" não deve nos assustar. Esta é a célebre indagação que se coloca aos partidos com verdadeira vocação para o poder, nos momentos de grandes viradas históricas. Temos uma grande oportunidade de oferecer a nossa resposta na campanha do Lula para a presidência, que de fato tem que começar agora, nas campanhas municipais deste ano. As lutas de resistência contra a ditadura criaram uma frente eleitoral e um partido político. A frente é o PMDB, que fracassou em suas propostas de mudança da sociedade. O partido é o PT, que terá que ser capaz de retomar o sentido radical da sua origem e de aprender com as experiências do seu próprio processo de formação - não para a missão impossível e inglória de confinar a luta dos trabalhadores em um gueto, mas para a tarefa histórica grandiosa de buscar, junto com os trabalhadores e com a maioria do povo, os caminhos da democracia e do socialismo no processo de transformação da sociedade brasileira. Só assim fará justiça ao seu signo de origem: PT nossa vez, nossa voz.
Francisco Weffort é professor da USP e membro da Executiva Nacional do PT.